Filipa Simões, designer gráfica
Uma paixão chamada Macau
As matrículas dos carros, iniciadas por M, são a recordação mais forte da primeira vinda a Macau. Filipa Simões tinha 11 anos. ”Tive a sensação de ser uma cidade enorme, com muita informação e reparei nos carros com matrícula M. Eu, ignorante, afirmei: ‘mas todos os carros nesta fila têm matrícula M!’”, recorda com um sorriso a jovem designer.
Filipa apenas permaneceu em Macau dois anos e meio, o suficiente, porém, para colar-se à terra. “Macau ficou mesmo grudado. Estive aqui no início da adolescência, quando se criam ligações fortes, amigos para a vida. Aliás, os meus amigos dessa altura são os mesmos de hoje. Acho que a cidade se entranha, quem gosta e entra neste ritmo, depois sente muita falta”, confessa.
Este primeiro amor de adolescente fez, de facto, uma falta que a distância não curou. “Foi difícil a adaptação a Portugal, sentia saudades enormes e durante um ano continuava fixada em Macau. Ficou o bichinho de voltar cá de férias”. Essa volta só foi concretizada, na companhia de vários amigos, já no tempo da faculdade, no Verão de 1997. Voltaram assim também os cheiros e uma sensação de regresso a casa. “Sentir o bafo da humidade, sentir que não passou tempo nenhum, que continuava a ser o meu sítio. Apaixonei-me de novo pela cidade, pelos recantos, pela plasticidade, por essa informação que convida a fazer coisas pelo território”.
Filipa partiu de Macau já a pensar num regresso, consciente que tinha que alimentar o vício e matar regularmente as saudades. Passou a poupar dinheiro para conseguir viajar para o Oriente de dois em dois anos. “Sempre que vinha cá, levava malas com colheres de sopa, serviços de chá, banquinhos de madeira, cheguei a levar um contentor de móveis para mim e para a família. Levava sempre Macau comigo”.
Uma paixão assim não podia ser vivida à distância. Numa dessas vindas e idas, surgiu a pergunta, agora formulada a dois: “Se vamos começar uma vida, ter os nossos espaço e casa, por que não viver em Macau?”
A resposta, afirmativa, foi posta em prática em 2004. Instalada de fresco em Macau, Filipa Simões começou quase de imediato a trabalhar como designer gráfica na Editora Livros do Oriente de Cecília Jorge e Beltrão Coelho, “que têm um mundo a ensinar”, como refere com orgulho. Durante cerca de um ano, fez a concepção gráfica de vários livros, numa experiência que define como excelente e de grande aprendizagem.
Com o fim desse percurso profissional, Filipa decidiu abrir a própria empresa de designer de comunicação. O passo foi dado sem muitas certezas já que não sabia se era possível abrir uma empresa sem falar fluentemente chinês. Em 2007, a resposta surge sem grandes dúvidas: “Acho que dá. Está a correr bem e estou a gostar. Faço muito mais trabalhos do que se estivesse em Portugal. Lá pagam melhor mas também demoram mais a dar trabalho e a pagar. Em Macau é tudo muito rápido, as coisas têm que ser feitas para ontem”, brinca apressada.
A pressa, conhecida inimiga da perfeição, significa que muitas vezes “não se consegue amadurecer tanto as ideias. Mas em Macau ganhamos uma experiência enorme porque estão sempre a acontecer coisas diferentes”, sublinha. E a experiência de Filipa já pesa num portfólio composto por uma série de logótipos, folhetos ou (concepção gráfica de) livros.
Se, inicialmente, os amigos portugueses a conduziram aos primeiros clientes, agora o trabalho de Filipa já fala por si. “Faço trabalhos para uma série de pessoas, cafés, supermercados ou o Centro de Indústrias Criativas, para o qual tenho feito muita coisa”, enumera. Foi precisamente através do Centro que teve uma das mais recentes alegrias, por lá ter feito um stand para a Feira Internacional de Macau. “O tempo era curto para fazer o stand e também o catálogo, com design integrado, mas gostei muito de fazer, diverti-me e as reacções foram muito boas”.
Neste processo criativo, as características de Macau estão por vezes à espreita. A designer esclarece, porém, que “Macau inspira, mas eu tenho um percurso próprio e tento ser coerente, não trabalharei de forma diferente só por estar em Macau”. No entanto, o gosto de conhecer a cultura e os livros, leva Filipa às livrarias, onde pega nas obras chinesas. Depois, sempre que pode, gosta de introduzir no design elementos ligados à cultura local.
Quando o trabalho aperta, como tantas vezes acontece, e os dias estão mergulhados na produção e na rotina, “por vezes fico uns tempos sem olhar para a cidade, abstraio-me. Mas depois, basta sair um dia à rua e volta tudo, volta a vontade de fazer coisas para e sobre a cidade”.
Nem tudo volta, porém. O desenvolvimento acelerado de Macau levou de vez algumas das características do território. “O conceito de património está desviado, engloba apenas os edifícios ‘à portuguesa’. Temos, na verdade, um património muito rico, modernista ou, como alguns chamam, art deco tropical. Há coisas destas, com valor, que estão a ir abaixo,” esclarece Filipa Simões, enquanto dá exemplos concretos. Arruinado foi um quarteirão inteiro no Porto Interior, com habitações tradicionais, casas de chá ou cinema. “Edifícios que contam a história da cidade”.
As ruazinhas de que Filipa tanto gosta, já estão a ser apropriadas ou escondidas pelos gigantes de betão. “A cidade vai-se descaracterizando, é o meu maior medo. O carácter de Macau está nas ruas, nas lojas abertas até à noite, na vida do bairro, de rua. Se isso vai embora, se lojas antigas vão fechando, a cidade perde a alma”, lamenta.
Apesar dos recentes desgostos, esta paixão de Filipa ainda está viva, quase como naqueles primeiros anos da adolescência: “Ainda me consigo perder em Macau”.
ConstrAction
As mobílias não foram uma prioridade quando Filipa Simões se mudou para a casa onde ainda hoje reside em Macau. “Eu e o Nuno (Soares) queríamos uma casa à nossa maneira, mas não tínhamos tempo”, explica a designer entre sorrisos.
Durante seis meses, viveram apenas com um fogão, um frigorífico, dois colchões e com muitos livros espalhados por um dos quartos. Até que a mãe e a irmã de Filipa decidiram visitar Macau.
O casal tinha três semanas para preparar a habitação para receber a família. Na verdade, Filipa e Nuno já sabiam o que queriam. Tinham desenhado os móveis desejados, só faltava o material e a forma.
Foi uma corrida contra o tempo, que todos os dias começava às sete da manhã. Filipa e Nuno deslocavam-se a estaleiros de obras, onde arranjavam materiais de construção. No final do dia, e até às 3 da madrugada, o casal metia mãos à obra. Em três semanas, os dois fizeram bancadas de cozinha, camas, sofás. Peças todas concebidas através dos materiais de construção recolhidos em Macau, como tubos de canalização, contraplacados ou vigas de madeira.
Assim, para além de uma casa mobilada, nasceu também a ConstrAction, um sistema de mobília. “Utilizamos materiais de construção, com base num sistema de bambu de três peças que encaixam e num sistema métrico. Os planos horizontais são vermelhos e os verticais são pretos. Há peças que têm dupla ou tripla utilização”, explica a designer.
A mobília ganhou vida própria e não se limitou às paredes de habitação. As peças que têm sido concebidas por Filipa Simões e Nuno Soares foram exibidas em 2005 na Experimenta Design, em Lisboa. No ano seguinte, estiveram expostas em Hong Kong e, em 2007, viajaram até Milão para participar no salão satélite integrado no Salão do Móvel, “no qual jovens designers apresentam peças ainda não comercializadas”. “Os visitantes mostraram surpresa e, à excepção dos japoneses que gostam mais do ‘clean’, gostaram das nossas peças, sobretudo o móvel de síntese de cozinha”, conta.
Passos em volta
Esta cidade é como as pessoas: quando se olha para o mapa, não se encontram duas ruas iguais. Cada bairro tem as suas histórias, vontades, artes, desejos, esperanças e desesperos. Os seus segredos sussurrados. São passos em volta à redescoberta da urbe.
Não é para andar a pé e, quem o faz, por esta altura do ano, é a grandes velocidades. Hoje, andamos à volta de passos imaginários, de “um percurso que não foi feito para nós, cidadãos comuns, mas sim para quem tem habilidade suficiente para conduzir a grande velocidade”, sugere Manuel Correia da Silva, designer e anfitrião destes olhares atentos para a cidade.
É, assim, um convite ao sofá e ao televisor ou, então, a uma ida às bancadas que emolduram as estradas por onde andamos todos os dias mas onde, hoje, se decidem idas ao pódio. “É um desafio a olharmos, com atenção, para os pormenores do Circuito da Guia”, continua Manuel Correia da Silva. “É impressionante como a cidade se adapta para receber tudo isto”.
Este circuito tem ainda um lado plástico forte, com todas as cores que se inventam e preenchem os diferentes pontos da cidade. Depois, não deixa de ser paradoxal, pela efemeridade que o caracteriza e o peso histórico que se lhe cola à pele. Ou ao asfalto.
“Faz parte da identidade de Macau”. Durante o ano, nada acontece ali, apenas o quotidiano. De repente, e para apenas quatro dias, “há uma movimentação e uma vida próprias, uma agitação em torno de um evento”. Uma festa que não agrada a todos, “há sempre inconvenientes, com os carros a passaram ao lado da nossa porta”. Correia da Silva esquece o acesso difícil quando o circuito está fechado, porque “vale a pena esta singularidade”.
É ainda um percurso que todos podemos fazer, mas recomenda-se que seja devagarinho, porque as velocidades são só para quem está a competir. O designer ri-se e lembra que “é nesta altura que andam carros a duzentos quilómetros à hora em Macau e não são multados pela polícia”. E isto para frisar que são as ruas que percorremos todos os dias que servem de palco ao espectáculo. “Não podemos andar noutros circuitos do mundo, à excepção dos citadinos, que são poucos. Por isso, não sendo nosso e sim dos automobilistas e motociclistas, este percurso continua, de alguma maneira, a pertencer-nos”.
Manuel Correia da Silva*, percursos e imagens
Isabel Castro, texto
* É designer em Macau. Em 2004, foi o vencedor de um concurso do Instituto Cultural sobre os percursos históricos da cidade, no âmbito da conservação do património de Macau.
Isabel Castro, texto
* É designer em Macau. Em 2004, foi o vencedor de um concurso do Instituto Cultural sobre os percursos históricos da cidade, no âmbito da conservação do património de Macau.
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