quinta-feira, 29 de novembro de 2007

Jovens macaenses debatem Encontro 2009, Ao Man Long contesta lógica da investigação, Os idiomas de Leo Stepanov

Jovens macaenses reuniram-se para discutir Encontro 2009

Todos sob a “mesma bandeira”

“Sempre comi minchi e adoro croquetes”, afirma Noella dos Santos. Nasceu e cresceu em terras australianas. É por lá que continua a viver. Em Macau, só esteve de visita. “Já é a terceira vez”, informa. A sua alma é, sem sombra de dúvidas, macaense.
Fala português, porque não tinha outra maneira de comunicar com a avó. Envergonha-se de não dominar o cantonês tão bem como gostaria, mas promete “aprender melhor” ambas as línguas. Esta rapariga de 22 anos é um caso raro na delegação de jovens enviados pelas Casas de Macau na diáspora, visto
que grande parte da juventude macaense apenas domina o inglês.
Ao longo das actividades do III Encontro das Comunidades Macaenses, um evento que termina no próximo domingo, houve quem lamentasse que o programa seja todo em cantonês e português. Reivindicações que integram também as actas da reunião dos representantes juniores, sendo um dos primeiros contributos para a organização do tão almejado Encontro dos Jovens das Comunidades Macaenses, em 2009. Foram 30 os elementos da juventude macaense na diáspora que se juntaram ontem à mesa, na sede da Associação para a Promoção dos Macaenses.
Luso-falantes ou não, é nestes macaenses que está depositado o futuro da comunidade. Deste modo, as gerações mais velhas embarcaram numa campanha para reforçar o interesse da juventude nas suas raízes e tradições. Este ano, cada Casa de Macau da diáspora enviou delegações de jovens para participarem no evento. São três de cada associação, numa iniciativa que teve o apoio directo do Executivo da RAEM e visa lançar as sementes para criar um Conselho de Jovens Macaenses. O programa de hoje é dedicado exclusivamente às esperanças da comunidade (ver caixa).
O certo é que a aposta dos decanos no encorajamento dos mais novos parece estar a dar frutos. Há um sentimento geral de entusiasmo e de determinação em abraçar a luta pela preservação da identidade cultural. Mesmo apesar de serem muitos os jovens para quem este encontro significou o primeiro contacto com a terra dos familiares.
“A minha avó tem uma casa tipicamente macaense. Com todos os santos expostos. Quando entrei no Museu de Macau e olhei em meu redor, fiquei espantado como tudo é tão parecido com a casa dela. Isto mostrou-me que afinal existe uma cultura real e sólida”, constata Alex King, representante da Casa de Macau em Vancouver, no Canadá.
A Cultura tem-se revelado o isco perfeito para cativar a juventude macaense. É no patuá e na gastronomia que eles falam mais, comentando entre si o progresso da candidatura do crioulo maquista a património intangível da Humanidade. Além disso, não faltam opiniões sobre o futuro da comunidade. Em cada Casa mora uma preocupação diferente.
Filipe Fong, representante da Casa de Macau em Portugal, é um defensor acérrimo do cantonês, um idioma que aprendeu à medida que a mãe “ralhava” consigo. “Através desta língua, podemos conhecer melhor a nossa cultura”, sustentou.
Já os pares norte-americanos e canadianos alertam para a existência de uma barreira linguística que dificulta a comunicação e o sucesso dos encontros. O director da juventude do Club Lusitano da Califórnia, Kenneth Harper, considera que o português devia ser a língua franca da comunidade. “Não falo português, mas consigo perceber um pouco, porque aprendi patuá com a minha avó”, conta. “A língua portuguesa pode ser uma ponte para a dinamização deste dialecto entre os jovens”, sustentou.
Do Brasil, as aspirações que chegam dizem respeito ao ensino. Para além de trazer mais jovens no próximo encontro, as Casas de Macau em Terras de Vera Cruz estão interessadas em criar programas de intercâmbio entre universidades. Um assunto que será abordado hoje durante a visita aos estabelecimentos de ensino universitário do território.
“Formar um grupo, para os elementos se poderem conhecer uns aos outros e, assim, ficarem todos debaixo da mesma bandeira”. São estas as aspirações da Austrália, representada por Noella dos Santos. União é outro dos objectivos mais sublinhados pelos jovens macaenses e todos manifestam vontade em levar a cabo as tradições dos seus progenitores. “Quero que os meus filhos percebam a nossa cultura”, sublinha Jessica Xavier, da Califórnia, enquanto os colegas acenam com a cabeça, a mostrarem o seu apoio.
Para 2009, parece haver já augúrios de mais um encontro de sucesso. A juventude quer voltar, mas com mais força. Tanto que até enviaram algumas propostas para a comissão organizadora. “Era bom que, em 2009, organizassem um programa mais específico para os jovens”, defende a representante da Casa de Macau em São Paulo, Arlene Placé.
Festa foi uma palavra pronunciada muitas vezes dentro da sala de reunião. Resta agora esperar para ver se conseguem germinar as sementes lançadas pelos seniores para a criação de um Encontro das Comunidades Macaenses feito apenas pelos mais jovens.

Um dia cheio de patuá

A juventude é a rainha do dia de hoje do programa do III Encontro das Comunidades Macaenses. O grupo de teatro Doci Papiaçam vai apresentar a sua mais recente produção “Cuza Dotôr?” em dose dupla. Com o auditório da Torre de Macau como palco, a primeira sessão do espectáculo de Patuá está marcada para as 16:00 e a segunda para as 20:00.
No dia de ontem, teve lugar a cerimónia de tomada de posse dos cargos sociais da Confraria da Gastronomia Macaense, no Teatro D. Pedro V, seguida de uma conferência sobre cultura gastronómica com oradores de Macau, Portugal e China. Além disso, foi lançado o livro de receitas de Maria João Salvador dos Santos Ferreira. A tarde foi reservada para assuntos de negócios.
Deu-se o encontro entre os dirigentes das Associações de Empresários Macaenses na diáspora com os dirigentes do Instituto de Promoção do Comércio e do Investimento, os presidentes das Casas de Macau e outras associações locais. No âmbito desta reunião, foi assinado um protocolo de cooperação.
Alexandra Lages
Fotografia: António Falcão/ bloomland.cn

Maioria dos bancos de Hong Kong não disponibilizou extractos bancários ao CCAC

Ao Man Long contesta lógica da investigação

O antigo secretário para os Transportes e Obras Públicas de Macau, que está a ser julgado no Tribunal de Última Instância (TUI) pela alegada prática de 76 crimes, contestou ontem as contas feitas pelo Comissariado Contra a Corrupção (CCAC) em relação aos activos que controlava, em contas bancárias abertas em Hong Kong e, supostamente, também em Londres.
Durante a inquirição de um investigador do CCAC, Ao Man Long pediu para falar, num tom algo exaltado, afirmando que tinha, ao longo das últimas sessões, encontrado várias imprecisões nas contas feitas pelos responsáveis pela averiguação do caso e que lógica que seguem é errada.
O antigo governante referia-se a transferências de montantes entre contas de Hong Kong e de Londres que, segundo disse, aparecem repetidas na contabilidade feita pela equipa de investigadores. Explicou ainda, em relação a valores que são apresentados pela acusação como sendo o saldo das contas, que esse números se referem a créditos contraídos junto dos bancos. Referiu também, quando dava exemplos das falhas do CCAC, que não era a única pessoa com responsabilidade nos depósitos nas contas bancárias, tendo dito que os valores mencionados “não têm nada a ver com obras” e que parecia que a testemunha não estava a conseguir explicar a origem dos montantes.
O presidente do colectivo de juízes que está a avaliar o caso, Sam Hou Fai, disse ao arguido que o Tribunal irá fazer a sua própria contabilidade, pelo que não tem que temer eventuais falhas durante a investigação e deve acreditar na Justiça.
Embora tenha dito que confia no Tribunal, Ao Man Long não pareceu ter ficado sossegado com o que ouviu, tendo usado do direito a falar por mais duas vezes, para reiterar a ideia de que as contas estão mal feitas. O antigo secretário mostrou-se ainda preocupado com a opinião pública, referindo, por duas vezes, que o julgamento é acompanhado pela comunicação social, que se está a basear nos dados divulgados pelos investigadores do CCAC para escrever as suas notícias. Sam Hou Fai voltou a dizer que não há que ter apreensões em relação ao juízo que o TUI fará.
Ainda durante as suas intervenções, o ex-secretário para os Transportes e Obras Públicas defendeu que as contas que o CCAC fez deveriam ser confirmadas junto das entidades bancárias onde o dinheiro foi depositado. Esta mesma ideia foi retomada, mais tarde, pelo advogado de defesa de Ao, Nuno Simões, que quis saber se o Comissariado Contra a Corrupção pediu a confirmação dos valores depositados nas contas aos vários bancos que aparecem mencionados no processo.
Ficou-se então a saber que, à excepção do Banco da China, os outros bancos de Hong Kong não emitiram este tipo de documentação, pelo que a contabilidade dos activos do arguido foi feita com base nos apontamentos que redigia em agendas, nos extractos que foram encontrados na residência de Ao e em documentos que este imprimiu, no acesso pela Internet a algumas das contas.
O Ministério Público informou então que, em relação às 19 contas de Hong Kong geridas pelo arguido, os montantes tinham sido congelados após a sua detenção. Já em relação ao dinheiro que o arguido terá feito chegar a três entidades bancárias de Londres, o investigador do CCAC, Fong Pak Ian, disse estarem ainda à espera que os mecanismos de cooperação judiciária funcionem para poder pedir os extractos bancários.
À semelhança do que sucedeu nas sessões anteriores, Fong Pak Ian prestou depoimento em Tribunal com o apoio de meios informáticos e a projecção de provas documentais. O investigador principal esteve incumbido de avaliar as ligações entre a CSR Macau, gerida por Frederico Nolasco (ver texto nesta página) e o arguido. A testemunha explicou que foram encontradas, na residência do ex-secretário, duas minutas de um contrato entre a CSR Macau e a Polymile, empresa detida por Frederico Nolasco e a mulher. O acordo definia que, caso a CSR conseguisse a adjudicação de duas obras e a renovação do contrato de recolha de resíduos sólidos comunitários, a Polymile receberia uma quantia a título de despesas de consultadoria. Numa destas minutas foi encontrada uma assinatura, cuja autoria a investigação não conseguiu determinar.
Ainda de acordo com Fong, um documento muito semelhante foi apreendido no escritório de Frederico Nolasco, sendo que estava assinado e não continha as rasuras das minutas, de onde tinha sido cortada a obrigatoriedade de emissão de factura pela Polymile. A testemunha mostrou as cópias de vários cheques passados pela Polymile e endossados pelo pai de Ao Man Long, relativos a um dos projectos onde houve alegadamente corrupção.
A acusação diz que o arguido não terá recebido a totalidade do valor acordado com Frederico Nolasco, por ter sido entretanto detido. O investigador do CCAC explicou também que, sobre a Polymile, não foram descobertos indícios que permitam garantir que efectuava o trabalho de consultadoria, sabendo-se apenas que, em tempos, cooperava com Nolasco no fornecimento de equipamentos desportivos.
Fong Pak Ian fez ainda uma exposição detalhada sobre os bens de Ao Man Long e os montantes em contas bancárias que, não estando em seu nome, controlava por via da delegação de plenos poderes. As contas do CCAC apontam para um total de 852,520 milhões de patacas, entre os bens constantes das declarações de rendimentos e os valores alegadamente provenientes de actos ilícitos. O Comissariado Contra a Corrupção, disse a testemunha, não conseguiu, no entanto, definir a origem de parte significativa deste dinheiro.
À baila veio também um imóvel em Inglaterra detido pela Roselle Court, que a acusação diz ser, na realidade, pertença do arguido. Ao Man Long negou deter bens em Londres, bem como ter qualquer relação com a offshore em questão. Ao contrário de outras empresas que aparecem mencionadas no processo, em relação às quais o antigo governante detinha declarações de plenos poderes, não consta dos autos documento semelhante referente à Roselle Court. Confrontado com o juiz acerca da origem do dinheiro que terá servido para pagar o imóvel, a testemunha admitiu que o CCAC não conseguiu definir a proveniência dos cerca de 75 milhões de patacas.
A testemunha falou ainda dos vários milhões de patacas em dinheiro e dos objectos valiosos apreendidos na residência de Ao Man Long, onde foram encontrados também os cadernos, recibos, carimbos, chaves de cofres, livros de cheques e outra documentação que permitiu à investigação chegar à conclusão de que havia matéria para que o caso seguisse para o Ministério Público. Nuno Simões quis saber se os dois cofres encontrados em casa do arguido estavam abertos, ao que a testemunha respondeu negativamente. O investigador explicou que só foi possível ter acesso ao seu conteúdo nas instalações do CCAC, com a ajuda de peritos.
Recorde-se que a busca feita na residência do antigo governante é fortemente contestada pela defesa por ter sido efectuada sem que este tenha sido notificado para estar presente ou se fazer representar. O facto deu já direito a um recurso da decisão do TUI, depois do colectivo de juízes ter indeferido o pedido de nulidade do meio de obtenção de prova. Ontem, Simões voltou a pedir para que constasse em acta que a testemunha tinha prestado depoimento com base em documentação apreendida em casa do arguido.
A próxima sessão do julgamento, que será já a 13ª, está marcada para a próxima segunda-feira.

Arguidos nos processos conexos foram ao TUI

O silêncio das testemunhas

Dezoito arguidos dos processos conexos ao do julgamento de Ao Man Long compareceram ontem no Tribunal de Última Instância, sem terem, contudo, prestado esclarecimentos sobre o caso. O Ministério Público tinha arrolado as testemunhas que, sendo arguidas nos processos relacionado ao que o TUI está a julgar, se podem recusar a prestar depoimento. Sem excepção, todas elas preferiram manter-se em silêncio.
Entre os arguidos que ontem foram ao TUI, estavam o irmão e a cunhado do ex-secretário para os Transportes e Obras Públicas, Ao Man Fu e Ao Chan Wa Choi, respectivamente. Acusados da prática, em co-autoria e na forma consumada, de crimes de branqueamento de capitais, encontram-se ambos em prisão preventiva no Estabelecimento Prisional de Macau. Acompanhados por guardas e vestindo as roupas da prisão, recusaram ambos prestar depoimento.
O presidente do colectivo de juízes, Sam Hou Fai, quis, no entanto, fazer uma pergunta a Ao Man Fu, perguntando-lhe se, depois da morte da mãe (que ocorreu no final de 2003), tinham sido feitas partilhas dos bens. O irmão de Ao Man Long disse que não. Na sessão de ontem, a defesa do ex-secretário tinha questionado um investigador principal do Comissariado Contra a Corrupção precisamente sobre a questão das partilhas, depois desta testemunha ter mostrado documentos de um banco de Hong Kong sobre o acesso a um cofre aberto pela mãe do arguido no início de 2003. Após o seu falecimento, continuou a ser utilizado depois por Ao, a quem tinham sido delegados poderes para tal.
No TUI esteve ainda presente o empresário Frederico Nolasco da Silva, acusado de crimes de corrupção activa e de branqueamento de capitais. Explicando ao juiz ter já o julgamento marcado no Tribunal Judicial de Base, remeteu explicações para a sede própria da avaliação do seu processo.
Frederico Nolasco da Silva está entre o grupo de empresários que surgem no caso por alegadamente terem praticado crimes de corrupção activa para garantirem a adjudicação de obras ou projectos. A acusação sustenta que a CSR Macau — Companhia de Sistemas de Resíduos, Limitada, gerida por Nolasco, foi favorecida, em troca de compensações ilícitas, em três projectos diferentes: a adjudicação directa da construção e gestão da Estação de Tratamento de Resíduos Especiais e Perigosos, o ajuste directo do desenvolvimento do projecto-piloto de recolha automática de resíduos sólidos e a renovação do contrato para a limpeza e recolha de resíduos sólidos.
O Ministério Público sustenta que o crime foi praticado através da Polymile Limited, de Hong Kong, empresa detida por Frederico Nolasco e pela esposa, tendo sido esta a passar os cheques que foram endossados pelo pai de Ao Man Long e depositados numa conta bancária controlada em exclusivo pelo antigo secretário. Ontem, Patrícia Nolasco da Silva esteve também no TUI, tendo dito logo que não queria responder às perguntas do Tribunal. Uma possível falha de comunicação fez com que Sam Hou Fai insistisse com a testemunha, que disse por várias vezes ser arguida e não pretender responder. Só depois de dizer que não queria dizer nada que pudesse afectar o julgamento do marido e reiterar recusar-se a depor é que o presidente do colectivo lhe deu autorização para abandonar a sala.
A sessão da tarde ficou marcada, assim, por um “entra e sai” de testemunhas que pouco mais disseram do que os seus nomes, locais de trabalho e relação com os processos conexos. A maioria das pessoas trabalha na Sam Meng Fai, empresa detida pelo empresário Ho Meng Fai, a quem foram imputados crimes de corrupção activa e que se encontra em paradeiro desconhecido.
Acusados de ajudarem o patrão no branqueamento de capitais, entre os trabalhadores acusados encontra-se pessoal da secretaria e contabilidade, pelo que foi possível perceber, e alguns indivíduos que trabalham em obras. Um deles, com visíveis dificuldades em perceber as questões que lhe estavam a ser colocadas pelo juiz, calçava umas botas próprias das obras de construção civil, deixando adivinhar, pela aparência e pelas respostas dadas, que o seu exercício de funções na empresa está longe dos cargos dirigentes.
Do grupo de arguidos, destaque ainda para um funcionário da empresa Tong Lei que o MP insistiu em inquirir, alegando pretender colocar questões não relacionadas com o crime que lhe foi imputado, não obstante o protesto da defesa, que considerou que as perguntas estariam sempre relacionadas. Do seu depoimento pouco há a dizer, uma vez que, segundo explicou, esteve fora da empresa durante um período.
Já sobre a adjudicação directa do contrato de gestão e manutenção da Praça das Portas do Cerco – uma das obras em que alegadamente houve corrupção – a testemunha considerou normal a atribuição à Tong Lei, que já tinha concorrido à prestação do mesmo tipo de serviço após a conclusão do Centro Cultural de Macau, cuja construção foi da responsabilidade da empresa de Tang Kin Man.
O Tribunal aproveitou a deixa para perguntar se, no caso do Centro Cultural de Macau, em que a Tong Kei não ficou com a gestão, sendo apenas responsável pela manutenção no período determinado no contrato, tinha havido conflitos entre a construtora e a empresa gestora. A testemunha assegurou que não houve problemas de qualquer ordem.
Recorde-se que, aquando das declarações feitas em Tribunal, o antigo coordenador do Gabinete para o Desenvolvimento de Infra-estruturas, Castanheira Lourenço, tinha justificado a adjudicação directa da gestão dos equipamentos da Praça das Portas do Cerco apoiando-se precisamente no facto da experiência do Centro Cultural não ter sido a melhor, por conflitos de responsabilidades.
Castanheira Lourenço vai ser ouvido de novo no TUI, por causa deste contrato, uma vez que, na segunda-feira passada, uma testemunha deu a conhecer novos factos aditados à acusação, e que envolvem uma empresa à qual foi entregue, pela Tong Lei, a efectiva aplicação do contrato celebrado com o GDI.
Isabel Castro

Leo Stepanov, tradutor e intérprete de cinco idiomas

A arte de perceber o mundo

Fala fluentemente português, inglês, mandarim, cantonês e russo, a sua língua materna. Escreve também em todos estes idiomas e é capaz de fazer traduções em simultâneo de palestras das áreas mais diversificadas. Para Leo Stepanov, a história de que o conhecimento de línguas abre portas para o mundo é redutora: a língua é ela própria um mundo.
A explicação é simples e nada tem de metafórica. “O mundo é uma percepção, é aquilo que vemos, que conhecemos”, começa por dizer. “Quando aprendemos uma nova língua, abre-se uma parte do mundo que ninguém mais vê, só a própria pessoa.” O “prazer” que isto lhe dá, continua, faz com que mantenha vivo o desejo de desejo de aprender mais idiomas. Leo Stepanov não se contenta com partes, quer o mundo inteiro. Está agora a aprender árabe e coreano.
Há 17 anos em Macau, o tradutor e intérprete diz ainda hoje não ser capaz de apresentar uma justificação lógica para a escolha do destino no Sul da China. “Como aconteceu a muitas pessoas, vim por duas semanas, fiquei dois meses, depois dois anos.” Os dias foram-se multiplicando e ainda cá está, sócio de uma empresa de traduções com escritório no coração da cidade.
Aterrou em Macau vindo de Pequim, com a licenciatura em mandarim ainda fresca debaixo do braço. Natural de uma cidade a mil quilómetros de Moscovo, “o que é perto para as dimensões do país”, Leo Stepanov desde cedo se habituou a conviver com diferentes culturas e formas de comunicação. “Nasci numa cidade industrial e académica, que tem uma grande colónia alemã, pelo que vivia entre os russos e os alemães. O meu pai trabalhava para a Lufthansa e comecei a viajar com dois anos de idade, andávamos sempre de um lado para o outro.”
A profissão do pai fez com que o interesse pela diferença desde cedo aparecesse, mas não bastou para lhe seguir as pegadas em termos de carreira. Os dois progenitores são ambos engenheiros e o irmão também, todos eles de diferentes áreas. “Mas as conversas eram muito chatas, muito técnicas. Um dia, tinha uns 16 anos, disse à minha mãe que iria fazer algo louco, completamente diferente”, recorda. E assim foi. Aos 17 partia para Pequim, para estudar mandarim. “Deixaram de falar comigo durante um ano. Depois passou”, sorri.
Corria o ano de 1989 e os acontecimentos de Tiananmen ainda pairavam no ar. “A China não era o que temos agora”, relata. “Era um bocadinho duro. A cidade era cinzenta, suja, cheia de pó. Só havia três cores: verde, azul e cinzento, que eram as das roupas que as pessoas vestiam.” As transformações da última dezena e meia de anos deixam-no fascinado, confessa. “Ver o que a China cresceu desde então é fantástico. Se calhar foi este factor que me manteve cá, porque na Europa isto não acontece. Desenvolve-se, sim, mas vai devagar, percebe-se que vai demorar uma ou duas gerações até acontecerem determinadas coisas. Aqui não é assim.”
Curso de mandarim concluído, Stepanov deu com Macau por acaso. Gostou do ambiente, contrastante com a imensidão de Pequim, e não tardou a encontrar emprego e a trabalhar com portugueses. Já dizia “algumas coisas básicas” em português, mas foi cá que começou a estudar. Aprendeu o idioma num ápice, fruto das circunstâncias: a oferta de um estágio em Portugal.
“Tinha quatro meses para me desenrascar. Comprei um livro e fiz todos os esforços para aprender português. Não disse nada a ninguém e comprei uma edição norte-americana, com cassetes”, explica. Durante um mês dedicou todo o seu tempo livre a exercícios e à audição das gravações. “Depois, quando comecei a falar com os portugueses, riram-se. Disseram-me que falava muito bem, mas com sotaque brasileiro”, recorda, com uma gargalhada. “Fiz um novo esforço no espaço de tempo que restava e comprei um outro livro, desta vez feito em Portugal.”
Da estadia no país à beira do Atlântico recorda o Norte, onde esteve dois meses, em 1994, bem como as viagens que se seguiram, a caminho da Guiné-Bissau com um projecto das Nações Unidas, dois anos mais tarde. “Tive a oportunidade de viajar muito, fiquei a conhecer bem Portugal. Posso servir de guia turístico”, atira.
De regresso a Macau, a conversa vira-se inevitavelmente para um dos temas mais falados na semana passada: a falta de tradutores e intérpretes, principalmente na área da Justiça. Para o profissional com quase duas décadas de vida e experiência no território, o facto de não haver gente qualificada para garantir a comunicação, numa cidade em que os idiomas se cruzam cada vez mais, ronda a inadmissibilidade.
“Macau é um dos poucos locais do mundo que reúne condições fantásticas para desenvolver este ramo. Devia existir uma academia de línguas, com professores internacionais, que conheçam bem as matérias que vão ensinar, com workshops, educação contínua e professores de renome a passarem por cá”, defende. “Com esta mistura de residentes, de visitantes e com a troca de culturas que existe há imenso tempo, estão criadas as condições para aprender as variações modernas das línguas e não aprender através de um livro que foi escrito há 30 anos.”
Para Stepanov, Macau oferece, a este nível, condições que mais ninguém tem em redor. É uma característica única, que falta a Hong Kong e à China. “Só aqui é que existe esta combinação de línguas. Em termos proporcionais, temos muitos mais estrangeiros do que Hong Kong. As misturas que se criam nas escolas são impressionantes: as crianças estudam um idioma ou mais nas aulas, comunicam entre elas nas suas próprias línguas, existe este ambiente propício à aprendizagem”, vinca.
Para sustentar a oportunidade “fantástica” da criação de uma academia de línguas na RAEM, o tradutor conta que Xangai teve um projecto do género, reformulado em 1949 e então redireccionado para o mandarim. “A cidade tinha uma comunidade linguística muito forte, devido às concessões estrangeiras, que deu início à indústria de manuais e dicionários. Ainda hoje, o melhor dicionário de chinês-russo é feito em Xangai.”
Tradutor profissional com um vasto currículo, Stepanov é sócio de uma empresa “pequena”, característica “importante na tradução, uma especificidade da indústria”. Há muitos intérpretes que trabalham sozinhos a vida toda, mas o russo decidiu fazer uma parceria com seis pessoas, que “não estão permanentemente em Macau, correm o mundo, mas estão aqui baseados”. A rede é complementada com outros intérpretes que colaboram a partir dos mais diversos pontos do planeta.
“Estamos a tentar criar uma base de linguistas em Macau, mas será preciso ainda alguns anos. A interpretação exige muita experiência, não basta ter um diploma, por melhor que tenha sido a nota do final de curso”, frisa. “É preciso estar no meio dos eventos internacionais e ter uma grande cultura geral.” Mesmo no caso de áreas específicas como a Justiça, não basta a um intérprete dominar bem os termos jurídicos nas diferentes línguas de trabalho. “Um tradutor, para ser bom, não se pode concentrar apenas numa área, tem que saber tudo”, reitera. Não chega aprender um idioma e fazer uso dele. “O meu iTunes deve ser o mais aborrecido do mundo. Faço downloads durante a noite de noticiários de todo o mundo, preciso de estar dentro das notícias, dos acontecimentos recentes, porque o intérprete não tem tempo para pensar quando chega a hora de traduzir”, diz.
A profissão que escolheu é sinónimo de liberdade, dada a independência que permite no trabalho do quotidiano, mas é também de grande risco. “Tenho um colega mais velho que diz que só se é bom até ao último trabalho que se fez”, explica. A partir do momento em que se comete um erro, “acabou”. Para evitar falhas, aconselha o também professor, há que ler muito, comprar dicionários e falar, falar sempre.
Em relação à língua portuguesa, este apaixonado por gramáticas e dicionários tem um discurso muito pragmático e incisivo. Sem sentimentalismos lusitanos, que não os tem, considera que “é uma pena que as pessoas em Macau não se tenham apercebido da utilidade de saber falar português”. Dando como exemplo gente que conhece, que “teve o primeiro contacto com a língua portuguesa em Macau e que agora tem carreiras profissionais de sucesso na China e em organizações internacionais”, Leo Stepanov recorda que “o português é uma das línguas mais faladas do mundo”, para em seguida apresentar um outro argumento de peso. “Cheguei a ter alguns alunos chineses que queriam umas explicações de português antes de irem para as aulas do IPOR. Expliquei-lhes que quem sabe português tem muita mais facilidade em aprender outras línguas latinas, mas não o contrário. Quem sabe português chega a Itália e está lá muito bem, mas um italiano em Portugal já é um caso diferente”, defende. Ou seja, não é só o mundo lusófono que se passa a conhecer, mas também o “da América Latina e de países europeus com línguas latinas”.
Com um tom crítico, o intérprete considera que “em Macau, território com o tamanho de uma aldeia mas características de um país, as mentalidades ainda são um pouco fechadas”. Isto para dizer que “há pessoas que olham para o português como se tivesse sido algo dado, uma coisa daqui, mas já as que viajam percebem e começam logo a apreciar a utilidade”. É tudo uma questão de saber agarrar as oportunidades que estão à volta, diz o russo que aprendeu a falar português e cantonês em Macau, que tem no inglês uma das várias segundas línguas e que, um dia destes, consegue comunicar em árabe e coreano.
Isabel Castro
Fotografia: António Falcão/ bloomland.cn

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