domingo, 25 de novembro de 2007

Na alquimia das palavras, À boleia da Ponte 16

Carlos Morais José, editor e jornalista

Na alquimia das palavras

Sente o Oriente como se fosse “um paliativo para a dor da vida, para o abismo que há entre nós e o mundo”. Quanto à escrita, assume-a como um trabalho de decantação de palavras, como um alquimista que procura a fórmula de uma poção mágica, sabendo que, provavelmente, nunca será capaz de encontrar, estando dela perto.
Jornalista e editor, Carlos Morais José não se confina às etiquetas das profissões. Há 17 anos em Macau, é um observador participante que defende – e pratica – uma responsabilidade “histórica” que passa, sobretudo, pela expressão do que pensa. São as palavras, sempre as palavras.
Macau surgiu por acaso, com naturalidade, como quase tudo que na realidade importa. Licenciado em Antropologia, sempre quis sair do país mas o Oriente não fazia parte do seu mapa geográfico prioritário. À semelhança de outras pessoas com a sua formação, África era o destino mais próximo das ambições do conhecimento. Não que a Antropologia tenha aparecido na vida de Morais José porque quisesse ser antropólogo no sentido clássico da profissão. “Foi para adquirir os conhecimentos que me pareceu que o curso ia proporcionar, sobre o Homem e a Cultura”, explica.
A escrita vinha já de longe, o jornalismo apareceu depois da licenciatura concluída. “Pensei que uma experiência dessas me daria algum ‘insight’ sobre as questões políticas para as quais o curso me despertou interesse, porque me dediquei à parte da Antropologia Política. Depois, queria saber escrever depressa e pensei que o jornalismo era uma excelente escola para isso.” A experiência começou no jornal O Século, pouco depois passou para o Independente, acabado de nascer. Estávamos no final da década de oitenta.
O Independente era, então, “o máximo, o jornal que mudou o jornalismo em Portugal, sobretudo ao nível da linguagem”. A Carlos Morais José atraía-lhe “a linguagem mais directa e sem os subterfúgios e bengalas normais do jornalismo, em que não era obrigatório começar os textos pela pirâmide invertida”. Havia “muita mais liberdade mas também uma grande exigência profissional, porque éramos obrigados a ter uma ‘caixa’ por semana, e tinha que me esforçar bastante para conseguir, de facto, ter uma notícia que fosse só do jornal, na área da política da Cultura”, recorda.
Em Portugal, viviam-se os tempos em que Santana Lopes era o secretário de Estado da Cultura, no governo de Cavaco Silva. Em Macau, uma parte do cenário era marcada pela dinâmica do Círculo dos Amigos da Cultura e pela vontade de um punhado de gente em alterar um cenário algo deserto em termos culturais. E é neste contexto que se dá o encontro com o Oriente. Morais José recebeu um catálogo de pintura e acabou por carimbar o passaporte.
“Um dia, recebi um catálogo de uma exposição de pintores de Macau que estava a ser feita na Gulbenkian. Fiquei bastante surpreendido pela expressão da pintura em Macau, não estava à espera”, conta. O território então sob administração portuguesa era “um sítio um pouco desconhecido e distante”. Como considerou o catálogo interessante, telefonou a Carlos Marreiros, então presidente do Instituto Cultural (IC). “Depois de três horas de conversa convidou-me para vir para Macau porque tinha um lugar para um subdirector da Revista de Cultura do IC, que era dirigida, na altura, por Luís Sá Cunha.”
Morais José achou a ideia interessante mas, naquele momento, não acreditou muito na sua materialização. Marreiros, contudo, marcou-lhe um encontro com Sá Cunha, logo para o dia seguinte, na Missão de Macau, em Lisboa. “Era um dia difícil para mim, porque tinha que fechar a minha página no jornal. Tirei meia hora, fui lá a correr, não deixei o Luís Sá Cunha perguntar-me nada e disse-lhe em três pontos, que tinha organizado pelo caminho, porque é que estaria interessado em vir para Macau. E fui-me embora”, resume. Entretanto, surgiram as férias. A notícia de que tinha um bilhete para Macau surgiu quando estava no Estados Unidos. Dois meses depois, em meados de Setembro de 1990, aterrou no Oriente.
Dezassete anos depois, Morais José confessa que já se imaginou a viver longe daqui, mas o exercício é doloroso. “Não digo que não seja capaz mas terei que passar por um processo de desintoxicação. Não será fácil prescindir disto”, diz. “Já tive vários períodos fora daqui e sinto sempre uma grande comoção quando estou na Europa, ou noutro sítio qualquer, e vejo uma notícia sobre a China.” É uma sensação estranha, que as palavras não chegam para explicar, “mas há qualquer coisa de comovente e grandioso nesta civilização”. Passa pelos pequenos pormenores, “como o cheiro das sopas, os olhos das pessoas...”
É que o Oriente, para Carlos Morais José, funciona como um paliativo. “Há quem diga que existem alguns paliativos para a dor da vida, como o tabaco, o haxixe, o ópio... eu acrescentaria o Oriente. É uma espécie de paliativo na medida em que me distrai, porque me fascinam certas coisas.” É no desconhecimento constante que reside este fascínio anestesiante. “Costumo dizer que em Macau continuo, se quiser, a ser turista. A minha incompreensão em relação à cultura chinesa é de tal ordem, devido à sua profundidade e grandeza, que tenho sempre mais alguma coisa a aprender, apesar de já cá estar há muitos anos, de ter lido muito e de me ter esforçado.”
Afastado do jornalismo do quotidiano há um par de anos, mas sempre presente enquanto “opinion maker” na página que assina semanalmente no jornal Hoje Macau, do qual é proprietário, Morais José teve um papel determinante na introdução de uma nova abordagem à profissão. “Talvez o modo directo e desassombrado como falo das coisas tenha marcado um ponto no jornalismo que se fazia em Macau. Mas penso que as outras pessoas é que podem falar com isso, eu não sou a pessoa ideal”, diz, refutando protagonismos.
A verdade é que, quando cá chegou, “na altura para trabalhar para a Revista de Cultura e não propriamente para intervir no mundo do jornalismo”, a ideia com que ficou é que se tratava de uma área que, em Macau, correspondia ao período pré-Independente em Portugal. Embora afastado das redacções, Morais José continuou ligado ao semanário português, enquanto correspondente, o que lhe deu “um estatuto elevadíssimo, porque o Independente tinha feito a investigação sobre Carlos Melancia e as pessoas olhavam para mim como se tivesse vindo para aqui descobrir grandes casos de corrupção”. Mas não, conta. “Na verdade não estava nada interessado nisso, mas sim em conhecer Macau e a China, fiquei logo fascinado por esta terra e pelas pessoas.”
O interesse e o estudo da China aconteceu naturalmente, ao ritmo da vida. Quanto aos jornais de Macau, o início deu-se com a publicação, a cada quinze dias, de um texto de opinião no então semanário Tribuna de Macau. Os artigos dessa coluna, que dava pelo nome de “Porto Interior”, com outros escritos mais tarde, acabaram por dar origem a um livro, com a mesma designação.
“O meu trabalho no jornalismo em Macau começou mesmo na fundação do Ponto Final diário, com o Paulo Aido e Carlos Carvalho, já no fim de 1991”, contextualiza Carlos Morais José. Foi esta publicação em formato A4 que teve repercussões na dinâmica local. “Foi um jornal importante, que marcou a diferença na linguagem do jornalismo em Macau. Apareceu uma nova linguagem, mais próxima da do Independente mais directa, mais moderna.”
Depois do Ponto Final diário, fez parte do núcleo fundador do Ponto Final semanário. Seguiram-se outros, trabalhou em quase todos, da Gazeta Macaense ao O Clarim, passando pelo Futuro de Macau, em que também fez parte do núcleo fundador, com Severo Portela e Luís Andrade de Sá. Deu-se então uma pausa no jornalismo, “dediquei-me à publicidade, durante vários anos, embora tenha sempre mantido uma coluna de opinião”, sintetiza.
Em 2001, surgiu a oportunidade de comprar o Macau Hoje, que passou a ser o Hoje Macau. E aconteceu assim uma dupla paternidade, quase simultânea. “O Hoje Macau nasceu em Setembro, o meu filho em Agosto”, sorri. O jornal estruturou-se rapidamente e, com a obra consolidada, Morais José preferiu sair do centro da acção. “Percebi que estou nisto do jornalismo há muitos anos e que estou a trabalhar com pessoas que considero extremamente competentes, sérias e bons jornalistas. Pensei que não valia a pena não dar o meu lugar a pessoas que têm competência para o ocupar, e que estava na altura de me afastar do jornalismo para me dedicar a outras coisas que gosto de fazer, como publicar livros, por exemplo”.
A COD, editora fundada pelo jornalista em 2003 com especial vocação para obras ligadas ao Oriente, em língua portuguesa, “passou a ocupar-me mais tempo e o facto de ter deixado o trabalho diário do jornal libertou-me”. Há três dias, a COD lançou mais um volume, da autoria de Eduardo Ribeiro, sobre a presença de Camões em Macau.
Quanto ao Hoje Macau, Carlos Morais José mantém uma coluna semanal, um exercício de escrita que é também o cumprimento de “uma responsabilidade histórica” enquanto português na RAEM. É que, para o “opinion maker”, “essa responsabilidade histórica passa por não fechar os olhos por aquilo que está à nossa volta”. Existe “uma necessidade de, por vezes, ir marcando a minha posição face aos acontecimentos que se vão passando, e é isso que vou fazendo”, diz.
A propósito deste conceito de responsabilidade, Morais José considera que “alguns portugueses chegam aqui e não têm a noção de que não estão a pisar um terreno virgem”. Ou seja, “se estão aqui é porque houve muitos outros que já estiveram cá antes e fizeram muito para que esta cidade existisse”. Assim sendo, explica, “existe uma responsabilidade histórica e cívica de intervir ou de, pelo menos, ter uma opinião sobre o presente e o futuro desta terra, e não simplesmente pensar em vir para cá ganhar dinheiro e pensar na casinha que está em Portugal à espera”.
As generalizações são complicadas e, no caso da comunidade portuguesa, ainda mais. “Não é monolítica, é até um pouco fragmentada. Há pessoas bastante diferentes dentro da comunidade”, vinca. Quanto às diferenças na forma de estar em relação a outros tempos, Morais José considera que “tínhamos uma rede onde cair que tem vindo a enfraquecer, o que não é mau”. “Agora não temos cá o paizinho governador que nos salva no momento de grandes dificuldades, se é que isso acontecia, mas havia pelo menos essa ilusão, havia uma impunidade no ar que se tem vindo a esbater.” O que é bom, até por não haver necessidade de afirmação por via da falta de respeito. “Estou muito satisfeito com o modo com a sociedade e o Governo têm lidado com a comunidade portuguesa, acho que não temos razão de queixa. Temos sido apreciados, respeitados e até amparados, de algum modo, e acho que devemos isso ao Chefe do Executivo, Edmund Ho, que sempre mostrou respeito e consideração pela nossa comunidade”, sublinha.
Ainda sobre Macau e o mundo à volta, Carlos Morais José, que diz não ser um “China lover” nem sequer um obcecado pela cultura chinesa, “embora goste muito”, recorda que, devido à sua formação, quando cá chegou começou a ler muito sobre a China, para aprofundar os conhecimentos do ponto de vista teórico que já trazia. Depois, foi a aplicação “do método por excelência da Antropologia, que é a observação participante”.
“Como estava na China, comecei a participar nesta sociedade, comecei-me a integrar. Há muitas coisas que sabemos que saem do nível do raciocínio e da razão e mergulham numa área mais profunda. São conhecimentos esparsos, fragmentados, que depois criam sínteses através de intuições”, explica. “São essas intuições que permitem uma visão mais profunda de uma cultura, de um modo de estar de uma sociedade”. Foi isso que sempre procurou, “ultrapassar o mero nível da descrição teórica e académica e entrar no conhecimento de uma cultura, participando nela, para se fazerem na minha cabeça essas sínteses, a que chamo intuições, e que me dão uma perspectiva mais cortante, mais interessante também, da cultura e das pessoas chinesas”.
Com a escrita, este processo das intuições também existe. “A escrita é um meio de aproximação a um mistério que nunca se vai revelar. Sinto que, quando escrevo, me aproximo de algo que nunca vou conhecer, que está noutro plano, e que é através da escrita que consigo estar mais perto daquilo que se considerava ser divino”, descreve.
“É como se fosse um trabalho alquímico, de decantação, de exclusão de determinadas coisas, por isso é que gosto de falar de intuição.” No momento da escrita “há uma cristalização nas palavras e no modo como se entrelaçam, nos sons que criam, nas imagens que produzem, que me fazem sentir melhor que eu próprio, é ali que me realizo para além de mim, para além daquilo que sou no quotidiano e para além daquilo que sou quando as pessoas olham para mim e julgam que me vêem.” É a alquimia das palavras.
Isabel Castro
Fotografia: António Falcão/ bloomland.cn

Passos em volta

Esta cidade é como as pessoas: quando se olha para o mapa, não se encontram duas ruas iguais. Cada bairro tem as suas histórias, vontades, artes, desejos, esperanças e desesperos. Os seus segredos sussurrados. São passos em volta à redescoberta da urbe.

Do Porto Interior ao Fai Chi Kei

À boleia da Ponte 16

O mega empreendimento que está a nascer no Porto Interior serve de pretexto para estes passos em volta, desta vez em torno da linha do rio da cidade (1). Não é uma contemplação ao edifício de dimensões desproporcionadas e de néons ofuscantes aquilo que se propõe. A Ponte 16 é apenas o ponto de partida para uma visita a outras pontes cais, onde ainda se mantêm tradições próprias de uma cultura em vias de extinção.
“A Ponte 16 veio dar um novo impulso a uma zona da cidade muito esquecida. Não é muito agradável, tem uma arquitectura sem história nem gosto, mas preferia não fazer um juízo de valor”, diz Manuel Correia da Silva. O designer, anfitrião destes olhares atentos pela cidade, acrescenta que o empreendimento veio criar um contraste com os restantes edifícios da marginal.
É à procura desse contraste que andamos nestes passos. “Começamos pela Ponte 31. Curiosamente, a solução utilizada no tipo de fonte é própria da arquitectura do Estado Novo (2)”, aponta Manuel Correia da Silva. “Entramos aqui numa zona em que ainda se vive do comércio tradicional, neste caso do produto da pesca. Há um quotidiano que faz lembrar o de uma pequena vila piscatória (3).”
E é como se o tempo tivesse parado. Esta zona está cheia de edifícios a pedirem ajuda, num estado de abandono que consegue, no entanto, ter contornos de plasticidade interessantes. São espaços relacionados com a vida própria desta zona da urbe. O designer destaca “o frigorífico gigante (4), muito degradado”, um estranho complexo no meio de uma zona em que não existem repetições arquitectónicas.
Sempre “à procura da água”, Correia da Silva aconselha a descoberta das diferenças entre as várias pontes cais, “todas com edifícios diferentes”. Em direcção ao Fai Chi Kei, mais um elemento de interesse: o casino flutuante que, em tempos, esteve do outro lado da cidade, mas que agora bóia no Porto Interior (5). “É enorme, está fechado, a boiar. Presume-se que esteja em manutenção, que não há forma de lá chegar. É uma imagem estranha”, sublinha o designer.
Mais uns passos e vale a pena olhar para a vista que a cidade oferece, deste ponto (6). Dando a volta à Avenida Marginal do Lam Mau e, depois, à Avenida do Comendador Ho Yin, são muitos os pormenores para ver, tanto na água como em terra. O designer elege uma parede que tem um dos logótipos que mais o atrai (7): é a simplicidade da comunicação, que consegue ser intemporal.
A terminar, na Avenida do Comendador Ho Yin, “um bairro de lata” cortado a meio por novos viadutos, que apresenta características estéticas de interesse. “É um bairro de chapa, na verdadeira acepção do termo, onde não se vê miséria, mas presume-se, ainda assim, que o conforto não seja muito. Já do ponto de vista estético, estas casas (8), de chapa e de ferro, têm um lado plástico forte”, explica o designer, que aconselha uma visita atenta a estes pequenos postais de uma cidade que é muito mais do que os cenários convencionais de turismo. Os passos continuam, para a semana, deixando a linha de água para trás.

Manuel Correia da Silva*, percursos e imagens
Isabel Castro, texto
* É designer em Macau. Em 2004, foi o vencedor de um concurso do Instituto Cultural sobre os percursos históricos da cidade, no âmbito da conservação do património de Macau.

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