sexta-feira, 16 de novembro de 2007

Nos bastidores do Grande Prémio, A perigosa tentação das montras

Os bastidores do Grande Prémio de Macau

A profissão número dois

É um ritual anual de Macau, com diferentes manifestações. Se, por um lado, há quem se queixe, edição após edição, do barulho dos motores e das ruas que são fechadas ao trânsito durante quatro dias, existe também um grupo de residentes que colocam os ofícios e a vida de todos os dias em stand-by, mudam de roupa e dedicam-se inteiramente ao Grande Prémio de Macau (GPM).
São centenas de pessoas que, mesmo antes de chegarem as máquinas de corrida oriundas de todo o mundo, começam a trabalhar em redor do Circuito da Guia, da torre de controlo ou das boxes. Muitas já se dedicam ao evento desportivo há décadas e as alterações de rotina que o GPM acarreta são encaradas com normalidade. Grande parte do sucesso, ano após ano, da corrida de Macau deve-se a elas. São a gente dos bastidores. São homens e mulheres que partilham um aspecto em comum – a paixão pelos desportos motorizados.
Desde o início da semana que os filhos de Daniel Tam não são acompanhados pelo pai à porta da escola, quebrando o quotidiano. O residente trocou a função de chefe de família por aquela de director da equipa de escrutínio do GPM. Agora, em vez de se levantar às 7h45 para “levar os miúdos à escola”, o proprietário de uma loja de peças de automóvel na Taipa tem que regular o despertador para tocar duas horas mais cedo.
“Começámos a trabalhar desde terça-feira, às 6h30”, destaca o mesmo responsável. No seu escritório improvisado, perto da torre de controlo, as mesas foram invadidas pelos manuais de operações, os telefones não param de tocar e os elementos da equipa entram e saem para pedir indicações ao superior. A azáfama foi crescendo à medida que os dia da competição se foram aproximando. “Temos que inspeccionar todos os carros e motas antes de se dar início às corridas”, explica.
Normalmente, às 10h00 em ponto, Daniel estaria a sentar-se na cadeira do escritório da sua loja. No entanto, durante o GPM, este quadro muda de figura. Há muito trabalho para fazer e centenas de veículos para inspeccionar.
“O nosso trabalho é verificar se os carros e motas respeitam as regras de segurança e se estão dentro dos regulamentos”, esclarece. O centro de escrutínio é uma espécie de laboratório antidopagem, numa versão para desportos motorizados. Os veículos são pesados e os escrutinadores verificam todos os cantos e recantos exteriores e interiores das máquinas.
Daniel colabora com a organização do GPM desde o ano de 1996. “Comecei no cargo mais baixinho, como inspector”, recorda. Há quatro anos, foi promovido a chefe da equipa. “A minha função principal é verificar se todos estão a fazer a coisa certa na hora certa”, acrescenta o residente, que também faz parte da subcomissão desportiva, entidade que todos os anos analisa e actualiza os regulamentos da competição.
Depois da equipa de Daniel dar luz verde a cada veículo testado, entra em acção o grupo comandado por Carlos Barreto. A sua actividade principal é desempenhada no departamento de Viação de Transportes do Instituto para os Assuntos Cívicos e Municipais (IACM) mas, quando o Circuito da Guia é montado, passa a assumir a função de director das corridas de motas.
“Procuro que tudo esteja em condições antes, durante e após a corrida. Se os pilotos estão bem vestidos e se os veículos passaram nas verificações técnicas”, explica. Não é à toa que lhe chamam o “patrão”, diz com um sorriso nos lábios.
Organizar uma corrida da dimensão do GPM não é pêra doce. Além de ser um dos mais apaixonantes circuitos citadinos do mundo, a Guia é também um percurso com muitos perigos e armadilhas. “Principalmente no que diz respeito às motas”, vinca o mesmo responsável.
Carlos começou a frequentar a zona alcatroada onde estão instaladas as garagens numa altura em que o evento desportivo completava o seu 17º aniversário. “Era o ‘pit lane marshall’. Orientava a entrada dos carros para as boxes”, completa.
Em 2005, foi promovido a director das corridas de motas. Actualmente, Carlos é a figura responsável pela gestão da prova em todos os seus aspectos desportivos e técnicos.
A posição é perfeita. Desde sempre que desenvolveu um “gostinho” pelos desportos motorizados, especialmente na “área das motas”. “Embora não saiba andar, sempre gostei muito de ver”, salienta.
As alterações impostas pelo GPM na sua vida diária não lhe fazem confusão. Pelo contrário, até aprecia. “Não é a mesma coisa do que estar no escritório do meu trabalho, mas tudo o que se faz fora da rotina é diferente. Além disso, gosto de fazer várias coisas ao mesmo tempo”, resume.
A responsabilidade que tem nas suas mãos é bastante pesada. “Temos que garantir a segurança de todos os intervenientes na pista”, realça. Durante os quatro dias do evento, o ponteiro das rotações do sistema nervoso de Carlos oscila constantemente. Nada que apoquente o residente português que garante já ter “algum calo”. “Se for necessário, levanta-se a bandeira vermelha. Pára-se a festa e começa tudo de novo”.
Mais afastado do corre-corre das boxes, mas nem por isso isolado da acção da corrida, está Daniel Pedro. Todos os fãs do GPM o conhecem, mas talvez sejam poucos os que o conseguem reconhecer na rua. Sem o casaco de xadrez, é difícil adivinhar que o funcionário do departamento de Viação e Transportes do IACM é a pessoa que assinala o final das corridas. Durante o evento desportivo de Macau, Daniel veste, literalmente, outra pele.
Este ano, assinala-se o 54º aniversário do GPM. O português encarna a função do homem da bandeira de xadrez há 15 anos. “Gosto deste desporto e sempre estive ligado às actividades automobilísticas dos locais em que vivi. Tanto em Portugal, como em Moçambique. Em Macau, como tinham necessidade de pessoal, acabei aqui”, recorda.
A participação na organização do GPM é um “passatempo” aos olhos de Daniel. No entanto, poucos são os hobbies que exigem tanta dedicação como o GPM. “Ao longo dos quatro dias da competição, a minha vida é passada aqui, de madrugada até à noite com os carros e as motas. Só vou a casa para dormir”, assinala.
Não se pense que a função deste homem se resume ao desfraldar a bandeira axadrezada. De dentro da sua “casota” ou “panha”, como lhe chama, localizada mesmo à beira da pista, Carlos é o intermediário entre o que se passa em todo o circuito e a torre de controlo.
A responsabilidade do homem da bandeira começa na grelha de partida. “É a parte com mais adrenalina, tem que haver uma grande coordenação. São 30 ou 40 corredores na pista e temos que ver se estão nas posições correctas e se todos os motores funcionam. Algumas vezes temos que abortar a corrida”, aponta.
Da “casota”, Carlos tem que se certificar se as luzes estão a funcionar, se há interrupções de prova, bem como avisar os pilotos de quanto tempo falta para terminar a corrida. São tarefas fundamentais para o bom funcionamento da competição que escapam a quem assiste às provas da bancada ou na televisão. “Os responsáveis da torre de controlo enviam as orientações e eu tento pô-las em prática, passando essas indicações para os bandeirinhas que estão posicionados nos vários pontos do Circuito da Guia.
O GPM é um agente de transformação que afecta vários níveis da cidade. O espaço físico da urbe altera-se completamente. Os rails amarelos e pretos pintados de fresco vão demarcando a pista desde o Terminal Marítimo até ao cimo da subida do hospital. Algumas ruas são invadidas por amontoados de pneus, colocados nas curvas mais perigosas do percurso. O trânsito dos automóveis e dos peões é condicionado.
No ar, pairam rumores de que, mais dia menos dia, o Governo vai cancelar o evento que se realiza em Macau há 54 anos. O presidente da Associação das Pequenas e Médias Empresas, Stanley Au, é um dos apologistas desta medida. São tantas mudanças na vida do território que todos os anos surgem queixas dos vários sectores da sociedade.
A par dos seus colegas da organização do GPM, Daniel Tam, Carlos Barreto e Daniel Pedro vivem com alegria e entusiasmo o barulho dos motores e o fecho do circuito. Além de mudarem de profissão nestes quatro dias, alteram a sua rotina e, num certo sentido trocam de família.
É um grupo familiar que todos os anos se encontra com os parentes que só vêm no mês do GPM. É uma “vivência diferente”, frisa Carlos. “Muita gente vem de fora. São amigos com quem estamos de 12 em 12 meses. Pomos todo este tempo de ausência em dia e depois seguimos em frente. Para o ano há mais”. A ver vamos.
Alexandra Lages

Endividamento familiar aumenta devido ao consumo compulsivo

A perigosa tentação das montras

“As pessoas comuns costumam adquirir bens mais caros como forma de recompensa, em ocasiões especiais. Os nossos pacientes utilizam as compras como meio de compensação de carências e sofrem de uma constante insatisfação”

É um problema que assume contornos cada vez mais preocupantes. O número de pessoas que recorre ao consumo como forma de terapia e de alívio para o stress do quotidiano tem vindo a aumentar em Hong Kong. Os consumistas compulsivos acabam por não encontrar satisfação nos bens que adquirem e o problema é uma bola de neve: quanto mais se tem mais se quer. O stress aumenta e as dívidas também.
Sarah X., 31 anos de idade, é uma perfeccionista. Compra as melhores roupas para filha de dois anos e quer que seja a mais bem vestida da escola. Anda sempre com objectos caros, colecciona objectos de design e acha que a qualidade de vida passa pela possibilidade de aquisição do que considera belo.
A vida de Sarah X. está longe de ser perfeita: falta-lhe a capacidade de autocontrolo, que dá origem à auto-recriminação. O facto de ser uma compradora compulsiva trouxe-lhe também problemas familiares, além de graves questões financeiras.
O marido de Sarah X. só se apercebeu dos seus hábitos consumistas excessivos depois de estarem casados e começou a ficar preocupado com a possibilidade de não conseguirem pagar as contas ao final do mês. Embora tenha noção da dependência da mulher, não conhece todos os pormenores da história.
Sarah esconde-lhe o valor que tem em dívida ao banco, no cartão de crédito, por ter medo que a relação conjugal piore quando ele descobrir que ela tem 270 mil dólares de Hong Kong por pagar. A jovem ganha 15 mil por mês e paga o mínimo ao banco, pelo que a dívida é difícil de liquidar, com os juros a engrossarem o montante, mês após mês.
A situação de tensão e pressão provocada pela consciência de ser uma compradora compulsiva fez com que começasse a ter insónias e perdesse, lentamente, a auto-estima. Foi então que decidiu procurar ajuda no Centro de Aconselhamento a Famílias Endividadas, uma iniciativa da fundação do Grupo de Hospitais Tung Wah.
“Quando vemos algo de que gostamos, pensamos apenas em possui-lo”, descreve Yeung Chun-wah, a assistente social que acompanha Sarah X., entre outros pacientes que são consumidores compulsivos. “As pessoas comuns costumam adquirir bens mais caros como forma de recompensa, em ocasiões especiais. Os nossos pacientes utilizam as compras como meio de compensação de carências e sofrem de uma constante insatisfação”, explica ao Tai Chung Pou.
Segundo a assistente social, trata-se de um fenómeno que, em Hong Kong, afecta uma quantidade grande de pessoas e não deixa ninguém de fora: ao centro chegam pessoas de diferentes estratos sociais e habilitações académicas. Sólidos valores na educação não são garantia de imunidade.
“Temos casos de pessoas que sentem uma pressão tão grande no emprego que perdem o controlo. Tomam decisões sem pensar e adquirem bens que não podem pagar”, refere Yeung.
O Centro de Aconselhamento a Famílias Endividadas foi criado em Julho de 2003. A região administrativa especial chinesa ressentiu-se, de forma violenta, do surto de pneumonia atípica. Na altura, a maioria dos utentes do centro eram pessoas desempregadas, de todos os contextos sociais e níveis de educação.
Embora a economia tenha conhecido um novo fôlego a partir de 2004, o Centro continua a registar, todos os meses, entre 100 e 120 casos novos de pessoas endividadas. Actualmente, são menos os utentes sem emprego, mas há mais consumidores compulsivos, incluindo jovens que auferem menos de dez mil patacas por mês.
Desde a entrada em funcionamento, o centro já apoiou 6419 casos. Deste total, apenas 17 por cento dos utentes admite estar no grupo dos consumidores compulsivos. Quase vinte por cento prefere a classificação “gasta mais do que ganha”. Quanto aos desempregados com dívidas, significam 15 por cento dos casos tratados pela entidade.
Os residentes de Hong Kong consomem cada vez mais, a acreditar nas estatísticas. Um estudo levado a cabo pelo Standard Chartered Bank demonstra que, em média, um habitante da antiga colónia britânica tem entre quatro a seis cartões de crédito, com uma média de cinco mil patacas de conta para pagar a final do mês. Estes números, verificados já em 2007, representam um aumento de cerca de vinte por cento em relação ao ano passado.
Dos 1096 consumidores compulsivos que chegaram ao centro até ao final do mês passado, 52,7 por cento são homens. Tracy Leung, a responsável pela entidade, explica que é possível desenhar um padrão comportamental: os pacientes do sexo masculino gastam dinheiro que não têm em bares e outras formas de entretenimento, enquanto que as mulheres se endividam com a compra de roupa e de acessórios de moda.
“Algumas pessoas andam com uma mala cujo preço ultrapassa os 10 mil dólares de Hong Kong. Sentem-se mais competentes, o estilo dá-lhes mais segurança. Classificam os indivíduos pela forma como se vestem e as marcas que usam”, constata Tracy Leung.
A responsável pelo centro explica que, entre várias razões que levam ao consumo compulsivo, os utentes partilham, por norma, um problema: a falta de auto-estima. Por exemplo, Sarah X. acredita que usar uma carteira de luxo no escritório contribui para elevar o seu estatuto. São este tipo de inseguranças que acabam por criar verdadeiros problemas.
“Nunca desprezamos o valor dos objectos ou das marcas, mas tentamos ensinar, especialmente aos mais jovens, que as pessoas devem agir de acordo com as suas possibilidades”, acrescenta Leung. “As empresas colocam no mercado milhares de produtos para serem vendidos, as campanhas de publicidade e de marketing são fortíssimas e criam uma cultura em torno do consumo. Para muita gente, este ambiente propício ao consumismo faz com que percam o autocontrolo”.
O centro acredita no valor da prevenção e lançou uma série de programas educativos, incluindo palestras e campos de Verão, destinados sobretudo a estudantes dos ensinos secundário e superior, numa tentativa de criar noções sobre o consumo excessivo antes que estes jovens peçam os seus primeiros cartões de crédito.
Para aqueles que já cometeram erros, a entidade providencia aconselhamento para que possam sair do dilema onde estão. Metade das pessoas endividadas conseguiu arranjar formas de irem, aos poucos, pagando aos credores, mas as restantes estão em situação de bancarrota.
“Os nossos utentes, que passaram por situações de dívida durante um longo período, sabem quão dolorosa foi a experiência e sentem-se agora muito aliviados com a liberdade económica que sentem”. Embora não haja pesquisa científica sobre o assunto, nas suas funções de assistente social, Yeung Chun-wah não conhece casos em que tivesse havido uma recaída.

Texto e fotografias: Kahon Chan

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