domingo, 11 de novembro de 2007

A poesia por Yao, O bairro dentro do bairro

Poeta, tradutor e professor da Universidade de Macau

O mundo de Yao

Foi o espanhol que o levou à língua portuguesa. Quanto a Macau, a razão da viagem para Sul foi Portugal ou, se preferirmos, o português. Veio por dois anos, deixou-se estar. A história de Macau parece feita de quem vai ficando, acabando por se diluir entre a confusão da cidade. “O que é superficial é exagerado e esconde o essencial. Dentro deste mundo, existem mundos, muitos mundos”, diz. Incluindo o dele.
Há mais de uma década que, em Macau, ensina a língua que, além de ser de Camões, é de muitos outros poetas, como de Eugénio de Andrade, o melhor, o favorito. Yao Jinming também é poeta, escreve em chinês, e então passa a ser Yao Feng. É ainda um dos (poucos) responsáveis por se perceber o mundo da poesia portuguesa nessa terra sem fim chamada China.
“Aprendi português na Universidade de Línguas Estrangeiras de Pequim”, começa Yao. Voz pausada, um ligeiro sotaque do Norte (da China), as palavras escolhidas cuidadosamente, que é em torno delas que vive. “Antes de aprender português já tinha estudado espanhol, na escola secundária. Optei pela língua portuguesa quando entrei na Universidade”. As aparentes semelhanças foram a razão da escolha; já os motivos do encantamento que se seguiu foram outros. “Gostei imenso, principalmente quando entrei no seu mundo literário”, conta.
“Portugal é um país pequenino mas conseguiu criar um mundo literário muito vasto, muito rico, que não pára de nos dar surpresas e novidades”. No caso de Yao, é o mundo da poesia que mais o surpreende, porque lida essencialmente com poetas. “Na década de 80, recebi um livro enviado pela Fundação Calouste Gulbenkian, de Eugénio de Andrade. Fiquei surpreendido, era um tipo de poesia que não conhecia até então”, explica. “Daí o meu interesse em traduzi-lo, não só ele como também outros poetas portugueses, mas é ele que me encanta mais. Ao longo destes anos não parei de o ler e de o traduzir”.
Em 2004, Yao Jinming fez uma antologia de Eugénio de Andrade que foi editada na China e que “provocou um grande impacto entre os poetas chineses”. A razão do sucesso, justifica, é o facto de o poeta ser “invulgar”.
“Neste mundo em que vivemos, que está a mudar, cheio de viragens, um mundo em que o nosso prazer depende cada vez mais dos factores exteriores e objectivos, ele utiliza factores simples na sua poesia”, diz o tradutor. “É o sol, a água, o mar, o céu, os animais, os elementos básicos da natureza e do nosso mundo”. A partir da “simplicidade e transparência”, ensina Yao, “Eugénio de Andrade conseguiu criar um mundo em que se vai afastando do nosso”. “É um mundo simples, transparente, que é capaz de nos enriquecer”, defende.
A tradução da antologia de Eugénio de Andrade por Yao Jingming valeu, ao poeta português, uma distinção, concedida em 2004 através da revista Homem e Poesia, publicação do Círculo de Poetas de Cantão. Mas o tradutor do poeta que dizia que “passamos pelas coisas sem as ver, gastos, como animais envelhecidos”, deu a conhecer ao universo dos leitores de língua chinesa outros escritores portugueses. Num trabalho feito a quatro mãos, foi o responsável pela publicação de uma antologia de poesia moderna de Portugal. “Inclui Fernando Pessoa e depois poetas mais recentes, são cerca de uns trinta”.
Quanto à aceitação das letras portuguesas na China, conta Yao que “ainda não há muita coisa traduzida, mas o que há é bem aceite” no país. Eugénio de Andrade e Fernando Pessoa fazem parte das preferências nacionais. No caso do último, “não só a poesia, mas a prosa também”. “O Livro do Desassossego foi muito bem aceite no círculo intelectual chinês. Foi publicado em 1996, vai já na quarta edição”, sustenta o tradutor.
Sobre a tarefa de transformar para uma língua palavras escritas noutra, o professor da Universidade de Macau admite a dificuldade, mais a mais as diferenças estruturais entre os dois idiomas. “Não é fácil traduzir um poema português para chinês, e vice-versa. Traduzir poesia é difícil.” Não falta quem faça reflexões sobre o assunto, como “o poeta que dizia que a poesia é aquilo que se perde na tradução”. “Talvez seja um pouco exagerado, mas mostra que a tradução é uma tarefa muito difícil”, vinca.
Yao Jinming transforma-se agora em Yao Feng, o nome com que assina os versos da sua autoria, escritos na língua materna. “Escrevo poesia, considero-me poeta.” Sobre o Círculo de Poesia de Cantão, ao qual está muito ligado, diz que a proximidade da capital de Guangdong com Macau faz com que seja mais fácil conviver com os seus pares. “A maioria destes poetas não é de Cantão, mas é lá que vive e trabalha. Também convivo com outros poetas, mas com estes mais.”
Yao garante que “há uma poesia bastante forte na China”. Sempre houve, mas agora é mais visível. São as novas tecnologias ao serviço da cultura. “Com o aparecimento da Internet, os poetas têm mais facilidade em darem a conhecer as suas obras. Antes, não era assim. Só havia as revistas, pertencentes ao Estado, quando se queria publicar alguma coisa tinha que se passar por uma filtragem. Agora há mais espaço, mais possibilidades, mais liberdade”.
E em Macau, também há poesia? “Há pessoas que escrevem poesia, a quem chamamos poetas. Há outras que não escrevem, mas que vivem também como poetas”, responde de um só fôlego. “Existem dois tipos: os que concretizam no papel e os outros, que se sentem e vivem como poetas, e a quem só falta o último passo, a concretização,” desdobra.
Em Macau desde 1993, Yao recorda o tempo em que havia mais portugueses a escrever poesia. Como “Alberto Estima de Oliveira, grande amigo da cultura chinesa”. Quanto à comunidade local dos dias que correm, o estado da poesia é bastante melhor do que uma análise superficial leva a crer. “A cidade é pequena. Se olharmos para as estatísticas e dividirmos os poetas por metro quadrado, se calhar Macau está no topo”, sorri.
Entre os poetas de Macau há bastantes jovens, “a poesia não pára de crescer”. “É uma das maneiras de viver, de dialogar, de lidar com o que se sente, de lidar com o mundo exterior”, explica. “Eu não saio muito, prefiro ficar em casa, mas tal não significa que não lide com o mundo. Acompanho o que acontece. Tenho escrito muito sobre a realidade chinesa, nasci em Pequim, vivi muito tempo lá. Conheço bem o meu país, estou muito atento.” Quanto a Macau, diz que “tem escrito pouco”. “Às tantas ainda não vivo Macau muito por dentro”, conclui Yao Feng.
Nascido e criado na capital, com um doutoramento feito na maior cidade chinesa, em Xangai, Macau surgiu no mapa do poeta quase por acaso mas acabou por “mudar o destino”. “Não fazia a mínima ideia de como era”, lembra. Tinha colegas que já tinham passado por cá e tinham gostado. A terra de pequenas dimensões apresentava então a vantagem da língua portuguesa. Apareceu a Yao uma ocasião para vir trabalhar, no sector privado, onde ficou três anos, antes de começar a leccionar na Universidade de Macau.
“Tinha vivido muito tempo numa cidade muito grande, quis variar um bocadinho, mudar a minha vida”, confidencia. É neste ponto da história que entra Portugal. “Antes de vir cá, trabalhei quase 3 anos em Lisboa, na Embaixada da China. Foi uma excelente experiência, aprendi muita coisa, mas o mais importante foi abrir a minha visão para o mundo.” Até partir para Lisboa, o poeta e tradutor tinha vivido sempre na China. “Conhecia o mundo exterior através da leitura, mas viver lá permitiu-me aprender muito. Se calhar, se não fosse Portugal, não viria para cá. Depois desta experiência, queria mudar a minha vida, não queria voltar para a minha cidade e ficar lá até morrer.”
A vida em Macau flui e agrada a Yao, que se recusa a olhar para a cidade da forma mais fácil, a das aparências. “A cultura chinesa de Macau pertence à grande matriz cultural chinesa, que varia muito de região para região. Macau apresenta as características da cultura do Sul da China. A cultura é um conceito muito vasto, não é só a literatura, é a forma de estar, de ser, os hábitos.” Vindo do Norte, nota as diferenças entre os dois extremos do país. “Sou chinês, falo um pouco de cantonês, mas acabo por conviver mais com os meus amigos do Continente do que com os locais.”
No mundo de Yao, Macau é muito mais do que “uma cidade de Jogo, de vida nocturna, que só oferece prazer fáceis”. “Isto é exagerado, não é bem assim. Estamos numa cidade multifacetada. Mesmo que os hábitos locais se prendam com aspirar a uma vida confortável, há artistas e poetas.”
E por falar em poesia, Yao Feng conta que é coisa que não pára de fazer. O mesmo se aplica à prosa, destinada à coluna semanal do jornal Ou Mun e uma outra, de frequência mensal, de análise à poesia. Quanto a Yao Jinming, vai agora abraçar um novo projecto, a nível académico, com uma colega da Universidade: a elaboração de um manual de tradução. “Há cursos de tradução mas ainda não formámos tradutores de grande qualidade. Queria contribuir um pouco com a minha experiência”, conta o docente, doutorado em Literatura Comparada.
O resto do mundo de Yao fica para o currículo oficial, aquele que não desfia durante a conversa. Com cinco obras de poesia publicadas - Nas Asas do Vento Cego (1990), Confluência (1997), Viagem Momentânea (1999), A Noite Deita-se Comigo (2001) e Canção para Longe (2006) –, o poeta recebeu vários prémios de poesia e esteve presente em festivais realizados na China, Brasil, Portugal, México, Taiwan e Hong Kong. Coordena ainda a revista em chinês Poesia Sino-Ocidental. Em 2006, recebeu a medalha da Ordem Militar de Santiago de Espada, atribuída pelo Estado português.
Isabel Castro
Fotografia: António Falcão/ bloomland.cn

Passos em volta

Esta cidade é como as pessoas: quando se olha para o mapa, não se encontram duas ruas iguais. Cada bairro tem as suas histórias, vontades, artes, desejos, esperanças e desesperos. Os seus segredos sussurrados. São passos em volta à redescoberta da urbe.

Da Rua do Brandão à Rua da Vitória

O bairro dentro do bairro

Há espaços em Macau que parecem resistir, serenamente, à constante metamorfose urbana que, por aqui, adquire ritmos pouco vulgares, de tão rápidos que são. A zona do Mercado Municipal de Horta e Mitra é um deles, único pela forma e pela vida que continua a ter. “É um bairro dentro de um bairro, completamente auto-suficiente, com hábitos e formas de vida muito próprios”, lança Manuel Correia da Silva, designer e anfitrião destes olhares atentos pelas ruas da cidade.
Estes passos começam na Rua do Brandão, paralela à Rua do Campo. Há coisa de dois séculos, era das áreas mais sujas da cidade, não chegando a integrar o núcleo da urbe, pois ficava ainda nos arredores. A cidade cresceu, tanto a Rua do Campo como o Tap Seac mereceram a atenção das autoridades, a vegetação foi desaparecendo e dando lugar a edifícios que quase tocam o céu.
Nas traseiras da Rua do Campo, porventura a artéria mais poluída e ruidosa de Macau, esconde-se uma ilha em torno de um mercado. Um bom ponto de partida é o edifício Tai Peng e as escadas de acesso à passagem superior, que se atravessa para chegar ao outro lado, à zona da Mitra. Levantando o olhar, há pormenores “como as antigas publicidades que se pintavam directamente nas paredes dos edifícios” (1 – 5915), aponta Manuel Correia da Silva.
Olhando para trás, fica a chamada rua dos tailandeses, com os seus restaurantes e supermercados. Em frente, a Rua Henrique de Macedo, onde se ergue, indiferente e resistente ao tempo, o Mercado Municipal de Horta e Mitra (2 – 5922). “É este mercado que faz com que o bairro seja auto-suficiente”, explica o designer. “Em torno dele sobrevive uma zona de comércio tradicional (3- 5914) que se mantém e parece não correr o risco de desaparecer, porque já tudo nasceu e cresceu aqui, não há uma Ponte 16 em vias de ser construída e que possa alterar o que isto é”, nota.
Os passos são agora em volta do mercado, pelas ruas que lhe servem de moldura. “Vemos um templo pequeno muito bem conservado (4 – 5953). É interessante porque ali está a erguer-se o novo Lisboa, que se vê deste ponto, mas que não interfere na lógica do bairro, que parece assistir serenamente ao que vai acontecendo fora dele”.
Este bairro, “que é quase intocável”, estica-se pela Rua da Mitra e pela Rua da Cal, onde se encontra esta casa, mistura de diferentes estilos, que de imitar quase tudo (5- 5949) não se parece com mais nada. Quase a terminar este passeio, que se aconselha em passos calmos, um edifício imponente (6 – 5964) “a fazer lembrar o Mercado Vermelho, pelo estilo e pelo material, encaixado no meio de tudo isto”. Estamos na Rua da Vitória.
“É um bairro escondido, que facilmente passa despercebido a quem não vive cá”, sublinha Manuel Correia da Silva. “Existe aqui uma micro comunidade, um ambiente de bairro, de vizinhança. É uma zona onde habitam também muitas pessoas da comunidade tailandesa, que se prolonga da outra rua até aqui”.
São as pequenas ilhas da cidade agitada, os bairros dentro deste enorme a que se deu o nome de Macau. “Ao contrário de outros, como o Porto Interior, este aparenta não correr riscos”, frisa. “É tudo pacífico, está tudo como sempre”. É um refúgio para esquecer o burburinho excessivo do que o rodeia.

Manuel Correia da Silva*, percursos e imagens
Isabel Castro, texto
* É designer em Macau. Em 2004, foi o vencedor de um concurso do Instituto Cultural sobre os percursos históricos da cidade, no âmbito da conservação do património de Macau.

Sem comentários: