Que horas são?
São oito e meia da noite, sem tirar nem pôr. Jorge Silva entra quase todos os dias em casa de muita gente, desconhece-se quanta ao certo. A comunidade de língua portuguesa é o público alvo, mas o apresentador da Teledifusão de Macau (TDM) não passa despercebido entre outras comunidades. Alguns espectadores têm o hábito de ver o telejornal religiosamente, sofá em frente à televisão, outros vão ouvindo o que se passa no meio das tarefas que o fim do dia traz. “As pessoas podem estar pontualmente distraídas, mas se cometemos um erro toda a gente nota”, diz Jorge Silva a sorrir.
Os “erros” fazem parte da dinâmica do meio, pode ser um “erro de linguagem, um lapso”, e isto “porque nos enganamos a ler as notícias, ou lemos muito depressa, estamos nervosos ou saltou uma palavra”. Também conta o aspecto, os espectadores são atentos à estética da questão. “Se a gravata ou o casaco estiverem tortos, as pessoas notam e comentam”, constata. “Já aconteceu amigos meus ou pessoas que encontro na rua dizerem-me ‘olha, ontem gostei disto e não gostei daquilo’”.
Jornalista, editor e apresentador, Jorge Silva trabalha na Teledifusão de Macau desde 1985, dois anos menos do que o tempo que conta de vida passada no território. Já teve oportunidade de voltar para Portugal, país que é seu mas de passagem, “o convite era excelente”, para voltar para a RTP, onde começou o seu percurso profissional. “Por várias razões acabei por optar por ficar em Macau e não estou nada arrependido”, afirma. “Depois destes anos todos, não me sinto nada cansado, gosto do que faço, gosto de apresentar, gosto de televisão”. É a adrenalina.
A TDM é à dimensão de Macau, não se pode comparar com as grandes estações internacionais, mas nem por isso o ambiente de trabalho e a forma como os segundos se atropelam, uns a correr atrás dos outros, são diferentes dos bastidores das televisões que vemos nos filmes. À medida que a hora do noticiário se aproxima, aumenta o vai e vem de gente a contar o tempo ao minuto. A adrenalina não desaparece nem depois de duas décadas de treino. O facto de o auditório não ser da dimensão de um país não alivia a carga emocional que a tarefa implica: é a velha máxima de valorização dos telespectadores, por poucos que possam ser.
“A responsabilidade é, de facto, grande, porque é em directo, sem rede, não podemos cometer erros”, sublinha o apresentador da TDM. Antes de entrar em estúdio, com o ar calmo e a voz pausada, os nervos batem à porta. “Sinto sempre a mesma emoção e o mesmo empenho”. Os hábitos vão-se repetindo ao longo dos anos e passam a ser marcas pessoais. No meio de um quotidiano que, ainda assim, consegue ser sempre diferente, não obstante a hora certa, criam-se também cumplicidades entre quem, todos os dias, tem por tarefa informar comunidades das várias línguas.
“Tenho o hábito de, quando vou para a caracterização, geralmente uns minutos antes das 8h30, fazer sempre a mesma pergunta: que horas são?”, conta Jorge Silva. “Eu tenho as minhas horas no relógio mas, como é no corredor a caminho da régie, quero que me digam pelo relógio que nos orienta. Estou a entrar na caracterização e eles estão a responder-me que faltam 4, 6, 7 minutos, por aí fora”. A pergunta do jornalista português deu origem a uma brincadeira de corredores. “Alguns câmaras que nós temos, que são chineses, como já estão habituados a isto, quando entram no corredor já são eles que me perguntam, em português, que horas são”, diz com um sorriso.
Se há momentos de descontracção nos momentos que antecedem o sinal horário e a entrada no ar, agitação também não falta, dependendo dos dias. “Há peças que ainda não estão prontas, sobretudo de actualidade local, que ficam concluídas sempre em cima da hora. Os jornalistas estão a ultimar as peças e eu, antes de ir para o tal corredor da régie, pergunto sempre nas cabines o que é que falta”, pormenoriza Jorge Silva. “Isso causa alguma agitação.”
O que o espectador vê em casa nem sempre corresponde à planificação feita ao longo do dia, o “alinhamento” que o apresentador leva com ele para o estúdio. É fruto também do improviso, da força das circunstâncias. “Às vezes a primeira peça não está pronta, ou a segunda ou a terceira, temos que saltar trabalhos e é preciso controlar tudo”. Quando Jorge Silva desaparece do ecrã para dar lugar a uma reportagem, ainda não tem a certeza, algumas vezes, de qual é a peça que se segue.
“Às vezes faltam 20 segundos e o realizador diz-me que está quase a chegar, mas ainda não está lá. E chega mesmo na hora, sou avisado que já chegou e então leio o ‘pivot’ que já estava alinhado. Se não chegar, então salto para outra peça”, descreve. É esta também a magia do meio, “é um exemplo da tal televisão em directo, com um noticiário com as dimensões que o nosso tem”. “Não é com ligações internacionais ou via satélite como em televisões com outras responsabilidades”, refere, salientando, no entanto, que há dias em que o telejornal acaba e “parece que estivemos todos sob uma grande pressão”. A “tarimba” faz com que se consigam superar esses momentos.
Jorge Silva é uma espécie de exemplo vivo da Lusofonia. Nasceu em Cabo Verde mas, ainda em criança, foi para Portugal viver. Não ficou por lá muitos anos: com a família voltou para África, desta feita para Angola, para o sul do país, uma cidade que na altura se chamava Moçâmedes mas que agora dá pelo nome de Namibe. Seguiu-se Luanda. O 25 de Abril de 1974 chegou e, “tal como muitos outros milhares de portugueses que lá estavam”, o regresso a Portugal, ao norte do país. A entrada para a faculdade significou a mudança para Lisboa, para a Universidade Nova, para estudar Comunicação Social, curso que, na altura, era novidade no país.
Na realidade, o homem que nos entra todos os dias em casa através de uma ecrã queria ser diplomata. Não que o “bichinho” da comunicação social não estivesse lá. “O meu pai sempre esteve ligado à rádio, chegou a ser presidente do Rádio Clube em Angola, em Moçâmedes”, recorda. Por várias razões, incluindo logísticas, Jorge Silva acabou por não frequentar o curso de Relações Internacionais, que na altura também era novidade e, para o bem das fãs de Macau que lhe enviam presentes, lá foi para jornalismo.
Licenciatura concluída, apareceu um estágio curricular de meio ano na RTP, uma experiência de que gostou muito e que lhe aumentou o fascínio pela televisão, que já tinha na condição de espectador. “Gosto de ver televisão, seja o for que estiver no ar...”, deixa cair.
Em 1983 houve uma hipótese de vir para Macau, para um estágio profissional, com mais três colegas. “Vim para o Gabinete de Comunicação Social, depois para um jornal diário, que era o Correio de Macau, seguiu-se o semanário Oriente, e depois fui convidado para a Rádio Macau, onde estive apenas uns meses”, resume o jornalista. Já na esfera da Teledifusão de Macau, saiu da Rádio para a televisão, onde entrou, pouco tempo depois desta ter sido criada.
“A televisão já tinha arrancado, eu tinha a experiência de apenas um estágio”, diz. “A experiência foi desde logo gratificante porque era uma televisão pequena, que estava a nascer num sítio pequeno como Macau, mas onde os desafios que se colocavam – e ainda colocam – eram, de facto, enormes”. O trabalho na TDM é diferente a vários níveis, incluindo pormenores técnicos.
“Nós aqui estávamos ‘adiantados’ em relação a Portugal porque tínhamos que montar as nossas peças, coisa que em Portugal não acontecia nem acontece, à excepção da SIC Notícias e, nas outras televisões, em casos pontuais”. O jornalista tem, por norma, um editor de imagens. “No nosso caso, aprendemos a fazer isso e outras coisas que em Portugal não se aprendiam, o que deu a todos uma grande experiência e o controlo total do nosso próprio produto. Acho que isso é muito bom para a nossa formação enquanto jornalistas televisivos e foi muito bom para mim, claro”.
Num balanço de mais de vinte anos, que “passaram a voar”, Jorge Silva diz não estar nada arrependido de ter vindo para Macau, por todas as oportunidades que a cidade lhe proporcionou. “Ainda muito jovens, passámos a editar e a coordenar redacções, mais cedo do que noutras televisões. Tudo isso, além das viagens em serviço, a vários continentes, tem sido uma experiência muito boa”, vinca.
E na rua, é reconhecido? Mais do que se está à espera, como sempre. Nos supermercados há quem acene com a cabeça, depois de olharem para ele e hesitarem no cumprimento, por não o conhecerem pessoalmente. Existem também episódios surpreendentes, como aquele em que estava em casa, dia de folga no trabalho, e a campainha tocou. “Eu, sem óculos, fui abrir a porta. Era um jovem dos Correios que me disse, meio em português meio em inglês, que tinha uma encomenda e devia assinar o talão”, conta Jorge Silva, de forma pausada. “Eu assinei, ele olha para mim e diz, em português: ‘Então, hoje estamos de folga?’”. Resposta? “Lá lhe disse que sim”, ri.
Nas Ruínas de São Paulo, foi interpelado por uma empregada de uma loja, de nacionalidade filipina, que tentou tirar uma fotografia com o apresentador, “porque costumava ver-me todos os dias na televisão e seria uma honra”. Jorge Silva respondeu-lhe que, para ele, “também seria uma honra, mas acabou por não se tirar a fotografia, porque a prima dela tinha saído uns minutos antes e tinha levado a máquina”. “Ficou aborrecida”, lamenta.
Mais recentemente, em Abril deste ano, um gesto de um grupo de telespectadoras alterou-lhe a estética da apresentação. “Recebi um telefonema de uma amiga que me disse ‘olha, achamos que estás muito bem na televisão mas nós temos uma coisa para te dizer”, narra. O jornalista quis saber, para começar, quem eram o “nós”. Do outro lado da linha, a resposta não foi muito elucidativa, apenas um “eu e as minhas amigas”. A interlocutora confessou-lhe que (elas) gostariam que usasse um lenço da lapela. “Eu, na realidade, não usava, e disse-lhe que não tinha, mas ela respondeu-me dizendo para não me preocupar. Passado uma semana, recebi em casa uma encomenda”, relata, “um pacote com lenços de seda para pôr na lapela, com um bilhete assinado por um ‘grupo de espectadoras’”.
E foi assim que Jorge Silva começou a usar lenço na lapela, todos os dias, nos dias de folga ninguém sabe, “para agradar às minhas telespectadoras”. Às oito e meia da noite.
Hong Kong olha Macau com sentimentos mistos
O efeito Venetian
O efeito Venetian
Os últimos dez meses em Macau têm sido espectaculares, pelo menos do ponto de vista dos que olham a Região do outro lado do Delta do Rio das Pérolas. Um alto funcionário do Governo foi detido e acusado de corrupção. Um polícia disparou para o céu num raro protesto laboral. A réplica de um mega resort de Las Vegas foi inaugurada sob um vistoso fogo de artifício, desejando as boas-vindas a mais de um milhão de visitantes.
Deixemos de lado o fogo de artifício e encaremos a realidade dos números.
O território, de apenas 24 quilómetros quadrados, conseguiu atrair 17,23 milhões de visitantes nos primeiros oito meses de 2007, apenas um milhão menos do que Hong Kong (18,24 milhões). Aliás, o Produto Interno Bruto de Macau, per capita, a preços correntes, já ultrapassou o de Hong Kong em 2006.
É difícil de acreditar que um hongueconguense consiga ignorar o que acaba de acontecer em Macau, muito em especial o facto de as suas super-estrelas Tony Leung e Chow Yun-fat – que raramente aparecem em anúncios em Hong Kong – terem surgido em anúncios de casinos de Macau. Como comentou um destacado apresentador da Rádio Comercial, Lei Wai-ling, “não é isto uma vergonha?”
Criou-se, assim um estado de espírito de preocupação em relação a Macau, com frequentes referências na imprensa à região administrativa especial, sobretudo desde a inauguração do Venetian Macao, no passado dia 28 de Agosto.
O Apple Daily, uma das publicações em língua chinesa de maior circulação de Hong Kong, tem dado corpo a esse estado de espírito ao dedicar uma atenção muito especial ao fenómeno Macau e ao que ele representa para Hong Kong. Aliás, o jornal tem vários milhares de leitores na RAEM, uma razão adicional para que o tema esteja regularmente presente nas suas páginas.
Por exemplo, em finais de Setembro dedicou boa parte das suas edições, em dois dias seguidos, a Macau. Mas não tem sido o único órgão de comunicação social de Hong Kong a demonstrar esse tipo de interesse.
Contando-se entre as maiores feiras de joalharia do mundo, a Hong Kong Jewellery and Watch Fair dividiu-se este ano por duas localizações, uma na ilha de Hong Kong, no Hong Kong Convention and Exhibition Centre, em Wanchai, e outra na AsiaWorld Expo, em Lantau. Mas as reacções de expositores que utilizaram as instalações da distante AsiaWorld Expo não foi das mais favoráveis, segundo o jornal “The Sun”, também de língua chinesa.
Uma grossista de jóias disse ao jornal que pagou 31 mil dólares de Hong Kong para arrendar uma banca, que acabou por custar quase o preço de uma nas instalações do Convention and Exhibition Centre, no centro da cidade. Com zero negócios e apenas dez pedidos de informação feitos até ao dia da reportagem, ela considera a possibilidade de no futuro se virar para Macau, caso os espaços existentes na Região garantam um bom número de visitantes.
As feiras comerciais realizadas em Hong Kong têm gozado de grande popularidade, a ponto de centenas de comerciantes serem colocados em listas de espera para grandes exposições levadas a cabo no Hong Kong Convention and Exhibition Centre. Mas o espaço acaba por ser um dos mais pequenos da região, com os seus 70 mil metros quadrados de área arrendável, ao passo que outros centros de exposições da região do Delta do Rio das Pérolas, como é o caso do Venetian Macao, alcançaram já 100 mil metros de área, que constituem agora o novo “standard”.
Enquanto as enormes salas de conferências do Venetian são um atractivo para os organizadores de feiras, o hotel de três mil quartos pertencente ao mesmo complexo turístico está a explorar a reserva de mão-de-obra de Hong Kong no sector de hotelaria. Esperando-se idêntica atitude dos restantes hotéis previstos para o mesmo espaço. Com uma taxa de ocupação de 84% e 10% de aumento nos últimos oito meses, os proprietários dos hotéis de Hong Kong não estão propriamente preocupados com as suas receitas, mas o problema da falta de mão-de-obra começa a constituir uma ameaça real. Para tentar ultrapassar este problema, a Federação dos Proprietários de Hotéis de Hong Kong está a lançar um programa especial de estágios profissionais, mas ao mesmo tempo pede aos hotéis de Macau que treinem o seu próprio pessoal, em vez de o irem recrutar a Hong Kong.
Na sua série de artigos, o Apple Daily também quis saber a visão dos ex-residentes de Macau. O músico Lee Chun-yat, que se mudou para Hong Kong em 2000, não está, na verdade, entusiasmado com a prosperidade da sua terra natal. Disse ao Apple Daily que “Macau foi capaz de liberalizar o Jogo em virtude da aprovação do Governo Central, mas em todo o caso não havia outra alternativa”, para acrescentar que o território “dificilmente terá competitividade noutros sectores”, que não o do Jogo.
Por outro lado, aprecia a liberdade de expressão que se “respira” em Hong Kong. E acrescenta: “Mas também quero mais dessa mesma liberdade em Macau, pelo que o protesto do Dia do Trabalhador foi uma coisa boa – independentemente de as exigências serem boas ou más, pelo menos puderam expressar-se.”
Emily, que nasceu no Continente e viveu a sua infância em Macau, aprecia a atmosfera acolhedora de pequena cidade da Macau em que cresceu. Mas quando entrevistada pelo Apple Daily, desabafou: “No passado, a costeleta de porco era servida sem pressas, era frita com atenção e eu precisava de esperar durante dez minutos pela sua preparação. Mas agora ela é preparada num minuto... é frustrante!”
Embora sem saber dizer se as mudanças em Macau são para bem ou para mal, ela simplesmente não está interessada em estabelecer comparações entre as duas regiões administrativas especiais. E conclui, com uma metáfora: “Hong Kong e Macau nasceram da mesma mãe, mas foram criadas por pessoas diferentes. Por que não hão-de ser ambas bem-sucedidas, cada uma à sua maneira?”
Finalmente, a contagem decrescente para as manifestações dos passados dias 30 de Setembro e 1 de Outubro foi igualmente seguida com atenção pelos jornais de Hong Kong tendo, por exemplo, o Apple Daily publicado extensas reportagens com base em entrevistas com os organizadores dos protestos.
Na sua edição de 1 de Outubro, o Ming Pao titulava que as manifestações previstas para esse dia poderiam ser caóticas e citava extensas declarações de residentes de Macau criticando as políticas do Governo. Um residente queixava-se de os terrenos em Macau estarem a ser utilizados para a construção de hotéis, em vez de lugares de estacionamento.
Por seu turno, no Apple Daily podia ler-se as acusações de que os deputados à Assembleia Legislativa são “máquinas de votar” e que a nova lei do trânsito é “um convite ao desrespeito da lei”.
No dia seguinte ao dos protestos do Dia Nacional, o Apple Daily titulava “A raiva do povo – Marcha de 10 mil manifestantes em Macau”, ultrapassando assim largamente os 6000 manifestantes reivindicados pelos organizadores e os 2000 contabilizados pela Polícia. Dentro do mesmo registo, a reportagem abria logo com as palavras de ordem contra Edmund Ho ouvidas na manifestação e fazia referência à presença de cães-patrulha da Polícia dentro de carrinhas, facto a que, diga-se de passagem, os jornalistas de Macau que acompanharam as manifestações não atribuíram significado especial.
O Ming Pao foi comparativamente mais comedido na sua contabilidade, limitando-se aos 6000 reivindicados pelos manifestantes. Enquanto o “The Sun” entrevistou dois académicos de Hong Kong, que instaram o Chefe do Executivo da RAEM a esforçar-se por melhorar as condições de vida dos residentes, para que não se repita a situação de Tung Chee-hua, antigo Chefe do Executivo de Hong Kong, que foi obrigado a demitir-se.
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