terça-feira, 13 de novembro de 2007

Caso Ao Man Long: As explicações de Jaime Carion

Jaime Carion diz que era Ao Man Long quem escolhia empresas adjudicatárias

O superior é que sabe

O director dos Serviços de Obras Públicas e Transportes, Jaime Carion, disse ontem em Tribunal que recebia indicações orais de Ao Man Long em relação às empresas a quem deveriam ser adjudicadas as obras públicas de grande envergadura. De acordo com Carion, testemunha arrolada pelo Ministério Público no âmbito do julgamento do ex-secretário para as Obras Públicas, Ao Man Long tinha conhecimento das empresas a concurso depois da comissão responsável pela avaliação fazer uma “grelha provisória” em que pontuava as concorrentes.
Ainda segundo Jaime Carion, o antigo secretário, por via de despacho oral, informava então o responsável da decisão tomada que, por sua vez, a comunicava aos funcionários da Direcção dos Serviços de Solos, Obras Públicas e Transportes (DSSOPT). As grelhas provisórias elaboradas pela comissão de avaliação eram sempre entregues a Ao Man Long desde que o valor da obra fosse acima dos 6 milhões de patacas, disse ainda Carion.
Estas “grelhas de avaliação” a que Ao Man Long tinha acesso – e que não constam dos autos - foram também mencionadas pelo assessor para as Obras Públicas do antigo secretário, Chau Chu Man. No depoimento prestado antes de Carion ter feito declarações em tribunal, Chau – que até 2003 trabalhou na DSSOPT, tendo feito parte de comissões de avaliação – fez referência a um “esboço” com as pontuações dadas às diferentes empresas, que entregava ao seu superior.
O actual assessor não sabia, contudo, qual era o último destinatário dos tais “esboços”, mas disse que as comissões de avaliação reajustavam os valores após terem sido recebidas indicações superiores, que o próprio Chau transmitia, por sua vez, ao seu subordinado funcional.
Tanto Jaime Carion como Chau Chu Man não conseguiram, quando questionados sobre várias obras, dizer se a empresa vencedora, resultante da indicação de Ao Man Long, coincidia com aquela que tinha obtido mais pontos na “grelha provisória” elaborada pela comissão de avaliação, alegando que não se recordavam. O director dos Serviços de Solos, Obras Públicas e Transportes referiu, contudo, que foram poucas as vezes em que eram atribuídas as obras à concorrente que tinha sido mais bem classificada pela comissão de avaliação da DSSOPT.
Outra coincidência entre os depoimentos das duas testemunhas diz respeito à legalidade dos procedimentos. Embora a questão só tenha sido colocada directamente ao assessor do Gabinete do secretário para os Transportes e Obras Públicas – que explicou, por diversas vezes, jamais colocar em causa indicações de superiores -, Jaime Carion deu a entender, no depoimento que fez, que a exigência de Ao Man Long em relação à “grelha preliminar” e a decisão posterior que tomava se deviam a questões de ordem política.
O responsável fez a distinção entre as competências da DSSOPT, de nível “técnico-administrativo”, e as do secretário, de gestão “político-administrativa”, para depois dizer que o ex-governante lhe tinha explicado que deveria fazer a “grelha provisória” para que pudesse conhecer o processo. Jaime Carion, que preferiu prestar depoimento em português, utilizou as expressões “bem” e “com razão” para classificar a atitude de Ao Man Long, justificando que este tinha preocupações de gestão da sociedade, de modo a que os concursos não pendessem todos para o mesmo lado. O então secretário explicou-lhe ainda a necessidade de “gestão macro” da sociedade no sentido político.
Quanto ao depoimento do assessor Chau – que deu origem à leitura das declarações prestadas na fase de inquérito pelo presidente do Tribunal de Última Instância (TUI), Sam Hou Fai, a pedido do Ministério Público (MP) e contra a vontade da defesa, por haver uma discrepância de declarações – destaque ainda para o momento em que foi questionado pelo advogado de defesa de Ao Man Long.
Nuno Simões quis saber se Chau Chu Man é arguido nalgum processo relacionado com o presente caso e se alguma vez teve um processo disciplinar, sendo que a testemunha respondeu negativamente a ambas as questões. Depois, perguntou-lhe se alguma vez tinha comunicado aos seus superiores a alteração dos resultados do concurso, questão a que a testemunha não respondeu, alegando não estar a perceber. O advogado de defesa perguntou-lhe então se a comissão de avaliação tinha falsificado o resultado dos concursos, tendo Chau negado que tal tivesse acontecido.
Neste ponto da inquirição, o presidente do TUI interrompeu e advertiu Nuno Simões de que não podia ameaçar a testemunha. O advogado continuou com as questões e perguntou a Chau se alguém lhe tinha dado indicações sobre o que dizer em Tribunal ou se tinha combinado com alguém dar as mesmas respostas, tendo a testemunha negado.
A existência de grelhas de avaliação foi sustentada ainda por dois técnicos da DSSOPT, ambos membros de comissões de avaliação, que estiveram também ontem no TUI. De ambos os depoimentos ficou a ideia de que passavam as grelhas de avaliação aos superiores e que tinham conhecimento das alterações feitas posteriormente, sendo estas introduzidas nos critérios subjectivos do concurso.
Na sessão de ontem, em que foi ouvido também o chefe de Gabinete do secretário para os Transportes e Obras Públicas, Wong Chan Tong, foram mencionados por diversas vezes dois documentos do Plano de Investimento e Despesas de Desenvolvimento da Administração (PIDDA). Os papéis foram mostrados a algumas testemunhas pela acusação, segundo a qual foram encontrados na posse de uma empresa privada.
Ao longo do dia, ficou a saber-se que não continham carimbo de entrada do Gabinete do secretário, tendo Wong Chan Tong explicado, quando questionado pelo MP, que aquele tipo de documentos era do conhecimento de apenas três pessoas dentro da estrutura onde trabalha. Mais tarde, em resposta a Nuno Simões, admitiu que eram também enviados para a Direcção dos Serviços de Finanças, justificando a disparidade em relação à primeira resposta ao dizer que se tinha limitado a contar as pessoas do Gabinete.
No depoimento que prestou, Wong – que ocupa o cargo desde 1999 – explicou também que o Gabinete de Ao Man Long funcionava de modo distinto dos restantes secretários, pois a documentação seguia directamente para o ex-governante que, por seu turno, a despachava para os assessores. Após parecer da equipa técnica, o processo inverso era o mesmo, sendo que o chefe de Gabinete não tinha, deste modo, acesso a grande parte da documentação.
Quanto aos documentos do PIDDA, de acrescentar ainda que o assessor Chau Chu Man considerou que as informações contidas poderiam permitir uma trabalho de preparação às empresas que estivessem na sua posse. Também Jaime Carion entende que jamais uma companhia privada deve ter acesso à informação constante na documentação em causa – referente, pelo que foi possível perceber, à inscrição das despesas com Obras Públicas no Orçamento do Governo da RAEM -, tendo depois respondido, a Nuno Simões, que desconhece se são dados tantos pormenores na divulgação pública do Orçamento quantos os que estão inscritos nos documentos que fazem parte do processo.
Num caso em que surgem associadas 41 obras feitas na RAEM, nos últimos anos, foram apenas meia dúzia as abordadas na sessão de ontem, uma vez que a maioria dos processos relativos a estas construções foram lançados e geridos pelo Gabinete para o Desenvolvimento das Infra-estruturas (GDI). Assim sendo, falou-se da Nave Desportiva dos Jogos da Ásia Oriental, do Centro Internacional de Tiro, das instalações da Capitania dos Portos no Porto Interior e do Silo do Estádio, exemplos mencionados aquando das questões colocadas sobre a atribuição das empreitadas.
À baila veio ainda a troca de um terreno detido por um privado em Pac On. Jaime Carion confirmou ter recebido indicações orais de Ao Man Long para procurar um terreno em substituição da parcela PO5 (lote 5 de Pac On), sendo que o requerimento do proprietário chegou depois do pedido do seu superior. Segundo o responsável máximo pela DSSOPT, o antigo secretário argumentou que a troca era necessária devido ao facto de o terreno estar situado numa zona junto aos futuros acessos do túnel subterrâneo de ligação entre Macau e a Taipa. Carion disse em tribunal que não desconfiou de Ao, mas que decidiu confirmar a justificação dada por este junto de Castanheira Lourenço, até há poucos dias coordenador do GDI. Da troca de informações, a testemunha ficou a saber que, ao contrário do que tinha dito o então secretário, o terreno não estava nas imediações do futuro túnel. Não chegou a haver troca de terrenos nem Carion comunicou a descoberta ao antigo governante, porque entretanto este foi detido.
No primeiro dia de audição de testemunhas, foram ouvidas nove pessoas, quatro delas relacionadas com dois casos de abuso de poder imputados a Ao Man Long (ver texto nesta página). De notar o facto de Ao Man Long – que esteve em silêncio durante toda a sessão, uma vez que não pediu para ser ouvido – ter permanecido as oito horas da audiência sempre na mesma posição: a olhar em frente, jamais virando a cara na direcção das testemunhas, que se encontravam sentadas a cerca de dois metros de distância do ex-secretário.

Nomeações para a CEM

De pai para filha

A antiga administradora do Governo na Companhia de Electricidade de Macau (CEM) admitiu ontem desconhecer quais os deveres do cargo que ocupou entre Setembro de 2006 e Março deste ano. Lee Yuen Wai, testemunha arrolada pela acusação, prestou ontem declarações no TUI. Ouvida no âmbito de dois crimes de abuso de poder imputados ao ex-secretário para os Obras Públicas e Transportes, Lee confirmou que não compareceu em qualquer reunião nem enviou relatórios ao Governo sobre os trabalhos da CEM.
A testemunha ocupou o cargo deixado pelo pai, Lee Se Cheung, que foi também indicado para a CEM por Ao Man Long. Questionada acerca das razões da sua indigitação, Lee Yuen Wai disse presumir que tal se devesse ao facto de o pai ter desempenhado tais funções na Companhia de Electricidade de Macau. Sobre os seus deveres, a testemunha disse que sabia apenas que não tinha que comparecer diariamente.
Na altura, Lee tinha acabado de concluir a licenciatura em Gestão de Empresas nos Estados Unidos, facto que levou o Tribunal a perguntar-lhe se não conhecia o funcionamento de um conselho de administração e se sentia ter legitimidade ao receber o salário mensal de 20 mil patacas. A ex-administradora respondeu dizendo que partia do princípio que, se fosse preciso trabalhar, seria convocada. Quanto ao facto de não ter participado na reunião para a qual se lembra de ter sido convocada, argumentou que estava ocupada na data indicada pela CEM. Desde Novembro do ano passado que desempenhava as funções de secretária numa empresa do sector privado.
Sobre o mesmo caso foi também ouvida a viúva de Lee Se Cheung. Cheung Yuk Ping disse que o marido era empresário do sector têxtil e que só teve conhecimento de que desempenhava funções na CEM pouco antes da sua morte. Lee surge também associado à Ecoline, uma das offshores envolvidas no caso, mas sobre esta empresa a testemunha disse nada saber.
Segundo a acusação, Ao Man Long deu as indicações dos nomes de pai e filha a Arnaldo Santos, actual coordenador do Gabinete para o Desenvolvimento do Sector Energético, que transmitiu os dados ao então presidente da Comissão Executiva da empresa, José Vaz Marcelino. No TUI, Arnaldo Santos confirmou ontem a recepção das indicações, acrescentando desconhecer se, tanto num caso como no outro, os administradores entregaram relatórios ao Governo, uma vez que não os conhecia e tal matéria estava sob a alçada do ex-governante.
Quanto a Vaz Marcelino, também testemunha no processo, disse que esteve apenas uma vez reunido com o pai e, depois, com a filha, para dar indicações sobre os trabalhos do Conselho de Administração, não tendo, por isso, dados suficientes para avaliar se reuniam as competências necessárias para o cargo.
As nomeações de Lee Se Cheung e da filha nunca chegaram a ser publicadas em Boletim Oficial. Ao Man Long admitiu ao Tribunal, na semana passada, ter entregue os dois currículos mas sublinhou que cabia à empresa decidir sobre a validade das pessoas e garantiu ter sempre tratado dos assuntos relacionados com a CEM com Arnaldo Santos, pessoa da sua confiança.
A acusação confrontou-o, na primeira sessão do julgamento, com o facto de Lee Se Cheung nunca ter comparecido nas reuniões da CEM nem ter elaborado qualquer relatório, tendo o ex-governante sustentado, na resposta, que não era matéria da sua competência, uma vez que tratava dos assuntos da empresa de electricidade directamente com Arnaldo Santos. Recusou, contudo, ter nomeado Lee Se Cheung em troca de um favor deste empresário, por ter criado a companhia Ecoline.
Isabel Castro
Fotografia: António Falcão/ bloomland.cn




Na edição impressa:

- Hong Kong e as preocupações com o património
- Um carácter por dia
- O que diz a imprensa em língua chinesa

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