segunda-feira, 12 de novembro de 2007

Recurso sem trâmites processuais: Os paradoxos do sistema

Trâmites processuais para recurso no caso de Ao Man Long continuam por definir

Os paradoxos do sistema

A questão não é nova - colocou-se mal foi conhecida a acusação de Ao Man Long - mas adquire agora contornos ainda mais preocupantes, uma vez que o julgamento do ex-secretário começou sem qualquer novidade sobre a matéria. É uma situação que faz com que tanto a defesa como a acusação estejam, em certa medida, a trabalhar no escuro.
Se o colectivo de juízes chegasse hoje a uma conclusão sobre o caso e se a defesa de Ao Man Long ou o Ministério Público ficassem descontentes com a decisão do tribunal, não saberiam como recorrer. É que a organização judicial da RAEM não prevê, em termos processuais, o expediente do recurso para os arguidos julgados no Tribunal de Última Instância (TUI), entidade com competência para avaliar os processos que digam respeito aos titulares de cargos políticos.
O problema não se coloca, aliás, só na altura de leitura do acórdão. Se alguma das partes, durante a fase de julgamento, entender ter matéria para recurso, da mesma forma como um processo julgado no tribunal de primeira instância tem, não sabe para onde o dirigir. É que, embora o antigo secretário para as Obras Públicas responda ao colectivo no TUI, tal só acontece por se tratar de um titular de um cargo político, o que faz com que esteja a ser, na realidade, julgado em primeira instância. Assim sendo, tem direito a um grau de recurso.
A Lei de Bases da Organização Judiciária da RAEM (Lei nº 9/1999) é lacunosa neste particular. Em Portugal, explica um jurista em declarações ao Tai Chung Pou, este tipo de situação encontra logo solução possível no Código do Processo Penal. Em Macau, a codificação é omissa, encontrando-se o mesmo vazio legal na Lei nº 9/1999.
No país cuja matriz do Direito inspira a legislação da RAEM, um titular de um cargo político é julgado no Supremo Tribunal de Justiça, pela secção, seguindo o recurso para o plenário. Em Macau, tais figuras são substituídas por “conferência” e “audiência”. Neste ponto da questão, a lei não determina as competências da audiência, à excepção da possibilidade de intervenção para a uniformização de jurisprudência. Trocando isto por miúdos, significa que não foi determinada na lei a forma de funcionamento do TUI para avaliar um recurso cujo julgamento em primeira instância tenha também decorrido neste tribunal.
Em Macau, a situação torna-se ainda mais difícil de resolver uma vez que o TUI é composto por apenas três juízes. Como um deles participou na fase de instrução do processo de Ao Man Long, o próprio colectivo responsável pelo julgamento do ex-secretário foi composto por dois juízes do TUI e um magistrado judicial da Segunda Instância, o presidente do TSI.
A limitação que se verifica no número de juízes cria um problema adicional numa tentativa de solução da questão do recurso, alertam vários especialistas em Direito Penal contactados pelo Tai Chung Pou. Os mesmos juristas entendem que, qualquer que seja a forma “improvisada” para dar a volta à questão, o que está a acontecer é, desde já, “muito grave”, defendendo que deveriam ter sido tomadas medidas para resolver o problema.
No mesmo sentido tem sido o discurso de Nuno Simões, advogado de Ao Man Long. Ao final da tarde de ontem, o responsável pela defesa do antigo governante explicou ao Tai Chung Pou que, até ao momento, “nenhuma das partes interpôs qualquer recurso”, durante as três sessões de julgamento decorridas na passada semana. Simões confirmou ainda que, em relação ao recurso, não tem qualquer informação que indique uma alteração legislativa desde que o problema se colocou até agora.
Para os especialistas ouvidos pelo Tai Chung Pou, “é impensável que alguém pudesse ser julgado sem direito a recurso”. De facto, no processo de Ao Man Long, arguido e acusação têm o direito a recurso – garantido pela Lei Básica, que contém uma norma remissiva para o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos. O que falta é a forma de garantir a execução deste expediente, através do direito processual, que serve precisamente para criar os instrumentos necessários à aplicação dos princípios do sistema jurídico.
O documento constitucional da Região Administrativa Especial de Macau, no seu artigo 40º, faz uma remissão para o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos. Esta legislação foi adoptada por Macau antes da transferência de administração e mantém-se em vigor. O artigo 14º do Pacto é claro em relação à situação em causa, uma vez que diz que “toda a pessoa declarada culpada de um delito terá direito a que a sentença e a pena que lhe foram impostas sejam submetidas a um tribunal superior, conforme o previsto na lei”.
Os juristas consideram ainda que o caso de Ao Man Long adquire contornos paradoxais, por várias razões. Desde logo, o processo do ex-secretário está a ser avaliado pelo Tribunal de Última Instância porque se assume, numa lógica de Filosofia do Direito, que será aquele em que o grau de imperfeição do julgamento humano é menor. “Por um lado, há uma garantia adicional que é conferida a um antigo titular de um cargo político, uma espécie de benefício, mas, por outro, tal situação aparentemente favorável faz com que o arguido seja prejudicado, o que é um paradoxo”, alertam os especialistas.
Depois, há ainda a ter em consideração que Ao Man Long enfrenta sozinho o colectivo de juízes - precisamente por ter sido secretário – mas que existem outros arguidos envolvidos na alegada prática dos mesmos crimes, que só respondem em processos diferentes e numa instância inferior (o Tribunal Judicial de Base) por se tratarem de cidadãos comuns. Ou seja, Ao Man Long e o irmão, por exemplo, respondem pelo mesmo tipo de crime, mas um e outro têm, desde o início do processo, garantias diferentes em relação aos trâmites dos respectivos processos.
Pelo que se sabe, desde que esta questão em torno do caso de Ao Man Long foi levantada que não houve qualquer medida adoptada no sentido de a resolver. A resposta, argumentam os especialistas, pode ser dada por uma alteração ao Código do Processo Penal ou à Lei de Bases da Organização Judiciária, sendo esta a hipótese mais recomendada. Qualquer que seja a solução a adoptar, terá sempre que se resolver um outro problema – a falta de juízes para avaliar um eventual recurso, uma vez que os actuais do TUI já estão envolvidos no julgamento em primeira instância.
Mas não é preciso esperar que o julgamento termine para concluir, desde já, que esta lacuna em termos processuais coloca em causa o normal decorrer do processo. É que, se até ontem, não tinha havido matéria para apelar a recurso, nada garante que a defesa ou Ministério Público não o façam na sessão que hoje decorre no edifício junto ao Lago Nam Van.
Isabel Castro
Fotografia: António Falcão/ bloomland.cn


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