Uma mulher das Arábias
Hattar distingue-se dos restantes 44 chefes de missão por ser a única mulher com esta função no evento multidesportivo que hoje termina no território. “Entre os 45 países participantes, eu tenho a honra de ser a mulher que chefia a missão da Jordânia”, diz, em tom solene, com um brilho forte no olhar. A juntar ao facto de ser uma mulher num mundo predominantemente masculino (a proporção 44 para 1 não deixa margem para dúvidas), Nuha Hattar tem a peculiaridade de vir de um ponto do globo que se caracteriza por ter regras que deixam o sexo feminino fora de jogo. Vem do universo islâmico.
“Para as pessoas de fora do país, é interessante o facto de eu ser mulher e estar a chefiar a delegação de atletas”, confirma, a deixar entender que já está, em certa medida, habituada ao espanto que provoca. Não usa véu, tem os cabelos soltos e os olhos expressam mais do que as frases que articula a um ritmo rápido. “Sinceramente, a Jordânia é um país aberto. Temos diferentes pessoas a viver na Jordânia e existe uma excelente relação”, garante.
“Não há discriminação, nem pela religião nem pelo sexo. Sendo da Jordânia e sendo mulher, tenho muito orgulho no meu país”, vinca. “Olhe, há árabes islâmicos e árabes cristãos, que vivem juntos, têm as suas cerimónias, uns vão às mesquitas e outros às igrejas, mas não sentimos que sejam de dois contextos diferentes, porque a nossa cultura é a mesma e a língua também”.
É a cultura e a língua que fazem, explica a chefe de missão, com que aquela parte da Ásia, tão distante e diferente desta, esteja, em certa medida, unida, apesar de todos os conflitos que nascem no Médio Oriente. “Falamos a mesma língua, o sotaque é diferente, os hábitos também, mas acreditamos nas mesmas coisas. É a cultura árabe, a cultura islâmica”, sublinha, a não querer dizer que o país onde nasceu se encontra um patamar acima de outros à volta. “Acho que temos a mesma forma de olhar para o futuro”.
Já o presente, é vivido de um modo bem distinto. O Irão trouxe uma equipa de futsal mas as mulheres não entram na água de Macau, que os fatos de banho deixam a descoberto partes do corpo não permitidas pelos hábitos nacionais. No caso da Jordânia, a conversa é outra. Para os Jogos Asiáticos em Recinto Coberto, o Comité Olímpico do qual Nuha Hattar é membro escolheu atletas de seis modalidades. “Temos uma selecção mista, claro. Temos atletas do sexo feminino no xadrez e na natação em piscina curta”.
A responsável explica, depois, o que se passa com outros países. “Têm torneios especiais, organizados pela Federação Islâmica para o Desporto das Mulheres. Fazem competições internacionais, mas são fechadas às mulheres”. Isto nas modalidades em que é necessário um “equipamento especial”, como a natação. “Nas disciplinas como o taekwondo e escalada, por exemplo, em que não é preciso nenhum equipamento especial, há muitas mulheres a participar”, diz. “Mesmo noutros desportos em que é preciso uma roupa diferente, temos vindo a ter um número crescente de mulheres. Há muitos países árabes que já estão presentes com equipas femininas”, assegura.
Nuha Hattar não é um caso raro no seu país. “Há muitas federações desportivas na Jordânia que são lideradas por mulheres, e são muito activas. Aliás, acho que até são as mais bem-sucedidas”, lança, com um sorriso. No caso da chefe de missão, é secretária-geral da Federação Desportiva de Ginástica, há já 13 anos.
Praticante de bridge, foi membro da primeira equipa mista do seu país a participar numa competição internacional. “Em 2005, eu e uma outra mulher, competimos no Campeonato do Mundo de Bridge de 2005, no Estoril, em Portugal”, conta. “Estávamos entre 22 equipas de todo o mundo. Nós, os árabes, tínhamos duas senhoras, enquanto que outras equipas, como a dos Estados Unidos e de países da Europa, não tinham mulheres!”, exclama.
Ainda assim, Hattar acha que há uma tarefa enorme a levar a cabo, não só dentro da casa que é o Médio Oriente, como também fora de portas. “Temos que trabalhar com muita força, para se mudar a ideia que existe em torno do mundo árabe. É preciso que as mulheres estejam visíveis nestas ocasiões, promovendo o Desporto, promovendo os seus países”. A ideia deve ser posta em prática “nos mais diversos programas, não só através do Desporto mas noutras áreas também”.
A responsável pela delegação da Jordânia vem de um país num contexto especial que dedica, segundo explica, particular atenção ao Desporto. “Acho que estamos a fazer um bom trabalho, a perspectivar o futuro. As mulheres e os homens têm as mesmas hipóteses e o nosso Comité Olímpico é muito activo”. A aposta no desporto deve-se, contextualiza, à promoção activa do Rei Hussein ibn Talal, desaparecido em 1999. “Esteve na origem das iniciativas que deram origem à prática de muitos novos desportos na Jordânia”.
O filho, o príncipe Feisal Al Hussein, seguiu-lhe os passos, “é presidente do Comité Olímpico da Jordânia, muito activo na promoção do Desporto, é membro da Comissão das Mulheres do Comité Olímpico Internacional e presidente da Comissão da Paz e do Desporto no Conselho Olímpico da Ásia”. Nuha Hattar nunca deixa a sua condição feminina e diz que este príncipe “tem desempenhado um papel muito activo para que as mulheres participem mais no Desporto, para que tenham o mesmo papel que os homens”. O filho do Rei Hussein é também o responsável por um dos programas de solidariedade desportiva mais ambicioso do momento – o Peace Through Sports (ver texto nesta página).
Sobre Macau, e em jeito de despedida (a delegação da Jordânia parte amanhã), a chefe de missão diz ter ficado “realmente bem impressionada com as pessoas de Macau”. Hattar acha que é gente que tem orgulho em ser de cá, “pela forma como nos ajudam e receberam, desde a recepção à chegada no aeroporto aos que nos acompanham”.
Para casa, a delegação desportiva leva várias medalhas, 13 conquistadas no kickboxing, de vários metais, duas de bronze em muay thai. “As nossas meninas estiveram nas finais de natação, o xadrez está a correr muito bem. Para nós, a experiência é óptima porque temos dois juniores na equipa que estão a jogar contra grandes mestres”, diz a chefe de missão, que não esconde um ar maternal quando fala dos atletas. “Trouxemos muitos jovens, é muito bom que estejam presentes nestas ocasiões”.
E estas ocasiões são também de outros encontros – os de culturas, hábitos e línguas diferentes. “Estamos a lidar uns com os outros de uma forma muito bonita. Encorajamo-nos nos estádios, nos ginásios, experimentamos as comidas típicas uns dos outros, trocamos informações. Todos os dias, sento-me à mesa para jantar com pessoas diferentes. Ficamos a saber imenso uns dos outros, dos países de cada um”, diz. “Os eventos desportivos são uma grande ajuda para fazer com que as pessoas se tornem próximas nesta Ásia imensa”.
Jordânia lança programa de solidariedade olímpica
O Desporto é sinónimo de paz
“Fiquei muito feliz por ver aqui delegações do Iraque, da Palestina, do Líbano, enfim, de todos os países da Ásia que vivem situações de conflito. Um dos objectivos do Peace Through Sport é precisamente fazer com que seja mais fácil para todas estas pessoas conviverem, o Desporto permite isso”. Nuha Hattar diz não ser a pessoa mais indicada para falar sobre o programa inovador e ambicioso que nasceu este ano na Jordânia, mas é com uma visível emoção que fala da experiência que foi recentemente realizada no país.
As imagens promocionais resumem bem a ideia. Imagine um cenário de guerra e um jovem israelita nos escombros de uma cidade. De testemunho na mão, corre em direcção a um palestiniano, que começa também a correr. Não foge, correm lado a lado e o testemunho é passado. Este segundo jovem continua a correr e entra num bairro pobre judaico. Uma pedra cai ao chão, da mão de uma criança, que se vê livre do possível objecto de arremesso para pegar no testemunho e correr, sempre, para uma praia, de encontro a uma menina, cabelos encaracolados e pele escura. Ela continua pela areia, o filme acaba. Ficam apenas as palavras “Peace Through Sport” e a voz “continue a passar”, numa tradução livre da frase em inglês.
A mensagem que se pretende largar pelo mundo é a de que, através do Desporto, é possível fazer a paz ou, pelo menos, diminuir a guerra. “É uma nova iniciativa global que pretende utilizar o Desporto como forma de incentivar o diálogo e a tolerância, para chegar, um dia, à paz, desenvolvendo um trabalho com jovens de áreas que estão em conflito ou em situações hostis”, resume a dirigente desportiva.
O programa nasceu em 2007 e não se fica pelas boas intenções, palavras bonitas e pelas imagens promocionais bem conseguidas. Terminou há dias a primeira acção concreta da iniciativa do príncipe Feisal Al Hussein. A Jordânia organizou um campo desportivo destinado a jovens de países com contextos sociais complicados. A ideia é simples: consiste em juntar os líderes das comunidades juvenis e ajudá-los a usar o Desporto como uma ponte para ligar comunidades divididas pelas diferenças religiosas, sociais e políticas.
A primeira edição contou com a presença de 7 países. Além dos anfitriões, jovens do Líbano, Afeganistão, Palestina, Iraque, Sudão e Sri Lanka estiveram juntos ao longo de dez dias para participarem em actividades desportivas e culturais. Especialistas em situações de conflito acompanharam os 70 jovens, onde se contavam 25 raparigas.
Houve vários países interessados em participar mas, como se tratava do campo experimental, optou-se por um número menor. Para o ano, a iniciativa poderá sair da Jordânia, pois são quatro os países interessados neste programa de solidariedade olímpica desenhado pelo filho do Rei Hussein e que conta já com o apoio de outros comités olímpicos, como o Egipto e Marrocos.
“Esta primeira experiência vai permitir-nos planear as actividades de modo a podermos dar resposta para programas mais completos em 2008”, disse há dias o príncipe Feisal, presidente do Peace Through Sports. “Esperamos que, já no próximo ano, centenas de potenciais líderes de comunidades em conflito se juntem a nós”. E que através Desporto - o universo onde é obrigatório saber perder - se aprenda a viver em paz.
Empresários locais apostam em soluções criativas para o património
O canto da gastronomia e da arte
O canto da gastronomia e da arte
Desde a inclusão do Centro Histórico de Macau na lista de património mundial da UNESCO, a 15 de Julho de 2005, que os edifícios históricos da cidade têm sido alvo de uma atenção crescente e estão actualmente sob um maior grau de protecção, devido às políticas do Governo.
Mesmo vivendo um período em que a escassez de terra na RAEM se está a tornar uma questão séria, as autoridades não trocariam as jóias da urbe por qualquer preço. Ao longo dos últimos anos, a maioria dos edifícios históricos foram sendo gradualmente pintados e reconstruídos, sendo que alguns deles continuam a ser alvo de importantes trabalhos de restauro.
No entanto, enquanto o Governo está a fazer o melhor que pode para manter estes edifícios afastados da degradação causada pelo tempo, muitas pessoas questionam se valerá a pena a recuperação destes espaços. Enquanto comuns cidadãos, preferíamos que estes locais fossem funcionais e estivessem acessíveis ao público, em vez de estarem apenas renovados por fora e vazios por dentro.
A questão é delicada. O Governo não tem, na realidade, capacidade de decisão em relação à totalidade dos edifícios, uma vez que alguns são propriedade privada. São vários os intervenientes que têm que fazer esforços para que seja possível dar uma resposta satisfatória, em que se encontre um equilíbrio entre as potencialidades comerciais destes espaços e os valores culturais e arquitectónicos.
Como o Governo tem vindo a enfatizar o lado cultural da cidade, achámos que seria a altura ideal para criar algo. Sozinhos, os artistas talvez não o consigam fazer, mas combinando os talentos, podemos nós, empresários, gerir aspectos como o marketingDurante todo este processo, podem encontrar-se algumas soluções promissoras. Perto das Ruínas de São Paulo, na travessa com o mesmo nome, os edifícios que lá podem ser vistos estão classificados pelas autoridades como complexos arquitectónicos em recuperação. Aproveitando a localização estratégica, mesmo ao pé do ponto turístico mais visitado da cidade, um grupo de empresários decidiu levar a cabo um projecto que combina cultura e comércio.
O St. Paul’s Corner é um projecto ainda em construção que ocupa um edifício de quatro andares. O espaço inclui um restaurante, salas para seminários e conferências, estúdios para artistas, um café esplanada no terraço do edifício e uma galeria de arte.
Derek Lam, coordenador do projecto, explicou que a ideia é criar um espaço onde as pessoas que gostam de artes se possam juntar. Embora seja oriundo de um contexto de empresários, tem também uma grande paixão pela arte. “Relaciono-me há muito tempo com um grupo de pessoas que são artistas locais e pintores, então conheço as dificuldades de quem trabalha em arte. Como o Governo tem vindo a enfatizar o lado cultural da cidade, achámos que seria a altura ideal para criar algo. Sozinhos, os artistas talvez não o consigam fazer, mas combinando os talentos, podemos nós, empresários, gerir aspectos como o marketing”.
Na primeira fase do projecto, um restaurante abriu as portas em Maio deste ano. Instalado no rés-do-chão do edifício, “The Corner’s” é mais do que um restaurante convencional. Além de servir comida mediterrânica, vinho importado de todo o mundo e charutos das Honduras, o restaurante é também uma galeria onde podem ser adquiridos trabalhos de artistas locais.
Sam Tam, o gerente do restaurante, enfatiza que “existe uma cultura importante em torno da comida”. “O nosso espaço destaca a gastronomia tradicional, não seguimos, às cegas, o que está na moda”.
O conselheiro do restaurante, Thomas Lam, é um especialista em vinhos. Natural de Hong Kong, viveu na Europa por um longo período e adquiriu conhecimentos sobre diferentes práticas gastronómicas. Defende que cada receita e cada garrafa de vinho têm uma história para contar. “Seguindo os seus conselhos, dos ingredientes aos pratos, sabemos como escolher o melhor”, realça o gerente do restaurante.
A comida mediterrânica encaixa bem com o ambiente que existe em Macau. “A cidade é diferente de outras, como de Hong Kong, por exemplo, porque tem uma atmosfera muito mais relaxada. Olhando para as rápidas transformações, pensámos que seria uma boa ideia criar um local onde as pessoas pudessem efectivamente aproveitar o centro histórico multicultural da cidade enquanto saboreiam um peixe à Valenciana e um copo de vinho branco francês”.
E os preços, são tão apelativos quanto a oferta? “Não exageramos nos preços mas insistimos na necessidade de termos ingredientes de boa qualidade. A conta será a mesma de um restaurante japonês médio. Aqui existe a garantia de que a comida é fresca, importada da Europa. Acrescentando a tudo isto a dedicação do nosso chefe pelos pratos que confecciona, acreditamos que os nossos clientes não se vão arrepender”, sustentou o gerente.
Mesmo com esta confiança no projecto, o St. Paul’s Corner lida ainda com obstáculos para ultrapassar. Uma vez que a cultura geral de Macau não se encontra totalmente aberta a paladares diferentes, o gerente contou que já tiveram clientes que reclamam do “spaghetti” por não estar “bem cozinhado”, porque estão mais habituados às massas macias dos restaurantes de cozinha chinesa.
“O verdadeiro desafio não é só abrir um restaurante que vá ao encontro dos gostos da maioria, mas criar novos hábitos entre a cultura local, onde arte e comida, vinhos e telas possam estar lado a lado e permitir várias sensações em simultâneo”.
Nesta fase do desafio, o restaurante já está de portas abertas. Tendo em conta que as salas de conferências do segundo piso já estão prontas, vão começar a ser organizados cursos de arte para o público interessado. Quem quiser usufruir das instalações pode ainda inscrever-se no espaço e tornar-se sócio.
Numa fase posterior, serão convidados artistas para se instalarem nos estúdios que o edifício tem. A partir do momento em que forem produzidas obras no local, estarão em exposição na galeria, mesmo ao lado do restaurante. Tudo isto num só projecto, num espaço cultural, ao pé do mais significativo símbolo de Macau: as Ruínas de São Paulo.
* O St. Paul’s Corner está na Travessa de São Paulo, nºs 3 -7. Está aberto sete dias por semana, das 12 às 23 horas. Pode ser visto no site www.stpaulscorner.com
Alice Kok (artista visual)
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