segunda-feira, 5 de novembro de 2007

Um julgamento para durar

Ao Man Long começa a ser julgado hoje

Um longo e mediático processo

Há quem lhe chame o julgamento do século, outros sublinham o facto de não se conhecer, na história de Macau, caso de tão grandiosa dimensão que envolva um antigo responsável por uma tutela governamental. Quase 11 meses depois de ter sido detido e exonerado do cargo, Ao Man Long começa a ser julgado hoje no Tribunal de Última Instância (TUI).
O ex-secretário para os Transportes e Obras Públicas é acusado de 76 crimes de corrupção e de branqueamento de capitais, naquele que será, sem dúvida alguma, o processo mais mediático de que há memória. Fortes medidas de segurança e de controlo de acesso ao TUI foram determinadas nos últimos dias, dada a atenção que os órgãos de comunicação social, bem como a população em geral, têm dado ao caso.
A Agência Lusa recordava ontem que, durante a investigação efectuada desde a prisão de Ao Man Long, a 6 de Dezembro do ano passado, o Comissariado Contra a Corrupção encontrou em cofres pessoais, na residência oficial do ex-governante e em entidades bancárias de Macau e Hong Kong, bem como em outras contas bancárias um total de cerca de 795 milhões de patacas.
Além dos valores monetários, foram ainda apreendidas jóias no valor de quatro milhões de patacas, entre as quais três relógios com um valor de 2,4 milhões de patacas, cerca de 300 garrafas de vinho com um valor de quatro milhões de patacas e especialidades chinesas, como barbatanas de tubarão e ninhos de andorinha, com um valor aproximado de 700 mil patacas.
Os crimes terão sido praticados entre 2002 e 2006, período de tempo em que o casal Ao Man Long e Camila Chan Meng Ieng terá conseguido rendimentos de trabalho de cerca de 14 milhões de patacas, embora estivesse na posse de valores superiores aos 800 milhões de patacas.
Informações da investigação sustentam ainda que o alegado esquema de corrupção passou pela abertura de empresas em paraísos fiscais em nome das quais eram depois abertas contas em Hong Kong. O dinheiro passava por diversas contas em quantias pequenas até ser junto a uma única conta controlada por Ao Man Long, antes de seguir para outros destinos, como Inglaterra, onde o ex-governante tinha em depósitos e títulos de dívida cerca de 275 milhões de patacas.
O ex-governante é acusado de crimes de corrupção passiva e de branqueamento de capitais. Descartando uma análise sobre o caso em concreto, por ser da competência exclusiva do TUI, o advogado Óscar Madureira ajuda a perceber a tipologia dos crimes em causa neste processo.
“Sempre que se fala de corrupção, fala-se de algo que subverte uma ordem de confiança e de regularidade, ou seja, fala-se numa forma de obter resultados que não da forma ‘convencional’”, começa por explicar o advogado, em declarações ao Tai Chun Pou.
O conceito de convencionalidade está intimamente ligado à noção de Estado de Direito, que só o é por existirem “procedimentos que se destinam a proteger os cidadãos do arbítrio do poder e para assegurar uniformidade e segurança na relação entre cada um dos cidadãos e a Administração”.
“A corrupção pode ser sujeita a diversas definições. Não obstante, para haver corrupção, há sempre um comportamento verificado ou prometido, ou a ausência deste que, numa dada circunstância, constitui crime”, acrescenta Óscar Madureira.
No caso em análise, Ao Man Long é acusado de corrupção passiva, uma das duas figuras contempladas, em relação a este instituto jurídico, pelo ordenamento jurídico da RAEM. Dentro da noção legal de corrupção passiva existe ainda uma subdivisão que distingue duas realidades diferentes: corrupção passiva para acto ilícito (regulada pelo artigo 337º do Código Penal de Macau (CPM)) e corrupção passiva para acto lícito (artigo 338º da mesma codificação).
De acordo com o CPM, o crime de corrupção passiva para acto ilícito verifica-se quando “o funcionário que, por si ou por interposta pessoa com o seu consentimento ou ratificação, solicita ou aceita, para si ou para terceiro, sem que lhe seja devida, vantagem patrimonial ou não patrimonial, ou a sua promessa, como contrapartida de acto ou de omissão contrários aos deveres do cargo”. É punido com pena de prisão de 1 a 8 anos.
Já sobre a corrupção passiva para acto lícito, diz o Código Penal de Macau que esta existe quando “o funcionário que, por si ou por interposta pessoa com o seu consentimento ou ratificação, solicita ou aceita, para si ou para terceiro, sem que lhe seja devida, vantagem patrimonial ou não patrimonial, ou a sua promessa, como contrapartida de acto ou de omissão não contrários aos deveres do cargo”. Para este crime, a lei prevê pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias.
Óscar Madureira clarifica a diferença entre corrupção passiva e activa. “O momento da consumação dos crimes de corrupção é a oferta (ou solicitação) de pagamento (ou de outro tipo de vantagem), independentemente do efectivo pagamento se vir a verificar ou não”, diz. “Nos crimes de corrupção, o espaço da tentativa é bastante reduzido. Na verdade, logo que um funcionário pede que lhe seja paga uma vantagem – logo que o faz -, consuma o crime de corrupção passiva”, sublinha.
“Do mesmo modo, no momento preciso em que alguém dá a entender a um funcionário que pretende pagar-lhe (ou conceder-lhe outro tipo de vantagem), em troca de um tratamento de favor que pretende dele, consuma o crime de corrupção activa”. No processo de Ao Man Long, estão acusados deste último tipo de corrupção responsáveis das empresas Tong Lei, San Meng Fai, H. Nolasco e Chong Tit, que participam ainda no julgamento do ex-governante na qualidade de testemunhas.
Já quanto ao branqueamento de capitais, o advogado conta uma lenda que, carecendo de confirmação histórica, ajuda a perceber o conceito jurídico deste crime económico. “Conta-se que o termo terá sido inventado por Al Capone, que se servia de uma cadeia de lavandarias operadas pela introdução de moedas, espalhadas por Chicago, para disfarçar os seus proveitos do jogo, da prostituição e de todas as outras actividades ilícitas que mantinha”.
O conceito “descreve com perfeição o circuito de lavagem de dinheiro, desde a passagem por um ciclo de transacções, até sair do outro lado legalizado”. “Pelo meio existe uma sucessão de transferências e negócios de modo a que esses fundos possam aparecer como legítimos”, descodifica Madureira. “A lavagem de dinheiro representa, hoje em dia, uma das maiores economias alternativas de mercado”, acrescenta.
“O branqueamento de capitais é normalmente caracterizado como sendo um processo em três etapas, designadas na terminologia inglesa, habitualmente usada, por ‘placement’, ‘layering’ e ‘integration’. O branqueamento de capitais corresponde, em termos criminológicos, às duas primeiras fases (e em especial à segunda), mas não à terceira, a ‘integration’”. O advogado diz ainda que, “apesar de os métodos potencialmente utilizáveis no branqueamento de capitais serem ilimitados, podemos considerar os seguintes como sendo os mais comuns: cambistas, transportadores de fundos, estabelecimentos de troca de cheques, casinos, pistas de corridas, locais de qualquer tipo de jogo, venda de lotarias, totolotos, totobolas, comercio de antiguidades, firmas constituídas e registadas em zonas offshore”.
A acusação do antigo secretário para os Transportes e Obras Públicas envolve um total de 76 crimes, cuja natureza não é simples, prevendo-se, assim, que se trate de um processo longo. Com cerca de 100 testemunhas e três sessões semanais, o processo de Ao Man Long vai arrastar-se por vários meses no Tribunal.
Com apenas três juízes na Última Instância e um dos seus membros impedido de participar no julgamento por ter participado no caso na fase de Instrução, o Tribunal de Última Instância terá de receber um juiz da Segunda Instância para completar o colectivo que julgará o ex-governante.
O ex-governante não poderá recorrer da sentença, apontam fontes do sector da Justiça, já que está a ser julgado no tribunal superior de Macau.
Além do julgamento que hoje tem início no TUI, outros dois processos relativos ao mesmo caso estão já no Tribunal Judicial de Base para serem julgados.
Num dos processos responderão pelas acusações a mulher, pai, irmão e cunhada de Ao Man Long, respectivamente Camila Chan Meng Ieng, Ao Veng Kong, Ao Man Fu e Ao Chan Wa Choi, que irão sentar-se no banco dos réus com a empresa Tong Lei.
Os familiares estão também acusados num terceiro processo, onde serão julgados juntamente com os responsáveis das empresas H. Nolasco, San Meng Fai e Chong Tit.

Isabel Castro com Agência Lusa


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