quinta-feira, 1 de novembro de 2007

Esse mundo chamado Ásia, Uma tuna portuguesa nas ruas de Macau

Desporto traz a Macau atletas dos mais diversos contextos

Esse mundo chamado Ásia

Uns têm os olhos em bico, outros a pele queimada pelo sol dos desertos e há mesmo os loiros altos com os olhos azuis. Falam línguas tão diferentes quanto o árabe e o russo, já para não falar do mandarim, do japonês e do coreano. A Ásia é assim, tão diversa quanto extensa. São todos atletas e estão em Macau.
Em Dezembro do ano passado, os 45 países e territórios da Ásia juntaram-se pela primeira vez nos Jogos Asiáticos de Doha. O Qatar foi o palco de um encontro que ficou para a história, não só desportiva mas política e social. O Iraque, que tinha sido afastado dos encontros continentais na sequência da invasão do Kuwait, juntou-se ao maior evento desportivo da Ásia, mesmo com baixas entre atletas e membros do Comité Olímpico. O Líbano, então debaixo de fogo, também não faltou à chamada. A Ásia é assim, tão instável quanto extensa.
Menos de um ano depois, para os Asiáticos em Recinto Coberto, voltam a reunir-se em Macau atletas de todos os pontos do continente, para um quase milagre que só o Desporto parece ser capaz de fazer. Raras são as oportunidades em que as janelas da Ásia se abrem escancaradas como está a acontecer nesta última semana, aqui à volta de nós.
Não são só as etnias que distinguem os atletas asiáticos entre si. As religiões, os costumes, os hábitos e até a tradição das práticas desportivas divergem. A pensar nisso, o comité organizador providenciou comida halal, a gastronomia típica das zonas islamo-árabes. A ideia é fazer com que todos se sintam em casa, não estando.
A diversidade que se processa ao nível cultural verifica-se também nos sistemas e organização políticos, sociais e económicos. Muitos povos deste canto do mundo convivem diariamente com situações de conflito, nas relações externas e internas. Timor, Palestina, Myanmar e Iraque são alguns exemplos de nações assoladas por convulsões sócio-políticas domésticas.
No campo do Desporto, contudo, as batalhas limitam-se aos três lugares do pódio e às medalhas. Dentro dos recintos, não há inimigos, mas sim adversários. Equipas rivais sentam-se lado a lado nas bancadas e aplaudem uma boa jogada. No fim da competição, vencedores e vencidos apertam as mãos, congratulam-se e trocam de camisolas.
Um olhar atento detecta o espírito do Olimpismo em cada esquina das instalações desportivas. “O Desporto cria um sentimento de união. Todos os países estão reunidos em torno da amizade e da paz. As questões políticas ficam à porta dos pavilhões”, atesta Chitra Magimairajan, jogadora da equipa de bilhar da selecção da Índia.
“Nos eventos desportivos não há inimigos, nem guerras. Temos aqui países marcados no contexto internacional por conflitos, como o Irão ou o Iraque, mas somos todos amigos. Não sentimos o peso de problemas desse género”, notou.
O seleccionador do Myanmar assevera que “é proibido discutir política no seio da equipa”. As manifestações dos monges do país do Sul da Ásia têm estado presentes nos jornais. A economia e as condições de vida degradam-se de dia para dia. O regime político é um dos mais repressivos dos últimos anos. Como conseguem os atletas de profissão de países com estes contornos encontrar a concentração que a competição desportiva exige?
“Fomos treinados para aguentar qualquer tipo de pressão”, conta Omar Alajlani, membro da selecção da Arábia Saudita. O jogador de bilhar reforça a ideia da inexistência de uma ligação entre assuntos políticos e Desporto. Amizade e confraternização são as palavras escolhidas para descrever as relações com os elementos das equipas oponentes.
Do lado de fora do espaço da competição, o sentimento olímpico contagia os profissionais que acompanham as comitivas. Bernard Perera é um dos jornalistas que forma a equipa de imprensa trazida pelo Sri Lanka. Quando fala da sua terra natal, o semblante carrega-se ao pronunciar o termo terrorismo. Após um hiato de cinco anos, os rebeldes voltaram à acção. Ataques aéreos, combates de artilharia e de infantaria entre o exército do Governo e a guerrilha tâmil fustigam o país desde o ano passado.
Os atletas cingaleses estão, no entanto, afastados do cenário de guerra do país que integra a família desportiva lusófona. “Eles não contactam com estes problemas. São colocados numa zona isolada e só se juntam à comunidade nas datas que correspondem a festividades”, vincou.
Os problemas nacionais também não afectam directamente a equipa de natação mais jovem dos JARC. O entusiasmo por competir pela primeira vez em terreno internacional e, especialmente, na China, faz esquecer os momentos difíceis que passam no Líbano. Se existe alguma preocupação, prende-se apenas com a responsabilidade de nadar ao lado de adversários mais velhos e experientes. “A nossa média de idades é de 15 anos e estamos a competir com atletas com 23 ou até 25”, explicou Mirella Alam.
Ao contrário da selecção libanesa, o Irão não tem uma equipa feminina na modalidade de natação em piscina curta. “É o Islão”, esclareceu Mohammad Alirezaei. Dentro da piscina, as iranianas só podem competir em território nacional. “É normal organizar-se torneios, mas só a nível interno, convidando outros países. A nível internacional já não é fácil as equipas femininas participarem”, completou o nadador.
Embora seja uma nação tradicionalmente islâmica, com regras impostas às mulheres que lhes limitam quase todos os passos, o Irão foi um dos poucos países do Médio Oriente que trouxe atletas femininas. No futsal ou no atletismo, as praticantes continuam a usar o lenço a tapar os cabelos, o equipamento é largo e não há pele à vista.
A iniciativa já deu frutos. Uma xadrezista arrecadou uma medalha de prata na categoria de individuais rápidos, na variante clássica. Uma medalha que não é só dela, mas de todas as desportistas que ficaram em casa. É um quase milagre que só o Desporto parece ser capaz de fazer.
Alexandra Lages e Isabel Castro

Tuna da Universidade Católica Portuguesa do Porto em Macau

Entre serenatas e pandeiretas

É um regresso desejado, um ano depois da estreia em Macau. A Tuna da Universidade Católica Portuguesa do Porto anda por aí. De trajes e capas negras, são mais de duas dezenas os músicos que têm animado os finais de tarde de início de Outono na Doca dos Pescadores.
O convite partiu da Comissão Organizadora dos 2.os Jogos Asiáticos em Recinto Coberto e foi imediatamente aceite. Vão fazer a festa na Cerimónia de Encerramento do evento, para atletas de toda a Ásia. “Foi com muito orgulho que regressamos, é uma viagem que gostamos muito de fazer”, diz Frederico Magina, o magister da Tuna. “Levámos tantas histórias boas para contar no ano passado que agora veio muita gente nova”, sorri, entre meia dúzia de acordes de um cavaquinho e um sonoro acordeão, salpicado por uma pandeireta.


Fundada em 1990, a Tuna da Universidade Católica do Porto conta com mais de uma centena de elementos, uns no activo, outros que já não vão aos ensaios nem aos espectáculos mas que não deixam de integrar o conjunto. A Macau vieram 23 tunos, com as malas cheias de pandeiretas e instrumentos de cordas. As vozes masculinas, fortes e afinadas, tanto entoam temas alegres e populares como dão corpo às mais sentidas serenatas. Tudo depende da ocasião.
Frederico Magina, o homem que tem a tarefa de coordenar os passos dos tunos nas digressões que vão fazendo em Portugal e fora do país, destaca o papel único que os agrupamentos académicos deste género desempenham na preservação da música tradicional portuguesa, não obstante o facto de muitas vezes as tunas serem associadas a um trabalho pouco sério.
“Tem-se assistido a um aumento do número de tunas, o que é bom, mas nem todas elas têm a mesma postura”, diz. As que “à qualidade da música” juntam “a forma de estar mais correcta” são responsáveis por manter, entre a faixa etária jovem, o gosto pela música de inspiração tradicional portuguesa. A postura da Tuna da Universidade Católica do Porto assenta “na conjugação do rigor e seriedade do traje académico, o respeito pela tradição, a alegria da juventude e a boémia dos estudantes”.
Quanto ao trabalho que este tipo de formação faz para que as sonoridades portuguesas não caiam no esquecimento, Magina realça que “as próprias tunas organizam festivais, nos coliseus e em outras grandes salas de espectáculos”. “É uma forma de mantermos a nossa música, a música tradicional portuguesa”, sublinha. E de a darem a conhecer. A Tuna participa com regularidade em festivais e espectáculos fora do país. Das viagens dos últimos anos, destaque para o Canadá, além de Macau, bem como diversos países da Europa.
O repertório, que vai da “canção brejeira e alegre à serenata romântica e apaixonada”, inclui ainda temas populares espanhóis, “porque é de lá que vem a tradição, mas a música portuguesa prevalece e é desta forma que difundimos a nossa cultura”. Quem já ouviu os tunos da Católica do Porto no ano passado, aquando dos Jogos e da Festa da Lusofonia, não pense que vai assistir ao mesmo concerto.
Ao contrário do que é normal na maioria das tunas, que mantém o repertório ao longo de dois ou três anos, o grupo de vozes masculinas da Universidade Católica do Porto entende que na inovação é que está o ganho. “Este ano vamos já para a segunda alteração de repertório”, conta o magister. “É pelo facto de introduzirmos novidades que as pessoas nos querem ver”, acrescenta. Os espectáculos concebidos em torno de determinado tema, juntamente com a qualidade musical, fazem com que a Tuna seja considerada uma das melhores do país.
Este ano, em Macau, além dos temas tradicionais, podem ser ouvidas músicas como a “Oração” e a “Desfolhada”. “Quisemos fazer uma ‘brincadeira’ com o Festival da Canção”, diz Frederico Magina. Como a “brincadeira” correu bem, estes dois temas vão passar para o novo repertório que está já a ser preparado e que incluirá, “pela primeira vez em tuna”, uma música brasileira. São estas pequenas diferenças que permitem ir conquistando novos públicos, até mesmo aqueles que, à partida, estão ligeiramente de pé atrás em relação ao género.
O facto de a Tuna ser, na essência, formada por um grupo de estudantes universitários que se juntam para passar bons momentos não significa que não haja regras para cumprir. O esquema de trabalho obedece a critérios rigorosos, que as vozes têm que ser afinadas e os instrumentos tocados com perfeição, além das coreografias em sintonia.
Nos requisitos de admissão, a qualidade musical do candidato conta, mas por si só não chega. “Já recusámos a entrada a uma pessoa que tinha o Conservatório, oito anos de estudo de música, porque não cumpria os critérios necessários”, conta Frederico Magina. “Vamos aceitando aqueles que musicalmente são muito bons mas que sabemos que nos vão representar igualmente bem a outros níveis que não a música”.
A partir do momento em que se entra na Tuna, jamais se sai dela. É um pacto musical, uma forma de estar. “Uma vez tuno, tuno para sempre”, confirma José Oliveira, membro da formação do Porto que, por estar a viver em Macau, tem agora menos oportunidades de subir ao palco de traje e capa negra.
“Embora a Tuna corresponda a uma fase de vida que é a académica e estudantil, é um grupo de amigos que fica para sempre pelos momentos musicais vividos, que se vão recuperando ao longo da vida. Neste momento, com a vinda a Macau, é mais uma dessas possibilidades de reviver esse passado em comum”, explica. Além de José Oliveira, são mais dois os tunos da Universidade Católica do Porto que estão a viver na RAEM. Assim, os 23 que vieram de Portugal passaram a ser 26.
“Temos tunos que têm 30 anos, que já se formaram há mais de seis anos, e que continuam a ser parte do grupo”, reforça o magister. “Não há uma distinção na nossa Tuna entre os mais velhos e os mais novos, entre os que têm vinte anos e que já fizeram trinta”, continua Frederico Magina. “Somos todos iguais, partilhamos as mesmas histórias, temos vivências em comum, vamos aprendendo uns com os outros”.
Porque os alunos da Católica do Porto se foram espalhando um pouco por toda a parte, a Tuna criou um sistema de comunicação para manter os elementos a par do que se vai passando. “Para aqueles que estão longe, que não têm hipótese de aparecerem nos nossos ensaios e de irem à sala da Tuna, temos uma mailing list em que vamos dando todas as informações e abordando questões que são importantes, o que havemos de fazer numa situação de aperto. Eles vão ajudando e, apesar de ausentes e dos quilómetros de distância, nunca deixam de estar connosco”.
A Tuna da Universidade Católica do Porto tem alunos e licenciados nos mais diversos cursos, como Som e Imagem, Direito, Economia, Gestão, Biotecnologia e “até já tivemos de Teologia”. “Somos um grupo de diversas áreas de conhecimento, o que só é bom”, diz Magina.
Quase a completar a maioridade, a Tuna mantém-se com o mesmo espírito que presidiu a sua fundação. Ao longo dos anos de vida, foram apadrinhando outras formações universitárias, incluindo tunas femininas que, entretanto, começaram a surgir. Na história do grupo de estudantes, além das viagens e concertos, inscrevem-se “o companheirismo e amizade entre todos os que por ela passaram, as discussões esotéricas e intermináveis, as músicas que cantamos e tocamos, as serenatas, os amares, os galanteios, os beijos, os jantares (os bons e os maus), os vinhos, os brindes, os palcos pisados e os bastidores dos artistas”.
A origem das palavras “tuna” e “tunos” é matéria que continua a ser alvo de discussões, não havendo um consenso em torno do significado. Existe a certeza, contudo, de que o local de nascimento destes agrupamentos musicais foi Espanha, tendo depois havido uma expansão para a América Latina. Aquando do aparecimento, as tunas tinham um carácter sazonal, resultado espontâneo de momentos festivos, e separavam-se após concluído o concerto.
Quanto às tunas nas universidades, sabe-se que, ainda antes de terem aparecido formações em Portugal, foram tunos alguns portugueses que estudavam nas universidades espanholas, nomeadamente em Salamanca e Santiago de Compostela.
As tunas nasceram em Portugal no final do séc. XIX, com a Tuna Académica de Coimbra, em 1888. O género conquistou fãs rapidamente e começaram a surgir tunas compostas por alunos também dos liceus, especialmente os que frequentavam instituições que tinham obtido autorização para usar capa e batina, mas acabaram por desaparecer.
Após um interregno, ressurgiram com força, no meio universitário, em finais da década de 1980, com semelhanças às de Espanha. As tunas de cariz estudantil, servem-se, essencialmente, de cordofones da tradição popular e percussão ligeira (como a pandeireta e o bombo), acordeão, violino, flautas e contrabaixo, uma introdução mais recente.
Isabel Castro
Foto: António Falcão/ bloomland.cn

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