sexta-feira, 30 de novembro de 2007

Mahjong e minchi, O fim da linha para a KCR

Encontro das Comunidades Macaenses promove
hoje torneio de mahjong

Um jogo “imprescindível”

São exactamente 306 inscrições, mas a organização prevê que haja algumas desistências. O Centro de Convenções da Doca dos Pescadores vai acolher hoje centenas de macaenses que se vão sentar à mesa com um propósito muito especial. Mais uma vez, o Encontro das Comunidades Macaenses promove um torneio de mahjong, um jogo de mesa tradicionalmente chinês que, segundo o presidente da Associação dos Macaenses (ADM), Miguel Senna Fernandes, “está para o lazer como o minchi para a gastronomia”.
A competição vai contar com a participação de 11 jogadores locais, sendo que três representam a ADM e oito a Associação dos Aposentados, Reformados e Pensionistas de Macau (APOMAC). Estas duas organizações são as entidades organizadoras deste evento que está marcado para as 14 horas.
Miguel Senna Fernandes prevê muita animação para o evento que junta quatro jogadores em cada mesa. “As Casas de Macau na diáspora trazem muita gente e cerca de 70 por cento dos participantes reside no estrangeiro. O grosso vem mesmo dos Estados Unidos e do Canadá”, explicou ao Tai Chung Pou.
Seja no território ou além fronteiras, a caixa das pedras de mahjong é um objecto obrigatório em qualquer casa e associação tipicamente maquista. “Os macaenses adoram este jogo. É uma actividade de lazer imprescindível no seio da comunidade. Um torneio deste género é o que se espera de um Encontro dos Macaenses”, frisou o presidente da ADM.
“O mahjong é um jogo tradicional da comunidade chinesa, mas como nascemos em Macau absorvemos esta prática”, observou o presidente da APOMAC, Francisco Manhão. O exercício que significa “jogo das pedras” é, de facto, uma das tradições orientais profundamente enraizadas na cultura macaense. “Todos os fins-de-semana as pessoas reúnem-se para jogar”, sublinhou Miguel Senna Fernandes.
A regra geral do mahjong remete para o número de jogadores, que só podem ser quatro. Apesar de também se poder jogar com dois ou três praticantes, a competição perde um pouco do interesse.
Uma das vantagens que contribuiu para a sua popularidade deste jogo dentro e fora da Ásia é o nível de dificuldade. Na verdade, o mahjong é uma actividade de fácil aprendizagem, em duas ou três partidas é possível aprender as regras básicas.
Além disso, privilegia a socialização entre os jogadores, que podem pôr a conversa em dia tranquilamente ao longo das partidas.
Outro ponto a favor do mahjong é a sua flexibilidade e a adaptabilidade. Isto é, as regras podem ser pré-estabelecidas conjuntamente entre os quatro jogadores, podendo tornar do jogo mais fácil ou difícil à medida do grau de experiência do grupo. Por último, um jogo completo de peças dura a vida toda, graças ao material de que é feito.
Tal como outro jogos semelhantes, como o dominó, cada praticante participa de uma maneira individual, não existindo regras para que o jogo se faça em duplas. Sempre que é finalizada a partida, o vencedor recebe pontos dos vencidos. No final, faz-se as contas para determinar a situação de cada um.
No final do torneio, às 19h30, também no Centro de Convenções da Doca dos Pescadores, terá lugar um jantar convívio, com a distribuição de prémios. Um evento que também terá uma récita de patuá, juntamente com música e canções interpretadas por conjuntos locais e da diáspora.
O dia de amanhã está reservado à festa de Nossa Senhora Padroeira das Comunidades Macaenses. Pela manhã, os macaenses vão colocar coroas de flores junto ao monumento das Comunidades Macaenses, seguindo-se uma missa na Sé Catedral. Durante a tarde, a residência do Cônsul-geral de Portugal na RAEM abrirá as portas para receber as delegações das Casas de Macau e das associações locais. O penúltimo dia do Encontro termina com um concerto da Orquestra Sinfónica Juvenil que terá como palco a Igreja de São Domingos.
Alexandra Lages

Fusão de operadores de transportes em Hong Kong

O fim da linha para a Kowloon-Canton Railway

Depois de 98 anos a garantir a ligação por comboio entre a China e Hong Kong, a empresa Kowloon-Canton Railway (KCR, na sigla em inglês) termina as suas operações no próximo domingo. A MTR passará a deter a histórica operadora, mas com a transferência das acções termina uma era. Nem sequer os trabalhadores da operadora vão ser totalmente integrados na empresa que gere o metro de Hong Kong.
Foi a 1 de Outubro de 1910 que o primeiro comboio da KCR fez a ligação entre Kowloon e Cantão, na altura ainda numa linha férrea provisória. Exactamente 98 anos e 62 dias depois, no próximo domingo, o último comboio operado pela KCR chega à plataforma subterrânea da estação de Tsim Sha Tsui East quando passarem doze minutos da uma da manhã. Segue-se uma operação relâmpago de substituição dos logótipos da KCR pela imagem corporativa da MTRC. O novo serviço providenciado pela empresa que explora o metro de Hong Kong vai também partir de Tsim Sha Tsui.
Do ponto de vista geográfico, a KCR começou e termina as suas operações em Tsim Sha Tsui. No entanto, o local de onde actualmente partem os comboios de Kowloon é uma extensão com apenas três anos da estação de Hung Hom, inaugurada em 1976. Por essa altura, foi demolido o extraordinário edifício de estilo colonial onde estava instalado o terminal que recebeu o primeiro comboio da Kowloon-Canton Railway.
Tal como sugere o nome, a KCR foi baptizada com a designação dos pontos que liga – Kowloon e Cantão. A empresa nasceu de uma parceria entre as autoridades chinesas, no final da Dinastia Qing, e o Governo da então colónia britânica. Nos seus 98 anos de operações, assistiu à queda do regime imperial, à invasão japonesa, à formação do Partido Comunista Chinês, à Revolução Cultural e às reformas económicas iniciadas no final dos anos 1970. São momentos que bastam para que se possa afirmar que a KCR desempenhou um papel importante na China pós-imperial.
A operadora quase centenária enfrentou a primeira grande ameaça em 2001, com o concurso para a construção da linha entre Shatin e Central. A 25 de Junho de 2002, o Governo de Hong Kong anunciou que a KCR tinha sido a melhor empresa candidata ao desenvolvimento do projecto, mas tornou pública a intenção de fusão dos sistemas da KCR e da MTR, a outra empresa que se apresentou a concurso.
As autoridades explicaram que as propostas apresentadas permitiram perceber que uma colaboração seria benéfica para ambas, mas o Apple Daily disse, na altura, que o então novo presidente da KCR, Micheal Tien, tinha sido o grande responsável pela proposta de união, uma vez que pretendia introduzir na operadora uma cultura de gestão de maior responsabilidade.
As boas intenções de Micheal Tien não foram aplaudidas pelos trabalhadores da KCR. Habituados a modelos que se arrastam há décadas, olharam com desconfiança para as tentativas de introdução de maior transparência e responsabilidade do novo presidente. Em Março de 2006, assistiu-se ao início de uma disputa interna ao nível da gestão. O então presidente em exercício, Samuel Lai, esteve na origem de uma petição em que se pedia a demissão de Micheal Tien. O conflito acabou com o apoio de 19 gestores a Tien e a demissão de Lai, tendo sido despedido um gestor e os restantes 18 a receberem uma advertência por escrito.
Os conflitos internos da KCR facilitaram a tarefa da fusão progressiva das operadoras de transportes. A 11 de Abril do ano passado, o Conselho Executivo aprovou oficialmente a estrutura e os termos da proposta de fusão, tendo celebrado um memorando de entendimento com a MTR. O acordo definia que a KCR iria garantir a concessão do serviço à operadora do metro, sendo que não foram determinadas medidas relativas à continuidade dos trabalhadores. A nova empresa, a MTRC, tem nos seus quadros todos os gestores da MTR, mas apenas 8 dos 17 da KCR garantiram já um posto no novo escritório.
A maior preocupação resultante destas movimentações prende-se, contudo, com a forma como o público sairá beneficiado da fusão das operadoras. Alguns deputados vieram já defender uma redução do preço dos bilhetes. A empresa anunciou entretanto descontos de dez por cento para os bilhetes que excedam os 12 dólares de Hong Kong, sendo que será feita uma redução de cinco por cento nas viagens que custam entre 8,5 e 12 dólares. Esta nova filosofia ao nível dos preços cobrados pelo serviço, argumenta a MTCR, é reveladora das sinergias criadas pela fusão, mas a proposta não convenceu os deputados dos partidos pró-democracia.
Nas vésperas da despedida da KCR, as actividades levadas a cabo para que a memória da empresa não desapareça passaram quase despercebidas. Foi lançado um livro sobre a história da linha férrea, inaugurada uma pequena exposição de fotografia e instalado um quiosque de lembranças na estação de Tsim Sha Tsui. Um leilão está a ser organizado por um associação de beneficência e mais de 70 objectos ligados à história da linha foram doados ao Museu Cultural e ao Museu Ferroviário de Hong Kong.
Na loja de lembranças da KCR, Chris Yeung, de apenas 11 anos, espera numa fila, acompanhado pelo pai, para pagar alguns objectos com o logótipo da operadora. Residente em Hung Hom, conta que, quando for grande, quer ser maquinista, sonho que tem há já três anos. “Na KCR não será”, constata o pai. “É uma pena que a operadora não viva o suficiente para celebrar o centenário.”
Kahon Chan com Isabel Castro

quinta-feira, 29 de novembro de 2007

Jovens macaenses debatem Encontro 2009, Ao Man Long contesta lógica da investigação, Os idiomas de Leo Stepanov

Jovens macaenses reuniram-se para discutir Encontro 2009

Todos sob a “mesma bandeira”

“Sempre comi minchi e adoro croquetes”, afirma Noella dos Santos. Nasceu e cresceu em terras australianas. É por lá que continua a viver. Em Macau, só esteve de visita. “Já é a terceira vez”, informa. A sua alma é, sem sombra de dúvidas, macaense.
Fala português, porque não tinha outra maneira de comunicar com a avó. Envergonha-se de não dominar o cantonês tão bem como gostaria, mas promete “aprender melhor” ambas as línguas. Esta rapariga de 22 anos é um caso raro na delegação de jovens enviados pelas Casas de Macau na diáspora, visto
que grande parte da juventude macaense apenas domina o inglês.
Ao longo das actividades do III Encontro das Comunidades Macaenses, um evento que termina no próximo domingo, houve quem lamentasse que o programa seja todo em cantonês e português. Reivindicações que integram também as actas da reunião dos representantes juniores, sendo um dos primeiros contributos para a organização do tão almejado Encontro dos Jovens das Comunidades Macaenses, em 2009. Foram 30 os elementos da juventude macaense na diáspora que se juntaram ontem à mesa, na sede da Associação para a Promoção dos Macaenses.
Luso-falantes ou não, é nestes macaenses que está depositado o futuro da comunidade. Deste modo, as gerações mais velhas embarcaram numa campanha para reforçar o interesse da juventude nas suas raízes e tradições. Este ano, cada Casa de Macau da diáspora enviou delegações de jovens para participarem no evento. São três de cada associação, numa iniciativa que teve o apoio directo do Executivo da RAEM e visa lançar as sementes para criar um Conselho de Jovens Macaenses. O programa de hoje é dedicado exclusivamente às esperanças da comunidade (ver caixa).
O certo é que a aposta dos decanos no encorajamento dos mais novos parece estar a dar frutos. Há um sentimento geral de entusiasmo e de determinação em abraçar a luta pela preservação da identidade cultural. Mesmo apesar de serem muitos os jovens para quem este encontro significou o primeiro contacto com a terra dos familiares.
“A minha avó tem uma casa tipicamente macaense. Com todos os santos expostos. Quando entrei no Museu de Macau e olhei em meu redor, fiquei espantado como tudo é tão parecido com a casa dela. Isto mostrou-me que afinal existe uma cultura real e sólida”, constata Alex King, representante da Casa de Macau em Vancouver, no Canadá.
A Cultura tem-se revelado o isco perfeito para cativar a juventude macaense. É no patuá e na gastronomia que eles falam mais, comentando entre si o progresso da candidatura do crioulo maquista a património intangível da Humanidade. Além disso, não faltam opiniões sobre o futuro da comunidade. Em cada Casa mora uma preocupação diferente.
Filipe Fong, representante da Casa de Macau em Portugal, é um defensor acérrimo do cantonês, um idioma que aprendeu à medida que a mãe “ralhava” consigo. “Através desta língua, podemos conhecer melhor a nossa cultura”, sustentou.
Já os pares norte-americanos e canadianos alertam para a existência de uma barreira linguística que dificulta a comunicação e o sucesso dos encontros. O director da juventude do Club Lusitano da Califórnia, Kenneth Harper, considera que o português devia ser a língua franca da comunidade. “Não falo português, mas consigo perceber um pouco, porque aprendi patuá com a minha avó”, conta. “A língua portuguesa pode ser uma ponte para a dinamização deste dialecto entre os jovens”, sustentou.
Do Brasil, as aspirações que chegam dizem respeito ao ensino. Para além de trazer mais jovens no próximo encontro, as Casas de Macau em Terras de Vera Cruz estão interessadas em criar programas de intercâmbio entre universidades. Um assunto que será abordado hoje durante a visita aos estabelecimentos de ensino universitário do território.
“Formar um grupo, para os elementos se poderem conhecer uns aos outros e, assim, ficarem todos debaixo da mesma bandeira”. São estas as aspirações da Austrália, representada por Noella dos Santos. União é outro dos objectivos mais sublinhados pelos jovens macaenses e todos manifestam vontade em levar a cabo as tradições dos seus progenitores. “Quero que os meus filhos percebam a nossa cultura”, sublinha Jessica Xavier, da Califórnia, enquanto os colegas acenam com a cabeça, a mostrarem o seu apoio.
Para 2009, parece haver já augúrios de mais um encontro de sucesso. A juventude quer voltar, mas com mais força. Tanto que até enviaram algumas propostas para a comissão organizadora. “Era bom que, em 2009, organizassem um programa mais específico para os jovens”, defende a representante da Casa de Macau em São Paulo, Arlene Placé.
Festa foi uma palavra pronunciada muitas vezes dentro da sala de reunião. Resta agora esperar para ver se conseguem germinar as sementes lançadas pelos seniores para a criação de um Encontro das Comunidades Macaenses feito apenas pelos mais jovens.

Um dia cheio de patuá

A juventude é a rainha do dia de hoje do programa do III Encontro das Comunidades Macaenses. O grupo de teatro Doci Papiaçam vai apresentar a sua mais recente produção “Cuza Dotôr?” em dose dupla. Com o auditório da Torre de Macau como palco, a primeira sessão do espectáculo de Patuá está marcada para as 16:00 e a segunda para as 20:00.
No dia de ontem, teve lugar a cerimónia de tomada de posse dos cargos sociais da Confraria da Gastronomia Macaense, no Teatro D. Pedro V, seguida de uma conferência sobre cultura gastronómica com oradores de Macau, Portugal e China. Além disso, foi lançado o livro de receitas de Maria João Salvador dos Santos Ferreira. A tarde foi reservada para assuntos de negócios.
Deu-se o encontro entre os dirigentes das Associações de Empresários Macaenses na diáspora com os dirigentes do Instituto de Promoção do Comércio e do Investimento, os presidentes das Casas de Macau e outras associações locais. No âmbito desta reunião, foi assinado um protocolo de cooperação.
Alexandra Lages
Fotografia: António Falcão/ bloomland.cn

Maioria dos bancos de Hong Kong não disponibilizou extractos bancários ao CCAC

Ao Man Long contesta lógica da investigação

O antigo secretário para os Transportes e Obras Públicas de Macau, que está a ser julgado no Tribunal de Última Instância (TUI) pela alegada prática de 76 crimes, contestou ontem as contas feitas pelo Comissariado Contra a Corrupção (CCAC) em relação aos activos que controlava, em contas bancárias abertas em Hong Kong e, supostamente, também em Londres.
Durante a inquirição de um investigador do CCAC, Ao Man Long pediu para falar, num tom algo exaltado, afirmando que tinha, ao longo das últimas sessões, encontrado várias imprecisões nas contas feitas pelos responsáveis pela averiguação do caso e que lógica que seguem é errada.
O antigo governante referia-se a transferências de montantes entre contas de Hong Kong e de Londres que, segundo disse, aparecem repetidas na contabilidade feita pela equipa de investigadores. Explicou ainda, em relação a valores que são apresentados pela acusação como sendo o saldo das contas, que esse números se referem a créditos contraídos junto dos bancos. Referiu também, quando dava exemplos das falhas do CCAC, que não era a única pessoa com responsabilidade nos depósitos nas contas bancárias, tendo dito que os valores mencionados “não têm nada a ver com obras” e que parecia que a testemunha não estava a conseguir explicar a origem dos montantes.
O presidente do colectivo de juízes que está a avaliar o caso, Sam Hou Fai, disse ao arguido que o Tribunal irá fazer a sua própria contabilidade, pelo que não tem que temer eventuais falhas durante a investigação e deve acreditar na Justiça.
Embora tenha dito que confia no Tribunal, Ao Man Long não pareceu ter ficado sossegado com o que ouviu, tendo usado do direito a falar por mais duas vezes, para reiterar a ideia de que as contas estão mal feitas. O antigo secretário mostrou-se ainda preocupado com a opinião pública, referindo, por duas vezes, que o julgamento é acompanhado pela comunicação social, que se está a basear nos dados divulgados pelos investigadores do CCAC para escrever as suas notícias. Sam Hou Fai voltou a dizer que não há que ter apreensões em relação ao juízo que o TUI fará.
Ainda durante as suas intervenções, o ex-secretário para os Transportes e Obras Públicas defendeu que as contas que o CCAC fez deveriam ser confirmadas junto das entidades bancárias onde o dinheiro foi depositado. Esta mesma ideia foi retomada, mais tarde, pelo advogado de defesa de Ao, Nuno Simões, que quis saber se o Comissariado Contra a Corrupção pediu a confirmação dos valores depositados nas contas aos vários bancos que aparecem mencionados no processo.
Ficou-se então a saber que, à excepção do Banco da China, os outros bancos de Hong Kong não emitiram este tipo de documentação, pelo que a contabilidade dos activos do arguido foi feita com base nos apontamentos que redigia em agendas, nos extractos que foram encontrados na residência de Ao e em documentos que este imprimiu, no acesso pela Internet a algumas das contas.
O Ministério Público informou então que, em relação às 19 contas de Hong Kong geridas pelo arguido, os montantes tinham sido congelados após a sua detenção. Já em relação ao dinheiro que o arguido terá feito chegar a três entidades bancárias de Londres, o investigador do CCAC, Fong Pak Ian, disse estarem ainda à espera que os mecanismos de cooperação judiciária funcionem para poder pedir os extractos bancários.
À semelhança do que sucedeu nas sessões anteriores, Fong Pak Ian prestou depoimento em Tribunal com o apoio de meios informáticos e a projecção de provas documentais. O investigador principal esteve incumbido de avaliar as ligações entre a CSR Macau, gerida por Frederico Nolasco (ver texto nesta página) e o arguido. A testemunha explicou que foram encontradas, na residência do ex-secretário, duas minutas de um contrato entre a CSR Macau e a Polymile, empresa detida por Frederico Nolasco e a mulher. O acordo definia que, caso a CSR conseguisse a adjudicação de duas obras e a renovação do contrato de recolha de resíduos sólidos comunitários, a Polymile receberia uma quantia a título de despesas de consultadoria. Numa destas minutas foi encontrada uma assinatura, cuja autoria a investigação não conseguiu determinar.
Ainda de acordo com Fong, um documento muito semelhante foi apreendido no escritório de Frederico Nolasco, sendo que estava assinado e não continha as rasuras das minutas, de onde tinha sido cortada a obrigatoriedade de emissão de factura pela Polymile. A testemunha mostrou as cópias de vários cheques passados pela Polymile e endossados pelo pai de Ao Man Long, relativos a um dos projectos onde houve alegadamente corrupção.
A acusação diz que o arguido não terá recebido a totalidade do valor acordado com Frederico Nolasco, por ter sido entretanto detido. O investigador do CCAC explicou também que, sobre a Polymile, não foram descobertos indícios que permitam garantir que efectuava o trabalho de consultadoria, sabendo-se apenas que, em tempos, cooperava com Nolasco no fornecimento de equipamentos desportivos.
Fong Pak Ian fez ainda uma exposição detalhada sobre os bens de Ao Man Long e os montantes em contas bancárias que, não estando em seu nome, controlava por via da delegação de plenos poderes. As contas do CCAC apontam para um total de 852,520 milhões de patacas, entre os bens constantes das declarações de rendimentos e os valores alegadamente provenientes de actos ilícitos. O Comissariado Contra a Corrupção, disse a testemunha, não conseguiu, no entanto, definir a origem de parte significativa deste dinheiro.
À baila veio também um imóvel em Inglaterra detido pela Roselle Court, que a acusação diz ser, na realidade, pertença do arguido. Ao Man Long negou deter bens em Londres, bem como ter qualquer relação com a offshore em questão. Ao contrário de outras empresas que aparecem mencionadas no processo, em relação às quais o antigo governante detinha declarações de plenos poderes, não consta dos autos documento semelhante referente à Roselle Court. Confrontado com o juiz acerca da origem do dinheiro que terá servido para pagar o imóvel, a testemunha admitiu que o CCAC não conseguiu definir a proveniência dos cerca de 75 milhões de patacas.
A testemunha falou ainda dos vários milhões de patacas em dinheiro e dos objectos valiosos apreendidos na residência de Ao Man Long, onde foram encontrados também os cadernos, recibos, carimbos, chaves de cofres, livros de cheques e outra documentação que permitiu à investigação chegar à conclusão de que havia matéria para que o caso seguisse para o Ministério Público. Nuno Simões quis saber se os dois cofres encontrados em casa do arguido estavam abertos, ao que a testemunha respondeu negativamente. O investigador explicou que só foi possível ter acesso ao seu conteúdo nas instalações do CCAC, com a ajuda de peritos.
Recorde-se que a busca feita na residência do antigo governante é fortemente contestada pela defesa por ter sido efectuada sem que este tenha sido notificado para estar presente ou se fazer representar. O facto deu já direito a um recurso da decisão do TUI, depois do colectivo de juízes ter indeferido o pedido de nulidade do meio de obtenção de prova. Ontem, Simões voltou a pedir para que constasse em acta que a testemunha tinha prestado depoimento com base em documentação apreendida em casa do arguido.
A próxima sessão do julgamento, que será já a 13ª, está marcada para a próxima segunda-feira.

Arguidos nos processos conexos foram ao TUI

O silêncio das testemunhas

Dezoito arguidos dos processos conexos ao do julgamento de Ao Man Long compareceram ontem no Tribunal de Última Instância, sem terem, contudo, prestado esclarecimentos sobre o caso. O Ministério Público tinha arrolado as testemunhas que, sendo arguidas nos processos relacionado ao que o TUI está a julgar, se podem recusar a prestar depoimento. Sem excepção, todas elas preferiram manter-se em silêncio.
Entre os arguidos que ontem foram ao TUI, estavam o irmão e a cunhado do ex-secretário para os Transportes e Obras Públicas, Ao Man Fu e Ao Chan Wa Choi, respectivamente. Acusados da prática, em co-autoria e na forma consumada, de crimes de branqueamento de capitais, encontram-se ambos em prisão preventiva no Estabelecimento Prisional de Macau. Acompanhados por guardas e vestindo as roupas da prisão, recusaram ambos prestar depoimento.
O presidente do colectivo de juízes, Sam Hou Fai, quis, no entanto, fazer uma pergunta a Ao Man Fu, perguntando-lhe se, depois da morte da mãe (que ocorreu no final de 2003), tinham sido feitas partilhas dos bens. O irmão de Ao Man Long disse que não. Na sessão de ontem, a defesa do ex-secretário tinha questionado um investigador principal do Comissariado Contra a Corrupção precisamente sobre a questão das partilhas, depois desta testemunha ter mostrado documentos de um banco de Hong Kong sobre o acesso a um cofre aberto pela mãe do arguido no início de 2003. Após o seu falecimento, continuou a ser utilizado depois por Ao, a quem tinham sido delegados poderes para tal.
No TUI esteve ainda presente o empresário Frederico Nolasco da Silva, acusado de crimes de corrupção activa e de branqueamento de capitais. Explicando ao juiz ter já o julgamento marcado no Tribunal Judicial de Base, remeteu explicações para a sede própria da avaliação do seu processo.
Frederico Nolasco da Silva está entre o grupo de empresários que surgem no caso por alegadamente terem praticado crimes de corrupção activa para garantirem a adjudicação de obras ou projectos. A acusação sustenta que a CSR Macau — Companhia de Sistemas de Resíduos, Limitada, gerida por Nolasco, foi favorecida, em troca de compensações ilícitas, em três projectos diferentes: a adjudicação directa da construção e gestão da Estação de Tratamento de Resíduos Especiais e Perigosos, o ajuste directo do desenvolvimento do projecto-piloto de recolha automática de resíduos sólidos e a renovação do contrato para a limpeza e recolha de resíduos sólidos.
O Ministério Público sustenta que o crime foi praticado através da Polymile Limited, de Hong Kong, empresa detida por Frederico Nolasco e pela esposa, tendo sido esta a passar os cheques que foram endossados pelo pai de Ao Man Long e depositados numa conta bancária controlada em exclusivo pelo antigo secretário. Ontem, Patrícia Nolasco da Silva esteve também no TUI, tendo dito logo que não queria responder às perguntas do Tribunal. Uma possível falha de comunicação fez com que Sam Hou Fai insistisse com a testemunha, que disse por várias vezes ser arguida e não pretender responder. Só depois de dizer que não queria dizer nada que pudesse afectar o julgamento do marido e reiterar recusar-se a depor é que o presidente do colectivo lhe deu autorização para abandonar a sala.
A sessão da tarde ficou marcada, assim, por um “entra e sai” de testemunhas que pouco mais disseram do que os seus nomes, locais de trabalho e relação com os processos conexos. A maioria das pessoas trabalha na Sam Meng Fai, empresa detida pelo empresário Ho Meng Fai, a quem foram imputados crimes de corrupção activa e que se encontra em paradeiro desconhecido.
Acusados de ajudarem o patrão no branqueamento de capitais, entre os trabalhadores acusados encontra-se pessoal da secretaria e contabilidade, pelo que foi possível perceber, e alguns indivíduos que trabalham em obras. Um deles, com visíveis dificuldades em perceber as questões que lhe estavam a ser colocadas pelo juiz, calçava umas botas próprias das obras de construção civil, deixando adivinhar, pela aparência e pelas respostas dadas, que o seu exercício de funções na empresa está longe dos cargos dirigentes.
Do grupo de arguidos, destaque ainda para um funcionário da empresa Tong Lei que o MP insistiu em inquirir, alegando pretender colocar questões não relacionadas com o crime que lhe foi imputado, não obstante o protesto da defesa, que considerou que as perguntas estariam sempre relacionadas. Do seu depoimento pouco há a dizer, uma vez que, segundo explicou, esteve fora da empresa durante um período.
Já sobre a adjudicação directa do contrato de gestão e manutenção da Praça das Portas do Cerco – uma das obras em que alegadamente houve corrupção – a testemunha considerou normal a atribuição à Tong Lei, que já tinha concorrido à prestação do mesmo tipo de serviço após a conclusão do Centro Cultural de Macau, cuja construção foi da responsabilidade da empresa de Tang Kin Man.
O Tribunal aproveitou a deixa para perguntar se, no caso do Centro Cultural de Macau, em que a Tong Kei não ficou com a gestão, sendo apenas responsável pela manutenção no período determinado no contrato, tinha havido conflitos entre a construtora e a empresa gestora. A testemunha assegurou que não houve problemas de qualquer ordem.
Recorde-se que, aquando das declarações feitas em Tribunal, o antigo coordenador do Gabinete para o Desenvolvimento de Infra-estruturas, Castanheira Lourenço, tinha justificado a adjudicação directa da gestão dos equipamentos da Praça das Portas do Cerco apoiando-se precisamente no facto da experiência do Centro Cultural não ter sido a melhor, por conflitos de responsabilidades.
Castanheira Lourenço vai ser ouvido de novo no TUI, por causa deste contrato, uma vez que, na segunda-feira passada, uma testemunha deu a conhecer novos factos aditados à acusação, e que envolvem uma empresa à qual foi entregue, pela Tong Lei, a efectiva aplicação do contrato celebrado com o GDI.
Isabel Castro

Leo Stepanov, tradutor e intérprete de cinco idiomas

A arte de perceber o mundo

Fala fluentemente português, inglês, mandarim, cantonês e russo, a sua língua materna. Escreve também em todos estes idiomas e é capaz de fazer traduções em simultâneo de palestras das áreas mais diversificadas. Para Leo Stepanov, a história de que o conhecimento de línguas abre portas para o mundo é redutora: a língua é ela própria um mundo.
A explicação é simples e nada tem de metafórica. “O mundo é uma percepção, é aquilo que vemos, que conhecemos”, começa por dizer. “Quando aprendemos uma nova língua, abre-se uma parte do mundo que ninguém mais vê, só a própria pessoa.” O “prazer” que isto lhe dá, continua, faz com que mantenha vivo o desejo de desejo de aprender mais idiomas. Leo Stepanov não se contenta com partes, quer o mundo inteiro. Está agora a aprender árabe e coreano.
Há 17 anos em Macau, o tradutor e intérprete diz ainda hoje não ser capaz de apresentar uma justificação lógica para a escolha do destino no Sul da China. “Como aconteceu a muitas pessoas, vim por duas semanas, fiquei dois meses, depois dois anos.” Os dias foram-se multiplicando e ainda cá está, sócio de uma empresa de traduções com escritório no coração da cidade.
Aterrou em Macau vindo de Pequim, com a licenciatura em mandarim ainda fresca debaixo do braço. Natural de uma cidade a mil quilómetros de Moscovo, “o que é perto para as dimensões do país”, Leo Stepanov desde cedo se habituou a conviver com diferentes culturas e formas de comunicação. “Nasci numa cidade industrial e académica, que tem uma grande colónia alemã, pelo que vivia entre os russos e os alemães. O meu pai trabalhava para a Lufthansa e comecei a viajar com dois anos de idade, andávamos sempre de um lado para o outro.”
A profissão do pai fez com que o interesse pela diferença desde cedo aparecesse, mas não bastou para lhe seguir as pegadas em termos de carreira. Os dois progenitores são ambos engenheiros e o irmão também, todos eles de diferentes áreas. “Mas as conversas eram muito chatas, muito técnicas. Um dia, tinha uns 16 anos, disse à minha mãe que iria fazer algo louco, completamente diferente”, recorda. E assim foi. Aos 17 partia para Pequim, para estudar mandarim. “Deixaram de falar comigo durante um ano. Depois passou”, sorri.
Corria o ano de 1989 e os acontecimentos de Tiananmen ainda pairavam no ar. “A China não era o que temos agora”, relata. “Era um bocadinho duro. A cidade era cinzenta, suja, cheia de pó. Só havia três cores: verde, azul e cinzento, que eram as das roupas que as pessoas vestiam.” As transformações da última dezena e meia de anos deixam-no fascinado, confessa. “Ver o que a China cresceu desde então é fantástico. Se calhar foi este factor que me manteve cá, porque na Europa isto não acontece. Desenvolve-se, sim, mas vai devagar, percebe-se que vai demorar uma ou duas gerações até acontecerem determinadas coisas. Aqui não é assim.”
Curso de mandarim concluído, Stepanov deu com Macau por acaso. Gostou do ambiente, contrastante com a imensidão de Pequim, e não tardou a encontrar emprego e a trabalhar com portugueses. Já dizia “algumas coisas básicas” em português, mas foi cá que começou a estudar. Aprendeu o idioma num ápice, fruto das circunstâncias: a oferta de um estágio em Portugal.
“Tinha quatro meses para me desenrascar. Comprei um livro e fiz todos os esforços para aprender português. Não disse nada a ninguém e comprei uma edição norte-americana, com cassetes”, explica. Durante um mês dedicou todo o seu tempo livre a exercícios e à audição das gravações. “Depois, quando comecei a falar com os portugueses, riram-se. Disseram-me que falava muito bem, mas com sotaque brasileiro”, recorda, com uma gargalhada. “Fiz um novo esforço no espaço de tempo que restava e comprei um outro livro, desta vez feito em Portugal.”
Da estadia no país à beira do Atlântico recorda o Norte, onde esteve dois meses, em 1994, bem como as viagens que se seguiram, a caminho da Guiné-Bissau com um projecto das Nações Unidas, dois anos mais tarde. “Tive a oportunidade de viajar muito, fiquei a conhecer bem Portugal. Posso servir de guia turístico”, atira.
De regresso a Macau, a conversa vira-se inevitavelmente para um dos temas mais falados na semana passada: a falta de tradutores e intérpretes, principalmente na área da Justiça. Para o profissional com quase duas décadas de vida e experiência no território, o facto de não haver gente qualificada para garantir a comunicação, numa cidade em que os idiomas se cruzam cada vez mais, ronda a inadmissibilidade.
“Macau é um dos poucos locais do mundo que reúne condições fantásticas para desenvolver este ramo. Devia existir uma academia de línguas, com professores internacionais, que conheçam bem as matérias que vão ensinar, com workshops, educação contínua e professores de renome a passarem por cá”, defende. “Com esta mistura de residentes, de visitantes e com a troca de culturas que existe há imenso tempo, estão criadas as condições para aprender as variações modernas das línguas e não aprender através de um livro que foi escrito há 30 anos.”
Para Stepanov, Macau oferece, a este nível, condições que mais ninguém tem em redor. É uma característica única, que falta a Hong Kong e à China. “Só aqui é que existe esta combinação de línguas. Em termos proporcionais, temos muitos mais estrangeiros do que Hong Kong. As misturas que se criam nas escolas são impressionantes: as crianças estudam um idioma ou mais nas aulas, comunicam entre elas nas suas próprias línguas, existe este ambiente propício à aprendizagem”, vinca.
Para sustentar a oportunidade “fantástica” da criação de uma academia de línguas na RAEM, o tradutor conta que Xangai teve um projecto do género, reformulado em 1949 e então redireccionado para o mandarim. “A cidade tinha uma comunidade linguística muito forte, devido às concessões estrangeiras, que deu início à indústria de manuais e dicionários. Ainda hoje, o melhor dicionário de chinês-russo é feito em Xangai.”
Tradutor profissional com um vasto currículo, Stepanov é sócio de uma empresa “pequena”, característica “importante na tradução, uma especificidade da indústria”. Há muitos intérpretes que trabalham sozinhos a vida toda, mas o russo decidiu fazer uma parceria com seis pessoas, que “não estão permanentemente em Macau, correm o mundo, mas estão aqui baseados”. A rede é complementada com outros intérpretes que colaboram a partir dos mais diversos pontos do planeta.
“Estamos a tentar criar uma base de linguistas em Macau, mas será preciso ainda alguns anos. A interpretação exige muita experiência, não basta ter um diploma, por melhor que tenha sido a nota do final de curso”, frisa. “É preciso estar no meio dos eventos internacionais e ter uma grande cultura geral.” Mesmo no caso de áreas específicas como a Justiça, não basta a um intérprete dominar bem os termos jurídicos nas diferentes línguas de trabalho. “Um tradutor, para ser bom, não se pode concentrar apenas numa área, tem que saber tudo”, reitera. Não chega aprender um idioma e fazer uso dele. “O meu iTunes deve ser o mais aborrecido do mundo. Faço downloads durante a noite de noticiários de todo o mundo, preciso de estar dentro das notícias, dos acontecimentos recentes, porque o intérprete não tem tempo para pensar quando chega a hora de traduzir”, diz.
A profissão que escolheu é sinónimo de liberdade, dada a independência que permite no trabalho do quotidiano, mas é também de grande risco. “Tenho um colega mais velho que diz que só se é bom até ao último trabalho que se fez”, explica. A partir do momento em que se comete um erro, “acabou”. Para evitar falhas, aconselha o também professor, há que ler muito, comprar dicionários e falar, falar sempre.
Em relação à língua portuguesa, este apaixonado por gramáticas e dicionários tem um discurso muito pragmático e incisivo. Sem sentimentalismos lusitanos, que não os tem, considera que “é uma pena que as pessoas em Macau não se tenham apercebido da utilidade de saber falar português”. Dando como exemplo gente que conhece, que “teve o primeiro contacto com a língua portuguesa em Macau e que agora tem carreiras profissionais de sucesso na China e em organizações internacionais”, Leo Stepanov recorda que “o português é uma das línguas mais faladas do mundo”, para em seguida apresentar um outro argumento de peso. “Cheguei a ter alguns alunos chineses que queriam umas explicações de português antes de irem para as aulas do IPOR. Expliquei-lhes que quem sabe português tem muita mais facilidade em aprender outras línguas latinas, mas não o contrário. Quem sabe português chega a Itália e está lá muito bem, mas um italiano em Portugal já é um caso diferente”, defende. Ou seja, não é só o mundo lusófono que se passa a conhecer, mas também o “da América Latina e de países europeus com línguas latinas”.
Com um tom crítico, o intérprete considera que “em Macau, território com o tamanho de uma aldeia mas características de um país, as mentalidades ainda são um pouco fechadas”. Isto para dizer que “há pessoas que olham para o português como se tivesse sido algo dado, uma coisa daqui, mas já as que viajam percebem e começam logo a apreciar a utilidade”. É tudo uma questão de saber agarrar as oportunidades que estão à volta, diz o russo que aprendeu a falar português e cantonês em Macau, que tem no inglês uma das várias segundas línguas e que, um dia destes, consegue comunicar em árabe e coreano.
Isabel Castro
Fotografia: António Falcão/ bloomland.cn

quarta-feira, 28 de novembro de 2007

Patuá, sede e mais interacção, O lado de Hong Kong que não vem nos postais

Conselho das Comunidades reelege corpos sociais

Patuá, sede e mais interacção

A candidatura do patuá a património intangível da Humanidade é uma aposta forte não só das associações locais, mas também das casas de Macau de todo o mundo. Isto ficou, mais uma vez, provado na reunião do Conselho Geral do Conselho das Comunidades Macaenses, um encontro que se realizou ontem. Entre os temas discutidos, destacaram-se a promoção da gastronomia macaense e a nova sede.
O dia ficou marcado pela reeleição dos corpos sociais deste organismo. Leonel Alves e José Manuel Rodrigues viram os seus cargos na presidência dos conselhos geral e permanente, respectivamente, serem renovados por mais três anos. Ambos foram eleitos por aclamação e unanimidade, com a maioria dos membros presentes.
A única novidade do acto eleitoral foi a nomeação do presidente da Casa de Macau da Califórnia, nos Estados Unidos, Henrique Manhão, para vice-presidente do Conselho Permanente das Comunidades Macaenses. O mesmo responsável transitou do Conselho Geral para o órgão de carácter permanente.
Recorde-se que Conselho Permanente das Comunidades Macaenses adoptou um regime de rotatividade. Isto quer dizer que, de três em três anos, o lugar de vice-presidente será ocupado por um presidente de Casa de Macau diferente.
De acordo com o presidente do Conselho Permanente, José Manuel Rodrigues, o grande projecto a curto prazo é a formulação do processo de candidatura a património intangível da Unesco da “língua maquista”. Um trabalho que está a ser reforçado, para que tudo corra seguindo as aspirações da comunidade macaense local e da diáspora. “Seria uma grande prenda para Macau se conseguíssemos tornar este sonho realidade por altura do 10º aniversário da criação da RAEM”, sublinhou o mesmo responsável, em declarações ao Tai Chung Pou.
Além do esforço para atrair sangue novo para as Casas de Macau, discutiram-se ainda outros projectos de âmbito cultural, nomeadamente a gastronomia típica das mesas macaenses. Uma missão que está actualmente a cargo de uma associação própria, criada conjuntamente por sete instituições locais. A Confraria da Gastronomia Macaense foi estabelecida em Janeiro deste ano.
O objectivo principal deste organismo é incentivar a investigação do património gastronómico macaense, apostando em várias áreas, desde as receitas à arte e técnica da cozinha tradicional e os próprios produtos utilizados. Este trabalho de promoção aplica-se também ao cenário internacional.
Durante a reunião dos membros do Conselho, houve ainda espaço para a exposição do projecto da nova sede que irá abrigar as associações criadas na RAEM viradas para a comunidade macaense. O anúncio foi feito ontem por José Manuel Rodrigues na sessão de abertura do III Encontro das Comunidades Macaenses, uma cerimónia presidida pelo Chefe do Executivo. Nesta ocasião, o também presidente da Associação para a Promoção da Instrução dos Macaenses revelou ainda “ser legítima aspiração de todos poder inaugurar este edifício histórico no próximo encontro”, que está agendado para 2010.
Na mesma sessão, manifestou-se ainda a vontade de admissão de novos membros no Conselho das Comunidades Macaenses, uma medida que voltará a ser discutida no plenário do próximo ano. “Há algumas associações locais ligadas à cultura macaense que surgiram recentemente, como é o caso da Confraria, e que estão interessadas em pertencer à organização”, assinalou ao Tai Chung Pou Leonel Alves.
Os representantes das 12 Casas de Macau tiveram ainda a oportunidade de fazer chegar ao Conselho Geral as suas preocupações e propostas. “Foi uma oportunidade para o diálogo sobre a interacção entre as diversas organizações e o conselho. Tem havido alguma dificuldade em estabelecer um contacto directo”, acrescentou. Para colmatar este problema, irá proceder-se à reformulação dos Estatutos do organismo.
No programa do III Encontro das Comunidades Macaenses, está reservada para hoje a cerimónia da tomada de posse dos corpos sociais da Confraria da Gastronomia Macaense, um evento que tem como palco o Teatro D. Pedro V e é seguido de uma conferência sobre Cultura Gastronómica. Esta palestra conta com quatro oradores oriundos de Portugal, Macau e China.

As diferentes lutas das Casas de Macau na diáspora

O tempo e o espaço como inimigos

Das Américas à Europa, passando pela Oceânia. No total, são 12 as Casas de Macau espalhadas pelo mundo. O propósito da existência destas organizações é juntar a comunidade, fazendo com que todos se sintam em casa, mesmo estando fora. Uma missão difícil, dadas as longas distâncias, mas que está a ganhar contornos problemáticos quando se olha para as novas gerações. É o tempo, neste momento, o adversário mais forte da preservação da identidade macaense.
Sangue novo precisa-se na comunidade. Este poderia ser o tema da campanha que está actualmente a ser encetada pelas Casas de Macau e pelas associações locais, que vão estar juntas até domingo por ocasião do III Encontro das Comunidades Macaenses. A Cultura e as Tradições foram as armas escolhidas pelas organizações responsáveis para combater o afastamento dos jovens.
O patuá está em vias de partir para a UNESCO compilado num dossiê de candidatura a património intangível. O dialecto maquista atrai os mais novos com as suas peças de teatro, não só em Macau como também no Brasil e noutros pontos do globo. Além disso, há ainda a intenção de conquistar a juventude pelo estômago, através dos sabores da cozinha macaense.
A falta de adesão dos mais jovens é um problema partilhado por qualquer comunidade macaense do mundo. No entanto, as dificuldades da diáspora não se esgotam aqui. A milhares de quilómetros de distância, o espaço geográfico também faz das suas.
No meio de centenas de macaenses presentes no III Encontro das Comunidades Macaenses, há pessoas da primeira, segunda e terceira gerações residentes no estrangeiro. Por isso, não é de estranhar que, em alguns casos, a língua portuguesa seja substituída pelo inglês. Só no estado norte-americano da Califórnia concentra-se uma grande parte da diáspora. Muitos elementos desta comunidade, pessoas que já nasceram nos países de acolhimento, não dominam nem o português nem o cantonês. Algo que provoca um sentimento de preocupação e, até, de indignação.
“Há macaenses dos Estados Unidos e do Canadá que pertencem a Clubes Lusitanos, mas que mal sabem o que quer dizer a palavra ‘lusitano’ ou até mesmo ‘diáspora’”, criticou o presidente da Casa de Macau no Rio de Janeiro, Pedro Almeida. Segundo o mesmo responsável, alguma coisa deve ser feita urgentemente para que sejam promovidas aulas de língua portuguesa. “É essa uma das raízes da cultura macaense”, sustentou.
O abandono do português tem, porém, circunstâncias históricas. Quem o defende é o ex-presidente do Club Lusitano dos Estados Unidos, Nuno Prata da Cruz. Um macaense que partiu para a terra do Tio Sam com 11 anos de idade, recuperando o domínio da língua portuguesa por via do casamento.
“Há uma história que explica este estado das coisas. Muitos macaenses foram obrigados a emigrar para Hong Kong e para Xangai, numa altura que não havia emprego em Macau”, contou o presidente da Associação de Empresários Macaenses dos Estados Unidos.
Nas palavras de Nuno Prata da Cruz, não se pode dizer que houve um abandono da língua portuguesa. Só que muita gente aprendeu inglês ainda na China e partiu para outros países anglófonos. “Há muito interesse por parte dos jovens macaenses, mas temos poucos recursos. Era bom que alguns professores de Macau organizassem cursos de Verão na nossa Casa”, afirmou, em tom de desafio.
Prova do interesse das novas gerações na língua portuguesa são as iniciativas dadas ontem a conhecer ao Conselho das Comunidades Macaenses pela presidente da Casa de Macau de Sidney, Yvone Herrero. Na terra dos cangurus, a luta para cativar a juventude é dificultada pela dispersão geográfica da comunidade.
“É muito difícil reunir mais de 750 macaenses num território tão grande como a Austrália, tendo ainda em conta os elementos da Nova Zelândia. Isso coloca um grande desafio em termos de logística”, sublinhou a mesma responsável, um exemplo de uma representante que apenas se expressa na língua de Sua Majestade.
A organização australiana está empenhada nesta luta que é de todos os macaenses. “Para encorajar a juventude, estes encontros desempenham um papel muito importante para apresentar os nossos filhos e netos às tradições, mas também é necessário trabalhar dentro dos nossos países”, defendeu Yvone Herrero.
Para isso, a Casa de Macau em Sidney está a organizar um programa de actividades socioculturais. Iniciativas que não passam apenas pelas lições de culinária ou tai chi, mas também por aulas de português. Tudo com o objectivo de superar os efeitos erosivos do tempo na cultura “maquista”.
Os macaenses da Austrália não se ficam, porém, por aqui. Cada vez mais, as barreiras geográficas podem ser derrubadas com a ajuda das novas tecnologias. “Todas as associações estão ligadas à Internet e ligam-se frequentemente por vídeo-conferência”, mostrou.
A diáspora macaense é um misto de semelhanças e diferenças. Se, de um lado, existe o problema do português, há ainda quem não tenha quaisquer dificuldades no domínio da língua de Camões. No Brasil, a verdadeira dor de cabeça dos decanos macaenses é a falta de conhecimentos da cultura oriental.
“Se eu perguntar quem foi o primeiro rei português, todos sabem, mas se perguntar quem foi o primeiro imperador chinês poucos o identificam”, observou Pedro Almeida. “O macaense é uma mistura do DNA de Portugal e da China, mas 95 por cento não sabe ler um carácter chinês”, lamentou.
Para o presidente da Casa de Macau no Rio de Janeiro, a carência de conhecimentos orientais é uma questão que prejudica o futuro da comunidade, não se resolvendo apenas com peças de patuá ou aulas de culinária. “Se não conhecemos as nossas raízes é difícil passar as tradições para as gerações vindouras”. E o relógio não espera.
Alexandra Lages

Residentes de Tin Shui Wai queixam-se
de falta de condições de vida

A cidade que não vem nos postais

A comunicação social de Hong Kong baptizou a zona satélite de Tin Shui Wai de “cidade patética”, mas o termo não convence nem os residentes nem os deputados ao Conselho Legislativo que saíram à rua para uma manifestação no domingo passado, reivindicando mais infra-estruturas e subsídios para transportes. Não é esta parte da cidade que é patética, mas sim a Administração, argumentaram os manifestantes.
“Acabar com as limitações! Reconstruir o novo ‘Tin’!”, ouviu-se nas ruas da cidade vizinha. As palavras de ordens e bandeiras erguidas não deixavam dúvidas sobre as razões do descontentamento. A manifestação, que teve a cidade satélite como palco mas chegou também à área de Central, foi a maior de sempre destes residentes que lutam por recursos básicos. As limitações que os afectam não são de ordem psicológica, mas sim derivadas de um planeamento urbanístico que os deixou afastados da prosperidade económica que o centro da cidade vive.
Localizada no extremo noroeste dos Novos Territórios, Tin Shui Wai era uma aldeia rodeada de charcos e pântanos. Depois do proprietário ter concordado com a venda dos terrenos ao Governo, a área foi transformada numa cidade satélite de 430 hectares, conhecendo grande desenvolvimento no final da década de 1990, sendo que estão ainda em construção vários empreendimentos imobiliários.
Olhando para o cenário verde e o espaço aberto da zona, com ruas largas e amplas, parece ser o local perfeito para relaxar ao final do dia, numa cidade que vive a um ritmo muito acelerado. “Tin Shui Wai é um bom lugar. Estávamos muito contentes no início”, diz M. Chan, mãe de duas crianças e terapeuta de profissão.
O facto de ser uma zona espaçosa e de o ar ser mais puro agrada-lhe, mas tal não significa que esteja satisfeita. É que, para chegar ao local de trabalho, gasta cerca de 500 dólares de Hong Kong por mês em transportes públicos. “Gasto ainda dinheiro com as refeições”, acrescenta. Os mercados de Tin Shui Wai praticam preços mais caros do que os espaços similares do resto do território, o que faz com que tenha que percorrer, duas vezes por semana, oito quilómetros até Yuen Long, onde os bens alimentares são mais acessíveis.
A distância da cidade satélite é uma ameaça para alguns residentes com postos de trabalho do outro lado de Hong Kong. Carly Lam é técnica de reparação de aparelhos de ar condicionado em hospitais e só trabalha sazonalmente. Ainda assim, é difícil conjugar a vida familiar com as necessidades laborais. Porque os transportes públicos nem sempre são pontuais e tem que deixar o filho na escola antes de ir para o trabalho, Lam opta, com frequência, por um táxi, o que implica começar o dia com um gasto extraordinário que ultrapassa os duzentos dólares de Hong Kong. “No ano passado os hospitais desencadearam uma série de despedimentos e eu não me posso arriscar a chegar atrasada por viver longe”, justifica.
Fanny Lam costumava viver em Kowloon mas as finanças familiares sofreram um revês com o fracasso dos negócios do marido. A mudança para a cidade Tin Shui Wai custou-lhe a vida social. “Todos os meus amigos estão em Kowloon e tínhamos o hábito de nos encontrarmos. Os preços dos transportes fazem com que seja difícil sair daqui, os contactos acabam por ser pelo telefone e vão sendo cada vez mais esporádicos.”
Os problemas da vizinhança são de diferentes ordens, mas conheceram um agravamento quando, há sete anos, foram disponibilizados 26.650 apartamentos para arrendamento na zona noroeste da área. As rendas baratas e a larga oferta de unidades habitacionais levaram para Tin Shui Wai muitas famílias com baixos rendimentos, trabalhadores sem qualificações e os novos migrantes da China.
Infelizmente, as infra-estruturas da cidade satélite não acompanharam o crescimento populacional. Actualmente, os 260 mil residentes partilham uma piscina, uma clínica pública que está fechada aos domingos e não existe um único espaço para que possa ser feito um concerto ou uma peça de teatro.
Em Abril de 2004, um morador dos novos conjuntos de apartamentos suicidou-se depois de ter matado a mulher e os seus dois filhos. O caso despertou a atenção dos serviços sociais, levando à revisão do sistema de serviços destinados às famílias e à implementação de novas medidas para os agregados de Tin Shui Wai.
Foram criados três centros de serviços integrados para as famílias, mas os problemas sociais e as tragédias não acabaram. No mês passado, uma mulher drogou os filhos e atirou-os da janela, tendo saltado em seguida. Para o responsável pelos serviços de acção social, Aaron Wan Chi-keung, em declarações recentes ao jornal Ming Pao, está na altura de o Governo de Donald Tsang expandir o apoio a famílias carenciadas e alvo de diversas pressões, mais a mais tendo em conta os resultados financeiros esperados para este ano.
Questionada sobre o ambiente do bairro onde vive, Jennifer Yu, de apenas 10 anos, fala logo nos suicídios, sinal de que é uma imagem presente no seu quotidiano, não obstante ser ainda uma criança. “Muitas pessoas suicidam-se... algumas pessoas são pobres, algumas vêm do Continente e têm poucos amigos”, explica. Os miúdos e miúdas com quem convive diariamente enquadram-se nestas categorias.
A escassa oferta de infantários e de centros para jovens em Tin Shui Wai faz com que muitas crianças desta zona estejam expostas a perigos diversos, e mesmo as crianças de famílias com situações económicas menos desfavorecidas não escapam a esta realidade. Eric Chung mudou-se para as Kingswood Villas há uma década e admite que, de vez em quando, o filho é deixado em casa sem a presença de nenhum adulto. O serviço de “babysitting” é demasiado caro para as posses de Chung, que sai tarde do trabalho. Presente na manifestação, recusou protagonismos nas queixas. “Os meus vizinhos enfrentam situações piores”, disse.
Vick Chan está na universidade a estudar para ser assistente social. Também ele vive numa cidade satélite, a zona nova de Tseung Kwan O, e não tem hesita quando instada a fazer uma comparação. “Tin Shui Wai tem condições bastante inferiores em termos de infra-estruturas e os espaços comuns são consideravelmente piores. Os transportes são muito caros.” Chan participou na manifestação como forma de apoiar o melhor amigo, que vive em Tin Shui Wai.
No protesto de domingo passado, a população pediu ao Governo de Donald Tsang melhores condições de vida e infra-estruturas várias, como um hospital, uma biblioteca, uma piscina, infantários e uma esquadra da polícia. No dia anterior à manifestação, declarações do secretário para a Alimentação e Saúde vieram dar ainda mais força aos protestos. Chow Yat-ngok afirmou que, a longo termo, as autoridades poderão pensar na construção de um hospital na cidade satélite. “Penso que essa hipótese poderá ser ponderada durante os próximos dez anos.”
Cerca de oitocentos residentes saíram a pé e de bicicleta de Tin Shui Wai, antes de apanharem um autocarro para Central, onde prosseguiram a marcha em direcção à sede do Governo. Aí, exigiram um hospital, subsídios para os transportes públicos e mais oportunidades de emprego.
Ronny Tong, deputado do Partido Cívico, esteve ao lado dos residentes descontentes. Observador do que se passa em Tin Shui Wai, lamenta que o Executivo não seja capaz de disponibilizar verbas para garantir que os serviços mínimos de saúde são disponibilizados à população da zona. “A cidade patética é Hong Kong e não Tin Shui Wai. As falhas nas políticas desta zona são lamentadas por todas as pessoas de Hong Kong.”
O número de participantes não correspondeu às expectativas da organização, que contava com a adesão de, no mínimo, 1500 pessoas. M. Chan e as amigas estavam irritadas com o facto de os vizinhos terem ficado a olhar para o grupo de manifestantes, em vez de se juntarem a eles. “Não estamos a lutar só por nós, mas pela melhoria das condições de vida de todos”, sustentou.
Chung Yuen-yi, a responsável pela organização da marcha, admitiu a desilusão. “Foi a primeira vez que organizámos um protesto e estávamos demasiado optimistas. Mas aqueles que vieram fizeram-no com o coração. Para Chung, houve um outro factor que contribuiu para a timidez dos residentes de Tin Shui Wai: houve uma forte presença das forças pró-democráticas, com várias bandeiras de partidos visíveis.
Na manifestação foi possível ver o antigo candidato a Chefe do Executivo, Alan Leong Kah-kit, e o activista Leung Kok-hung, conhecido por “Long Hair”, que fizeram os seus discursos durante o protesto. Wong Kwok-hing, deputado da União das Federações do Comércio de Hong Kong (FtU), partido pró-Pequim, também discursou, mas foi o único desta ala política a fazer-se notar na tarde de domingo.
A organização da manifestação contou com o apoio, mesmo ao nível financeiro, do Partido Cívico. Chung Yuen-yi contou que a FtU disponibilizou-se para apoiar a iniciativa, mas que houve uma recusa “emocional” dos participantes quando perceberam que também os partidos pró-democracia estavam a planear participar na marcha. A responsável não queria que o protesto acabasse por ser apenas mais um momento de confronto entre posições políticas adversárias, mas sim que fosse chamada a atenção para os reais problemas da população.

Kahon Chan com Isabel Castro

terça-feira, 27 de novembro de 2007

Começou o Encontro das Comunidades Macaenses, Castanheira Lourenço vai voltar ao TUI

Inauguração do III Encontro das Comunidades Macaenses

1700 juntos por Macau

São cerca de 1700 pessoas no total. Todas com alguma ligação, por mais ténue que seja, a Macau e à cultura macaense. Grande parte desta gente chegou dos quatros cantos do mundo propositadamente para participar no III Encontro das Comunidades Macaenses, um evento cuja sessão de abertura teve ontem lugar na Doca dos Pescadores. Entre as quatro paredes da sala do banquete, estava ali representada toda a diáspora dos filhos da terra.
Um misto de vivências e emoções. Assim se pode classificar o ambiente do jantar ontem oferecido pelo Chefe do Executivo, Edmund Ho. Há os idosos, os filhos, os netos e as crianças que correm entre as mesas. Alguns nunca tinham conhecido a terra dos pais e dos avós. Outros há, que partiram do território fazem vários anos e até décadas, aproveitando esta iniciativa para rever familiares e amigos.
É o caso de Roberto Gomes. A origem não é difícil de adivinhar. Basta reparar na musicalidade dos sons que terminam as palavras. Vive no Brasil desde 1967 e há seis anos que não punha os pés em Macau. Na terra que o viu nascer, tem uma irmã e dois tios “em idade avançada”. O encontro dos macaenses foi a oportunidade que faltava para passar o Natal e o Ano Novo com estes familiares. Algo que não acontecia há mais de 40 anos.
Seja em Macau ou no estrangeiro, os macaenses têm um papel muito importante para o desenvolvimento da RAEM. A ideia foi ontem defendida por Edmund Ho, durante o seu discurso. “O Governo irá continuar a prestar forte apoio à comunidade macaense para o seu crescimento”, garantiu o Chefe do Executivo a todos os presentes no evento.
Cada filho da terra assume uma função de “agente de ligação privilegiado entre Macau e o Mundo” e, graças ao apoio e cooperação da comunidade macaense ao longo dos tempos, foi possível desenvolver e consolidar com grande êxito a vocação do território como plataforma de cooperação económica e comercial entre a China e os países de língua portuguesa, vincou o governante máximo da RAEM.
Os três Encontros das Comunidades Macaenses que se realizaram desde o estabelecimento da região serviram para “consolidar o relacionamento de todas as Casas de Macau espalhadas pelo mundo”, afirmou o presidente da Associação para a Promoção da Instrução dos Macaenses, José Manuel Rodrigues, cujo discurso abriu a cerimónia de inauguração.
“No contexto da diversificação das actividades das Casas de Macau, criaram-se associações de empresários macaenses na diáspora no intuito de reforçar as relações económicas e comerciais com a RAEM, divulgando o seu desenvolvimento e a nova realidade económica do território nos respectivos países de acolhimento”, acrescentou o também advogado.
Palavras às quais Carlos Gonsalves e a família estavam completamente alheios. O cidadão canadiano é uma prova viva de quão elástico pode ser o conceito de identidade macaense. Qualquer saudação, seja em cantonês ou em português, que era proferida no palco, na realidade, “soavam a chinês” para o homem que fez de Toronto a sua casa há 39 anos. Acontece que é o inglês a sua língua de comunicação.
Carlos não nasceu em Macau, mas sim na China. É a primeira vez que participa no encontro. A razão? “Acho que estou a ficar velho e esta era a última vez que tinha para vir cá”, explicou.
Filho de pai português nascido em Xangai e mãe alemã, é um exemplo perfeito de alguém que tem apenas uma relação ténue com a comunidade macaense, mas que, mesmo assim, se sente parte dela. “O meu avô era um capitão da Marinha e chegou aqui no século XIX. Acho que é do meu pai que vem realmente a ligação a esta cultura”, frisou.
Uns falam o português com o sotaque típico de Macau, outros com o da terra do samba e até há quem introduza palavras em inglês no meio do discurso. São assim os 1300 participantes que chegaram do estrangeiro para dar corpo ao III Encontro dos Macaenses. Um evento organizado com o esforço de associações locais e Casas de Macau de todos os pontos do Globo que se estenderá até ao próximo domingo.
Alexandra Lages
Fotografia: António Falcão/ bloomland.cn

Castanheira Lourenço vai voltar a depor no julgamento
de Ao Man Long

Juízes querem saber mais

O antigo coordenador do Gabinete para o Desenvolvimento de Infra-estruturas (GDI), Castanheira Lourenço, vai regressar ao Tribunal de Última Instância (TUI) para prestar esclarecimentos adicionais no âmbito do julgamento de Ao Man Long. O TUI decidiu arrolar de novo a testemunha depois de ontem terem sido adicionados três artigos à acusação, relacionados com os trabalhos de manutenção da praça das Portas do Cerco.
Ao Tribunal vai também voltar Custódia de Sousa, consultora do GDI que esteve a trabalhar no projecto em questão, e que foi igualmente ouvida no TUI no passado dia 19. A técnica regressa a pedido da defesa do antigo secretário para os Transportes e Obras Públicas.
O aditamento que motivou o arrolamento destas duas testemunhas surgiu na sequência do depoimento feito por um investigador chefe do Comissariado Contra a Corrupção (CCAC) sobre a manutenção e gestão da praça das Portas do Cerco, obra que foi adjudicada directamente à Tong Lei, num processo da responsabilidade do GDI. A acusação sustenta que a empresa de Tong Kin Man foi favorecida por Ao Man Long em diversas obras, sendo que, no caso concreto, o secretário é acusado de ter aprovado o despacho da adjudicação directa à Tong Lei sem que o objecto social desta contemplasse o tipo de trabalho que o contrato definia.
Ora, o investigador do CCAC, de nome Wong Kim Fong, disse ontem perante o colectivo de juízes que a Tong Lei contratou uma outra empresa para levar a cabo os trabalhos contemplados no contrato assinado com o Gabinete para o Desenvolvimento de Infra-estruturas. O TUI considerou a informação de relevo para o caso e aditou três artigos à acusação, em que se afirma que a Tong Lei não chegou a fornecer os serviços definidos no contrato, tendo a Nam Ou prestado os serviços em causa, por um montante não inferior a 300 mil patacas.
Recorde-se que, na passada semana, aquando da ida de Castanheira Lourenço ao Tribunal que está a julgar Ao Man Long, a questão da adjudicação do contrato de manutenção e gestão da praça das Portas do Cerco foi amplamente debatida - sem que tivesse sido feita qualquer referência à Nam Ou -, tendo o antigo responsável pelo GDI considerado perfeitamente normal o procedimento adoptado na altura em relação à Tong Lei.
Castanheira Lourenço minimizou o facto de a empresa de Tang Kin Man não ter, aquando dos acontecimentos, este tipo de funções definidas no objecto social. O ex-coordenador sustentou que, se uma empresa é capaz de gerir o volume de trabalho resultante de uma empreitada de grandes dimensões, está igualmente capacitada para efectuar trabalhos simples de manutenção de materiais e equipamentos.
Ainda assim, pelo que ontem foi dito em Tribunal, a Tong Lei procedeu ao alargamento das suas competências junto do Registo Comercial, tendo enviado a documentação necessária ao GDI.
O regresso de Castanheira Lourenço e de Custódia de Sousa ao TUI ficou a conhecer-se durante uma sessão que decorreu em moldes semelhantes aos da tarde de sexta-feira passada. Ontem, foram ouvidos quatro trabalhadores do Comissariado Contra a Corrupção, sendo que todos eles recorreram ao método de depoimento empregue na sessão anterior e veementemente contestado pela defesa: as testemunhas apoiaram-se em meios informáticos para explicarem como é que fizeram as investigações e chegaram à conclusão de que havia matéria para enviar para o Ministério Público (MP).
Assim sendo, a inquirição – praticamente inexistente por parte do MP, que arrolou as testemunhas – consistiu na projecção das provas documentais apreendidas durante as buscas feitas, sobretudo à residência de Ao Man Long.
Logo no início da sessão, que foi já a décima, o advogado do ex-secretário, Nuno Simões, voltou a manifestar-se contra o método empregue pela testemunha, alegando que a extensão dos depoimentos inviabiliza o contraditório, mas de nada lhe valeu o protesto. O presidente do colectivo, Sam Hou Fai, deixou a testemunha prosseguir e esta foi inquirida pelo Ministério Público uma hora e meia depois.
De sublinhar ainda que Nuno Simões pediu para que constasse na acta a forma como os depoimentos foram prestados e o facto de se basearem, em grande parte, nos documentos encontrados na residência do arguido, meio de obtenção de prova para a qual tinha pedido a nulidade, já na sexta-feira passada.
Recorde-se que o TUI teve diferente entendimento, considerando o meio de obtenção válido, pelo que a defesa decidiu recorrer da decisão do colectivo de juízes. Em causa está o facto de Ao Man Long não ter sido notificado para estar presente ou se fazer representar aquando da diligência feita pelo CCAC na casa onde vivia, a residência oficial, algo que a defesa considera ir contra o disposto no Código do Processo Penal. O TUI tem outra leitura, baseada numa decisão tomada há alguns meses pelo Tribunal de Instrução Criminal, que reconhece validade ao meio de obtenção de prova por se tratar de uma residência oficial.
Quanto ao teor dos depoimentos feitos pelos elementos do CCAC que participaram na investigação que deu origem ao processo, seguiram todos eles, à excepção do último (ver texto nesta página), o mesmo formato. Nos ecrãs gigantes da sala de audiências foram mostradas páginas dos “cadernos da amizade” do arguido, com as testemunhas a descodificaram as iniciais usadas por Ao Man Long e as diversas anotações, relacionando-as com a adjudicação de empreitadas às empresas envolvidas no processo.
Mak Chi Keong, um investigador principal do CCAC, esteve toda a manhã a demonstrar a relação próxima entre o antigo secretário e o empresário Ho Meng Fai, sublinhando a coincidência entre as notas tomadas pelo arguido e o valor das empreitadas adjudicadas. Ao Tribunal a testemunha levou ainda os dados fornecidos pela Companhia de Telecomunicações de Macau (CTM) em relação aos contactos telefónicos feitos entre o ex-governante e o empresário, mostrando que, por altura da abertura de concursos e da escolha das empresas, os telefonemas eram mais frequentes, sendo quase todos feitos por Ao Man Long.
Tal como Mak Chi Keong, as testemunhas que se seguiram basearam as suas conclusões ainda nos cheques e documentação vária apreendida nas empresas que foram alegadamente favorecidas pelo arguido, fazendo em seguida comparações com os registos que Ao fazia do dinheiro de que dispunha, uns “activos” que constam dos “cadernos da amizade”. Foram também focados os encontros, sempre fora do horário de expediente, que o ex-secretário tinha com os empresários, registados nas suas agendas e confirmados, nalguns casos, pelos próprios investigadores do CCAC junto dos restaurantes e hotéis onde decorreram.
As testemunhas arroladas pelo MP destacaram também o facto de o arguido ter entrado em contacto com os empreiteiros quando foram verificados acidentes mortais nas obras que lhes tinham sido adjudicadas, considerando esta atitude “estranha”. Questionado pela defesa acerca do motivo da estranheza, Mak Chi Keong disse ser uma “dedução” sua.

Lai quer perito no TUI, defesa opõe-se

Em que ficamos?

O juiz Lai Kin Hong, um dos membros do colectivo que está a avaliar o processo de Ao Man Long no Tribunal de Última Instância, pediu ontem ao presidente do TUI, Sam Hou Fai, que fosse chamado um perito para determinar a causa das obras complementares feitas ao muro do edifício da Unidade Táctica de Intervenção da Polícia, aquando do projecto de alargamento e de renovação das Portas do Cerco.
De acordo com o que foi sendo dito no TUI pelas várias testemunhas ouvidas acerca do assunto, os trabalhos complementares deveram-se ao facto das forças policiais terem pedido, já depois do projecto em andamento, obras que não estavam contempladas no plano inicial. No entanto, um investigador do Comissariado Contra a Corrupção veiculou ontem a possibilidade de ter havido falhas na concepção dos projectos, não só em relação ao muro mas também quanto ao passeio provisório feito no mesmo local, e ainda no que toca ao sistema de ventilação do parque subterrâneo de autocarros das Portas do Cerco. A testemunha, a trabalhar no CCAC há já alguns anos, identificou-se como sendo arquitecto e com vasta experiência em obras.
Lai Kin Hong solicitou a Sam Hou Fai que fosse chamado ao Tribunal um perito na matéria, vincando que este deve ser requisitado fora de Macau, numa região vizinha, uma vez que, disse, todos os especialistas neste âmbito têm interesse no processo. Sam Hou Fai não se opôs e o Ministério Público concordou com a ideia.
Bem diferente foi a reacção do advogado de Ao Man Long. Nuno Simões refutou a ideia sublinhando que, no julgamento em causa, não se está a determinar a eventual ilegalidade administrativa ou possíveis falhas nos projectos. Ao arguido foram imputados crimes e compete ao TUI avaliar da legalidade, pelo que não se pode fazer substituir por um perito, continuou a defesa. A terminar o seu protesto, Simões considerou ainda que um perito contratado no exterior está longe de ser a pessoa certa para avaliar uma obra no território, por desconhecer os regulamentos e directrizes de Macau.
Lai Kin Hong ainda contra-argumentou, justificando que em causa está também apurar se os actos são lícitos ou ilícitos, sendo que correspondem molduras penais distintas.
Ninguém conseguiu perceber qual a decisão final de Sam Hou Fai – se dá ou não razão à pretensão da defesa – uma vez que o presidente do colectivo decidiu acabar a sessão mal o presidente do Tribunal de Segunda Instância (destacado para o TUI em substituição do juiz que participou na fase de instrução do processo) terminou a resposta a Nuno Simões. Espera-se, assim, que o assunto seja abordado já amanhã, dia para o qual está marcada a 11ª sessão do julgamento.

Dos famosos cadernos

Têm sido uma constante deste julgamento e levaram já às mais diversas interpretações. A defesa considera nula a forma como foram apreendidos e já pediu que não sejam considerados prova mas, por enquanto, são uma das fontes principais da acusação para sustentar que Ao Man Long recebia compensações ilícitas de empresários de construção civil de Macau.
Sabia-se já que, no total, foram apreendidos 11, sendo que todos eles estavam guardados na residência do antigo secretário. Mesmo em língua chinesa, o idioma com que são mencionados originalmente, a expressão que os identifica é dúbia. Ontem, ficou-se finalmente a perceber que não foi manuscrita por Ao.
Os famosos “cadernos da amizade” não terão sido baptizados com este nome pelo arguido, de acordo com o que foi possível perceber durante a inquirição de uma testemunha pelo advogado de defesa de Ao Man Long. Nuno Simões decidiu esclarecer a questão junto de um investigador do Comissariado Contra a Corrupção, que recorreu precisamente a estes cadernos para explicar como fez as suas investigações.
Segundo a testemunha, são blocos de notas do tamanho de um palmo. O nome está impresso e não foi manuscrito. Simões perguntou duas vezes se terá sido o arguido a imprimir a designação, tendo obtido sempre a mesma resposta: o nome não foi escrito à mão.
De acordo com a acusação, Ao Man Long anotou nestes cadernos os montantes acordados em troca das adjudicações de obras, os nomes das empresas adjudicatárias e os projectos em questão. Nas duas últimas sessões, tem sido possível ver partes dos cadernos, digitalizadas e projectadas pelos investigadores do CCAC, que descodificaram siglas e iniciais usadas pelo arguido na contabilidade que alegadamente fazia aos valores de que dispunha, tanto em casa como nos cofres de bancos e em contas bancárias.
Isabel Castro
Fotografia: António Falcão/ bloomland.cn

segunda-feira, 26 de novembro de 2007

Dossiê do patuá pode chegar ao Governo em 2008, A sombra do recurso

Dossiê do patuá pode chegar ao Governo em 2008

Encontro dos Macaenses dá primeiro passo

O dossiê da candidatura do patuá a património intangível da Unesco deverá chegar ao Governo para apreciação antes de seguir para o organismo das Nações Unidas já no próximo ano, avançou o presidente da Associação para a Promoção da Instrução dos Macaenses (APIM), José Manuel Rodrigues. O advogado falou aos jornalistas à margem da cerimónia de atribuição do “Prémio Identidade”, atribuído este ano à APIM pelo Instituto Internacional de Macau.
De acordo com o mesmo responsável, todo este processo da apresentação da candidatura ao Executivo depende do desenvolvimento do trabalho de pesquisa e elaboração que está neste momento a cargo da Universidade de Macau (UM). “Neste momento, estamos a finalizar um protocolo com a UM que deverá ser assinado com sete associações locais ligadas à comunidade macaense local, encarregando uma equipa do estabelecimento de ensino para elaborar o dossiê que futuramente será apresentado ao Governo da RAEM”, acrescentou José Manuel Rodrigues.
A candidatura do dialecto de Macau a património intangível da Humanidade é um projecto com um valor acrescentado para a APIM. “É uma responsabilidade muito grande levar a bom porto esta missão”, realçou o mesmo responsável.
Recorde-se que esta iniciativa passou a contar também com o apoio do Governo de Portugal desde Julho, altura em que os promotores desta iniciativa em Macau apresentaram os seus planos em Lisboa. Representando uma das entidades portuguesas envolvidas nesta campanha, o gabinete de candidatura do fado a património intangível da Unesco, Sara Pereira está no território a convite da organização do 3o Encontro das Comunidades Macaenses.
Apesar de não estar muito familiarizada com o patuá, a mesma responsável acredita que o dialecto pode ter hipóteses de vencer a candidatura se a Unesco tiver em conta critérios específicos. “Uma das indicações do programa anterior definia o património intangível como algo que estivesse em risco de extinção. Agora, está a ser preparada uma nova convenção que inclui celebrações de músicas vivas”, explicou, acrescentando que se a organização internacional tiver em conta o requisito antigo “o patuá pode ter mais hipóteses do que o fado”.
A Escola Portuguesa de Macau foi ontem palco do primeiro dia do 3o Encontro das Comunidades Macaenses, um evento que conta com cerca de 1500 participantes oriundos dos cinco continentes. Nesta primeira etapa, foi atribuído à APIM o “Prémio Integridade”, uma distinção criada pelo Instituto Internacional de Macau (IIM) há cinco anos.
Segundo o presidente do IIM, Jorge Rangel, o vencedor foi decidido por unanimidade pelos membros do júri. “A APIM é um instrumento para preparar para a vida, formou gerações de macaenses durante 100 anos e mantém unida a diáspora”, realçou o mesmo responsável.
Por sua vez, o presidente da APIM, encara a premiação com “muito orgulho”. “É positivo a colectividade ver reconhecido o seu trabalho em prol da divulgação das culturas macaense e portuguesa”, destacou.
O “Prémio Identidade” foi criado para contemplar as individualidades e entidades que tenham contribuído de forma segura e continuada para o reforço da identidade macaense. Entre os vencedores incluem-se o Comendador Arnaldo Sale, o escritor e advogado Henrique de Senna Fernandes, a UM por ocasião do seu 25o aniversário, o Padre Manuel Teixeira e o Engenheiro Guimarães Lobato.
No mesmo evento, foram ainda atribuídos os prémios aos vencedores do Concurso de Criação do Logótipo da Confraria da Gastronomia Macaense. A mesma circunstância foi aproveitada para inaugurar a exposição de todos os trabalhos. A mostra vai estar patente nas instalações da Escola Portuguesa de Macau. O evento contou com a presença do Cônsul-geral de Portugal na RAEM, Pedro Moitinho de Almeida, o representante da Presidência portuguesa, João Bosco Mota Amaral, e o presidente do Conselho Geral do Conselho das Comunidades Macaenses, Leonel Alves.
Para hoje, o segundo dia do 3o Encontro das Comunidades Macaenses, está marcada a reunião dos presidentes das Casas de Macau e das associações locais com os dirigentes da Fundação Oriente, na Casa Garden, seguido de um almoço. A sessão inaugural do encontro vai realizar-se mais tarde, às 18:00, no Coliseu Romano da Doca dos Pescadores.
O momento alto do dia está, contudo, guardado para as 19:30, no Centro de Convenções do mesmo local. O Chefe do Executivo, Edmund Ho, irá oferecer um jantar a todos os participantes, um evento que será acompanhado de um espectáculo de variedades oferecido por artistas de Cantão.
Alexandra Lages
Fotografia: António Falcão/ bloomland.cn

Julgamento de Ao Man Long entra na quarta semana

A sombra do recurso

Tem hoje início a quarta semana do julgamento do ex-secretário para os Transportes e Obras Públicas, Ao Man Long, que responde no Tribunal de Última Instância (TUI) pela alegada prática de 76 crimes, a maioria deles de corrupção passiva para acto ilícito e branqueamento de capitais.
Depois de, nas passadas nove sessões, o colectivo de juízes presidido por Sam Hou Fai se ter dedicado a ouvir os depoimentos prestados por umas dezenas de testemunhas arroladas pelo Ministério Público (MP), o julgamento deverá continuar hoje com a inquirição de pessoas que a acusação considera serem relevantes para a constituição de prova.
No ar paira, contudo, uma incerteza em relação à forma como o julgamento decorrerá daqui por diante, e que se prende com a questão das dificuldades processuais – ou até mesmo impossibilidade – de garantir o direito ao recurso de que o arguido dispõe.
Na sessão da passada sexta-feira, o advogado de Ao Man Long, Nuno Simões, anunciou que vai interpor recurso de uma decisão tomada pelo TUI, depois de o colectivo de juízes ter considerado não haver nulidade no meio de obtenção das provas documentais apreendidas na residência do ex-secretário, indo assim contra uma pretensão da defesa.
A questão que agora se coloca não é nova – foi levantada pela própria defesa pouco tempo depois de Ao Man Long ter sido constituído arguido – e amplamente debatida pela imprensa de Macau. Embora qualquer arguido de um processo no território tenha direito a uma instância de recurso (contemplado pela Lei Básica da RAEM), sucede que, no caso do antigo governante, que é julgado em primeira instância pelo TUI, a possibilidade de recorrer não se encontra prevista pelos dispositivos processuais. Ou seja, tanto o Código do Processo Penal como a própria Lei de Bases da Organização Judiciária apresentam uma lacuna em relação à forma processual de assegurar o direito ao recurso de alguém que é julgado em primeira instância pelo TUI.
Nuno Simões tem, neste momento, oito dias para apresentar o recurso da decisão do Tribunal de Última Instância. De acordo com a lei processual, o recurso é apresentado junto do tribunal responsável pelo julgamento, que encaminhará para a instância competente. Assim sendo, e dado este problema de mecanismos processuais, o TUI tem agora em mãos um dilema que não se afigura de fácil resolução.
No início do julgamento de Ao Man Long, e a propósito precisamente da indefinição processual em relação ao recurso do antigo titular de um alto cargo político, especialistas contactados pelo Tai Chung Pou alertavam para a possibilidade deste cenário se colocar, com os prejuízos daí resultantes não só para o arguido como para a própria credibilidade do sistema judicial da RAEM.
É que, qualquer que seja a solução encontrada para assegurar a Ao Man Long o direito básico ao recurso, esta será sempre casuística e resultante da necessidade de colmatar uma falha concreta com o processo já a meio. Resta ainda saber quem será a entidade responsável por encontrar a solução: a determinação dos mecanismos processuais legais não é da competência do sistema judicial mas sim do legislativo.
A sessão da passada sexta-feira ficou ainda marcada pelo depoimento de uma testemunha feito em moldes que levantaram dúvidas não só à defesa do ex-secretário - que apelou ao TUI para que a inquirição de prova não prosseguisse naqueles termos, sem sucesso - como a observadores do processo. Ao Tribunal foi um inspector-chefe do Comissariado contra a Corrupção (CCAC), que esteve quatro horas a exibir documentos apreendidos no escritório e residência do arguido, bem como em cofres de bancos, explicando em detalhe qual o raciocínio feito pelo CCAC para considerar que Ao Man Long deveria ser julgado pelos crimes que acabariam por lhe ser imputados.
Acontece que os documentos exibidos em “powerpoint” no Tribunal (que a assistência pode ver) fazem parte dos autos e o inspector-chefe não foi chamado ao TUI por ter sido requerida a prova pericial, mas sim enquanto testemunha. Não obstante os veementes protestos de Nuno Simões, o colectivo de juízes considerou não haver qualquer problema em relação ao modo como o inspector-chefe do CCAC fez a apresentação dos documentos, dando apenas razão à defesa nos vários momentos da sessão em que esta alertou para o facto da testemunha estar a produzir juízos de valor que não lhe competem, mas sim ao Tribunal.
Isabel Castro



domingo, 25 de novembro de 2007

Na alquimia das palavras, À boleia da Ponte 16

Carlos Morais José, editor e jornalista

Na alquimia das palavras

Sente o Oriente como se fosse “um paliativo para a dor da vida, para o abismo que há entre nós e o mundo”. Quanto à escrita, assume-a como um trabalho de decantação de palavras, como um alquimista que procura a fórmula de uma poção mágica, sabendo que, provavelmente, nunca será capaz de encontrar, estando dela perto.
Jornalista e editor, Carlos Morais José não se confina às etiquetas das profissões. Há 17 anos em Macau, é um observador participante que defende – e pratica – uma responsabilidade “histórica” que passa, sobretudo, pela expressão do que pensa. São as palavras, sempre as palavras.
Macau surgiu por acaso, com naturalidade, como quase tudo que na realidade importa. Licenciado em Antropologia, sempre quis sair do país mas o Oriente não fazia parte do seu mapa geográfico prioritário. À semelhança de outras pessoas com a sua formação, África era o destino mais próximo das ambições do conhecimento. Não que a Antropologia tenha aparecido na vida de Morais José porque quisesse ser antropólogo no sentido clássico da profissão. “Foi para adquirir os conhecimentos que me pareceu que o curso ia proporcionar, sobre o Homem e a Cultura”, explica.
A escrita vinha já de longe, o jornalismo apareceu depois da licenciatura concluída. “Pensei que uma experiência dessas me daria algum ‘insight’ sobre as questões políticas para as quais o curso me despertou interesse, porque me dediquei à parte da Antropologia Política. Depois, queria saber escrever depressa e pensei que o jornalismo era uma excelente escola para isso.” A experiência começou no jornal O Século, pouco depois passou para o Independente, acabado de nascer. Estávamos no final da década de oitenta.
O Independente era, então, “o máximo, o jornal que mudou o jornalismo em Portugal, sobretudo ao nível da linguagem”. A Carlos Morais José atraía-lhe “a linguagem mais directa e sem os subterfúgios e bengalas normais do jornalismo, em que não era obrigatório começar os textos pela pirâmide invertida”. Havia “muita mais liberdade mas também uma grande exigência profissional, porque éramos obrigados a ter uma ‘caixa’ por semana, e tinha que me esforçar bastante para conseguir, de facto, ter uma notícia que fosse só do jornal, na área da política da Cultura”, recorda.
Em Portugal, viviam-se os tempos em que Santana Lopes era o secretário de Estado da Cultura, no governo de Cavaco Silva. Em Macau, uma parte do cenário era marcada pela dinâmica do Círculo dos Amigos da Cultura e pela vontade de um punhado de gente em alterar um cenário algo deserto em termos culturais. E é neste contexto que se dá o encontro com o Oriente. Morais José recebeu um catálogo de pintura e acabou por carimbar o passaporte.
“Um dia, recebi um catálogo de uma exposição de pintores de Macau que estava a ser feita na Gulbenkian. Fiquei bastante surpreendido pela expressão da pintura em Macau, não estava à espera”, conta. O território então sob administração portuguesa era “um sítio um pouco desconhecido e distante”. Como considerou o catálogo interessante, telefonou a Carlos Marreiros, então presidente do Instituto Cultural (IC). “Depois de três horas de conversa convidou-me para vir para Macau porque tinha um lugar para um subdirector da Revista de Cultura do IC, que era dirigida, na altura, por Luís Sá Cunha.”
Morais José achou a ideia interessante mas, naquele momento, não acreditou muito na sua materialização. Marreiros, contudo, marcou-lhe um encontro com Sá Cunha, logo para o dia seguinte, na Missão de Macau, em Lisboa. “Era um dia difícil para mim, porque tinha que fechar a minha página no jornal. Tirei meia hora, fui lá a correr, não deixei o Luís Sá Cunha perguntar-me nada e disse-lhe em três pontos, que tinha organizado pelo caminho, porque é que estaria interessado em vir para Macau. E fui-me embora”, resume. Entretanto, surgiram as férias. A notícia de que tinha um bilhete para Macau surgiu quando estava no Estados Unidos. Dois meses depois, em meados de Setembro de 1990, aterrou no Oriente.
Dezassete anos depois, Morais José confessa que já se imaginou a viver longe daqui, mas o exercício é doloroso. “Não digo que não seja capaz mas terei que passar por um processo de desintoxicação. Não será fácil prescindir disto”, diz. “Já tive vários períodos fora daqui e sinto sempre uma grande comoção quando estou na Europa, ou noutro sítio qualquer, e vejo uma notícia sobre a China.” É uma sensação estranha, que as palavras não chegam para explicar, “mas há qualquer coisa de comovente e grandioso nesta civilização”. Passa pelos pequenos pormenores, “como o cheiro das sopas, os olhos das pessoas...”
É que o Oriente, para Carlos Morais José, funciona como um paliativo. “Há quem diga que existem alguns paliativos para a dor da vida, como o tabaco, o haxixe, o ópio... eu acrescentaria o Oriente. É uma espécie de paliativo na medida em que me distrai, porque me fascinam certas coisas.” É no desconhecimento constante que reside este fascínio anestesiante. “Costumo dizer que em Macau continuo, se quiser, a ser turista. A minha incompreensão em relação à cultura chinesa é de tal ordem, devido à sua profundidade e grandeza, que tenho sempre mais alguma coisa a aprender, apesar de já cá estar há muitos anos, de ter lido muito e de me ter esforçado.”
Afastado do jornalismo do quotidiano há um par de anos, mas sempre presente enquanto “opinion maker” na página que assina semanalmente no jornal Hoje Macau, do qual é proprietário, Morais José teve um papel determinante na introdução de uma nova abordagem à profissão. “Talvez o modo directo e desassombrado como falo das coisas tenha marcado um ponto no jornalismo que se fazia em Macau. Mas penso que as outras pessoas é que podem falar com isso, eu não sou a pessoa ideal”, diz, refutando protagonismos.
A verdade é que, quando cá chegou, “na altura para trabalhar para a Revista de Cultura e não propriamente para intervir no mundo do jornalismo”, a ideia com que ficou é que se tratava de uma área que, em Macau, correspondia ao período pré-Independente em Portugal. Embora afastado das redacções, Morais José continuou ligado ao semanário português, enquanto correspondente, o que lhe deu “um estatuto elevadíssimo, porque o Independente tinha feito a investigação sobre Carlos Melancia e as pessoas olhavam para mim como se tivesse vindo para aqui descobrir grandes casos de corrupção”. Mas não, conta. “Na verdade não estava nada interessado nisso, mas sim em conhecer Macau e a China, fiquei logo fascinado por esta terra e pelas pessoas.”
O interesse e o estudo da China aconteceu naturalmente, ao ritmo da vida. Quanto aos jornais de Macau, o início deu-se com a publicação, a cada quinze dias, de um texto de opinião no então semanário Tribuna de Macau. Os artigos dessa coluna, que dava pelo nome de “Porto Interior”, com outros escritos mais tarde, acabaram por dar origem a um livro, com a mesma designação.
“O meu trabalho no jornalismo em Macau começou mesmo na fundação do Ponto Final diário, com o Paulo Aido e Carlos Carvalho, já no fim de 1991”, contextualiza Carlos Morais José. Foi esta publicação em formato A4 que teve repercussões na dinâmica local. “Foi um jornal importante, que marcou a diferença na linguagem do jornalismo em Macau. Apareceu uma nova linguagem, mais próxima da do Independente mais directa, mais moderna.”
Depois do Ponto Final diário, fez parte do núcleo fundador do Ponto Final semanário. Seguiram-se outros, trabalhou em quase todos, da Gazeta Macaense ao O Clarim, passando pelo Futuro de Macau, em que também fez parte do núcleo fundador, com Severo Portela e Luís Andrade de Sá. Deu-se então uma pausa no jornalismo, “dediquei-me à publicidade, durante vários anos, embora tenha sempre mantido uma coluna de opinião”, sintetiza.
Em 2001, surgiu a oportunidade de comprar o Macau Hoje, que passou a ser o Hoje Macau. E aconteceu assim uma dupla paternidade, quase simultânea. “O Hoje Macau nasceu em Setembro, o meu filho em Agosto”, sorri. O jornal estruturou-se rapidamente e, com a obra consolidada, Morais José preferiu sair do centro da acção. “Percebi que estou nisto do jornalismo há muitos anos e que estou a trabalhar com pessoas que considero extremamente competentes, sérias e bons jornalistas. Pensei que não valia a pena não dar o meu lugar a pessoas que têm competência para o ocupar, e que estava na altura de me afastar do jornalismo para me dedicar a outras coisas que gosto de fazer, como publicar livros, por exemplo”.
A COD, editora fundada pelo jornalista em 2003 com especial vocação para obras ligadas ao Oriente, em língua portuguesa, “passou a ocupar-me mais tempo e o facto de ter deixado o trabalho diário do jornal libertou-me”. Há três dias, a COD lançou mais um volume, da autoria de Eduardo Ribeiro, sobre a presença de Camões em Macau.
Quanto ao Hoje Macau, Carlos Morais José mantém uma coluna semanal, um exercício de escrita que é também o cumprimento de “uma responsabilidade histórica” enquanto português na RAEM. É que, para o “opinion maker”, “essa responsabilidade histórica passa por não fechar os olhos por aquilo que está à nossa volta”. Existe “uma necessidade de, por vezes, ir marcando a minha posição face aos acontecimentos que se vão passando, e é isso que vou fazendo”, diz.
A propósito deste conceito de responsabilidade, Morais José considera que “alguns portugueses chegam aqui e não têm a noção de que não estão a pisar um terreno virgem”. Ou seja, “se estão aqui é porque houve muitos outros que já estiveram cá antes e fizeram muito para que esta cidade existisse”. Assim sendo, explica, “existe uma responsabilidade histórica e cívica de intervir ou de, pelo menos, ter uma opinião sobre o presente e o futuro desta terra, e não simplesmente pensar em vir para cá ganhar dinheiro e pensar na casinha que está em Portugal à espera”.
As generalizações são complicadas e, no caso da comunidade portuguesa, ainda mais. “Não é monolítica, é até um pouco fragmentada. Há pessoas bastante diferentes dentro da comunidade”, vinca. Quanto às diferenças na forma de estar em relação a outros tempos, Morais José considera que “tínhamos uma rede onde cair que tem vindo a enfraquecer, o que não é mau”. “Agora não temos cá o paizinho governador que nos salva no momento de grandes dificuldades, se é que isso acontecia, mas havia pelo menos essa ilusão, havia uma impunidade no ar que se tem vindo a esbater.” O que é bom, até por não haver necessidade de afirmação por via da falta de respeito. “Estou muito satisfeito com o modo com a sociedade e o Governo têm lidado com a comunidade portuguesa, acho que não temos razão de queixa. Temos sido apreciados, respeitados e até amparados, de algum modo, e acho que devemos isso ao Chefe do Executivo, Edmund Ho, que sempre mostrou respeito e consideração pela nossa comunidade”, sublinha.
Ainda sobre Macau e o mundo à volta, Carlos Morais José, que diz não ser um “China lover” nem sequer um obcecado pela cultura chinesa, “embora goste muito”, recorda que, devido à sua formação, quando cá chegou começou a ler muito sobre a China, para aprofundar os conhecimentos do ponto de vista teórico que já trazia. Depois, foi a aplicação “do método por excelência da Antropologia, que é a observação participante”.
“Como estava na China, comecei a participar nesta sociedade, comecei-me a integrar. Há muitas coisas que sabemos que saem do nível do raciocínio e da razão e mergulham numa área mais profunda. São conhecimentos esparsos, fragmentados, que depois criam sínteses através de intuições”, explica. “São essas intuições que permitem uma visão mais profunda de uma cultura, de um modo de estar de uma sociedade”. Foi isso que sempre procurou, “ultrapassar o mero nível da descrição teórica e académica e entrar no conhecimento de uma cultura, participando nela, para se fazerem na minha cabeça essas sínteses, a que chamo intuições, e que me dão uma perspectiva mais cortante, mais interessante também, da cultura e das pessoas chinesas”.
Com a escrita, este processo das intuições também existe. “A escrita é um meio de aproximação a um mistério que nunca se vai revelar. Sinto que, quando escrevo, me aproximo de algo que nunca vou conhecer, que está noutro plano, e que é através da escrita que consigo estar mais perto daquilo que se considerava ser divino”, descreve.
“É como se fosse um trabalho alquímico, de decantação, de exclusão de determinadas coisas, por isso é que gosto de falar de intuição.” No momento da escrita “há uma cristalização nas palavras e no modo como se entrelaçam, nos sons que criam, nas imagens que produzem, que me fazem sentir melhor que eu próprio, é ali que me realizo para além de mim, para além daquilo que sou no quotidiano e para além daquilo que sou quando as pessoas olham para mim e julgam que me vêem.” É a alquimia das palavras.
Isabel Castro
Fotografia: António Falcão/ bloomland.cn

Passos em volta

Esta cidade é como as pessoas: quando se olha para o mapa, não se encontram duas ruas iguais. Cada bairro tem as suas histórias, vontades, artes, desejos, esperanças e desesperos. Os seus segredos sussurrados. São passos em volta à redescoberta da urbe.

Do Porto Interior ao Fai Chi Kei

À boleia da Ponte 16

O mega empreendimento que está a nascer no Porto Interior serve de pretexto para estes passos em volta, desta vez em torno da linha do rio da cidade (1). Não é uma contemplação ao edifício de dimensões desproporcionadas e de néons ofuscantes aquilo que se propõe. A Ponte 16 é apenas o ponto de partida para uma visita a outras pontes cais, onde ainda se mantêm tradições próprias de uma cultura em vias de extinção.
“A Ponte 16 veio dar um novo impulso a uma zona da cidade muito esquecida. Não é muito agradável, tem uma arquitectura sem história nem gosto, mas preferia não fazer um juízo de valor”, diz Manuel Correia da Silva. O designer, anfitrião destes olhares atentos pela cidade, acrescenta que o empreendimento veio criar um contraste com os restantes edifícios da marginal.
É à procura desse contraste que andamos nestes passos. “Começamos pela Ponte 31. Curiosamente, a solução utilizada no tipo de fonte é própria da arquitectura do Estado Novo (2)”, aponta Manuel Correia da Silva. “Entramos aqui numa zona em que ainda se vive do comércio tradicional, neste caso do produto da pesca. Há um quotidiano que faz lembrar o de uma pequena vila piscatória (3).”
E é como se o tempo tivesse parado. Esta zona está cheia de edifícios a pedirem ajuda, num estado de abandono que consegue, no entanto, ter contornos de plasticidade interessantes. São espaços relacionados com a vida própria desta zona da urbe. O designer destaca “o frigorífico gigante (4), muito degradado”, um estranho complexo no meio de uma zona em que não existem repetições arquitectónicas.
Sempre “à procura da água”, Correia da Silva aconselha a descoberta das diferenças entre as várias pontes cais, “todas com edifícios diferentes”. Em direcção ao Fai Chi Kei, mais um elemento de interesse: o casino flutuante que, em tempos, esteve do outro lado da cidade, mas que agora bóia no Porto Interior (5). “É enorme, está fechado, a boiar. Presume-se que esteja em manutenção, que não há forma de lá chegar. É uma imagem estranha”, sublinha o designer.
Mais uns passos e vale a pena olhar para a vista que a cidade oferece, deste ponto (6). Dando a volta à Avenida Marginal do Lam Mau e, depois, à Avenida do Comendador Ho Yin, são muitos os pormenores para ver, tanto na água como em terra. O designer elege uma parede que tem um dos logótipos que mais o atrai (7): é a simplicidade da comunicação, que consegue ser intemporal.
A terminar, na Avenida do Comendador Ho Yin, “um bairro de lata” cortado a meio por novos viadutos, que apresenta características estéticas de interesse. “É um bairro de chapa, na verdadeira acepção do termo, onde não se vê miséria, mas presume-se, ainda assim, que o conforto não seja muito. Já do ponto de vista estético, estas casas (8), de chapa e de ferro, têm um lado plástico forte”, explica o designer, que aconselha uma visita atenta a estes pequenos postais de uma cidade que é muito mais do que os cenários convencionais de turismo. Os passos continuam, para a semana, deixando a linha de água para trás.

Manuel Correia da Silva*, percursos e imagens
Isabel Castro, texto
* É designer em Macau. Em 2004, foi o vencedor de um concurso do Instituto Cultural sobre os percursos históricos da cidade, no âmbito da conservação do património de Macau.