Música para a vida
A lição do dia está já escrita no quadro. Pessoas de palmo e meio entram em reboliço pela sala de aula adentro. Neste espaço da Escola Portuguesa de Macau (EPM), os instrumentos musicais, CDs e pautas substituem os cadernos, lápis e canetas. É a música que comanda o programa curricular.
A disposição dos alunos é um hino à vivacidade e à alegria. “Não têm que ir buscar nada?”. Foi o sinal da mestra. Meninos e meninas saltam das cadeiras. A pouco e pouco, vão saindo da pequena sala de arrumações a carregar o instrumento que vão usar durante os 45 minutos de duração do ensaio.
O tamanho do xilofone de Noel não lhe permite regressar à carteira. Instala-se no corredor entre as mesas. Sentado num degrau, não desprega o olhar das lâminas. “Aprendi a tocar há três anos”, explica, hipnotizado com o xilofone. “Não é difícil. Primeiro a professora ensina-nos as notas e também temos a ajuda das cores”, vinca. Cada fatia de madeira do instrumento tem uma bolinha colorida.
O aluno de 10 anos faz parte do grupo dos elementos mais velhos da Orquesta Orff. Na verdade, Noel é um resistente. “Estranhamente, a maior parte dos miúdos abandona o grupo quando entra para o quinto ano”, explica a professora de música da EPM, Paula Balonas. O aumento do número de disciplinas e do volume dos deveres escolares pode ser uma das razões do êxodo.
“Esta iniciativa foi criada em 2005, mas todos os anos temos um conjunto novo de elementos. Isto dificulta a situação, porque podíamos estar a trabalhar três peças de uma dificuldade incrível e assim ficamo-nos pelo mais básico. É uma questão difícil de gerir”, lamentou a responsável.
Oito dos 20 alunos que este ano formam o grupo são novatos. “São uns heróis quando querem, quando não querem são uma desgraça”, brinca a professora. Juntamente com a Banda da Escola, a mini orquestra esgota as actividades musicais do estabelecimento de ensino em língua portuguesa. A estas crianças cabe-lhes a responsabilidade de colorir com música as festas escolares.
É a primeira vez que as três famílias de instrumentos do grupo musical se juntam para ensaiar o repertório surpresa que está a ser preparado para a Festa de Natal, agendada para dia 8 do próximo mês. “Flautas, percussão e lâminas tocam em separado 45 minutos por semana”, contextualiza a professora.
A missão não é fácil de cumprir, por isso, há que lutar contra o tempo para tocar sem desafinar. “Rabinhos para trás, costas direitas e queixo levantado”, são as indicações da mestra para o grupo dos instrumentos de sopro. “A segunda parte da pauta as lâminas não sabem, por isso tocam só as percussões”, avisa.
Faz-se silêncio. Paula Balonas inicia a contagem ao mesmo tempo que estala os dedos. Inês segura um sininho em cada mão e segue a professora com máxima concentração. É o “tlim” do seu instrumento que abre a melodia. As flautas são o naipe que entra mais tarde.
De vez em quando, Matilde perde-se do grupo. Uma carteira atrás, a irmã mais velha, Inês, está atenta. Aproxima-se com a flauta nos lábios para orientar a menina de sete anos. “Ela tem os dedos pequeninos e tem dificuldade a tapar os buraquinhos”, explicam os colegas.
O problema não se resume, contudo, a este tipo de desproporção. “A Matilde ainda não sabe ler todas as notas. Conhece o sol e depois perde-se, é normal”, notou Paula Balonas. No primeiro ciclo, os estudantes só começam a aprender a ler a pauta no terceiro ano de escolaridade. Matilde ainda está na segunda classe.
O programa curricular da escola primária reserva 90 minutos por semana à educação musical. No primeiro ano, as crianças começam a ser sensibilizadas para a música, desenvolvem o controlo da expressão corporal e a psicomotricidade. A professora senta-se ao piano e os alunos têm que se movimentar consoante o ritmo da melodia. Mal conseguem suster as gargalhadas tal é o divertimento.
No ano da Matilde, inicia-se a aprendizagem do ritmo, bem como alguma execução instrumental, muito baseada na imitação. Na terceira classe, os pequenos começam a conhecer a flauta bisel, algumas partes de melodias e as notas musicais. Com o primeiro período lectivo quase terminado, a turma da mana mais velha, Inês, Vanessa e Ana Catarina já sabe de cor e salteado que nas cinco linhas da pauta quem manda é a “mãe” clave de sol, que tem sete filhos. “Dó, ré, mi, fá, sol, lá, si”, dizem todos os alunos em uníssono.
“O sol começa na casa da mãe e tem um irmão com quem se dá muito bem que é o mi e que mora na última linha. Com o sol e o mi já podemos fazer uma canção”, exclama Paula Balonas. Antes das flautas entrarem em acção, as indicações do costume. Soprar “tututu” e fazer força nos dedos. No fim da melodia, todos inspeccionam os dedos uns dos outros.
“Têm bolinhas? Perfeitas e redondinhas?”, questiona a professora. Se sim e desafinaram, então o mal é do ar a mais. “Se não é dos furinhos é do ar”, sentencia.
No último ano do primeiro ciclo os alunos já fazem música na verdadeira acepção da palavra. Tocam outros instrumentos, criam repertórios e começam a perceber como é construída uma melodia.
Para Paula Balonas, a educação musical é um dos melhores meios para ensinar e transmitir conhecimentos. “É uma linguagem muito abrangente e um excelente recurso como facilitador de aprendizagem. Um poema ou uma canção decoram-se sem tanta dificuldade se for a cantar”, defendeu a professora.
Além do desenvolvimento da capacidade de psicomotricidade, visto que as crianças têm que aprender a coordenar as duas mãos para tocar a maioria dos instrumentos, a música contribui para a formação do indivíduo. “É uma preparação para a vida, porque promove a criação do sentido de responsabilidade, solidariedade, cooperação e respeito no convívio com os outros. A amizade ganha um significado importante num grupo musical, porque cada bom resultado é uma alegria”, sublinhou.
Ao longo das aulas, a professora gosta de “espicaçar” os seus pupilos, para os motivar. “Eu digo que estão péssimos, mas não é bem assim. Eles só têm quatro aulas e fazer melhor é impossível, mas quero obrigá-los a provarem a si mesmos que são capazes de melhorar”, notou.
O orgulho em fazer tudo bem acaba por ensinar o valor do trabalho, que é compensado com os aplausos do público. “No fim das apresentações nas festas da escola, quando eles saem do palco perguntam-me sempre: ‘Foi bem Paula?’. E estão sempre à espera que eu diga que sim. É muito giro.”
A Orquestra Orff surge como um complemento àquilo que é ensinado nas aulas. O conceito deste tipo de grupo baseia-se num método pedagógico criado por Carl Orff. Os elementos das três famílias de instrumentos possibilitam que qualquer pessoa possa fazer música sem pertencer a uma verdadeira orquestra. O xilofone, os pratos ou os reco-reco, por exemplo, não exigem um estudo intensivo para produzir uma melodia do princípio ao fim.
Ao longo do ano lectivo, os alunos de Paula Balonas vão experimentar e aprender os três tipos de instrumentos. O objectivo é desenvolver as várias capacidades que cada um impõe. Quem sabe se, no segundo período lectivo, em Janeiro, Inês não vai trocar os sininhos pelo xilofone de Noel ou pela flauta de Matilde.
Alexandra Lages
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