segunda-feira, 29 de outubro de 2007

Carlos Marreiros em entrevista

Carlos Marreiros, arquitecto e artista plástico

A diferença dos traços

Construiu a primeira casa, de dois andares e sem pregos, quando tinha sete ou oito anos. Por concretizar está ainda o sonho de desenhar uma catedral, qualquer que seja o credo, e um museu de arte. Carlos Marreiros, figura incontornável da arquitectura de Macau, antigo presidente do Instituto Cultural, ilustrador e pintor, diz não gostar de política.
É como arquitecto que faz a vida profissional, mas é na criação artística que encontra o espaço de liberdade para fazer o que realmente lhe apetece. Desenhar é um acto de exorcismo. A arquitectura não foge, de quando em vez, aos constrangimentos da política de que não gosta.
“Não gosto de política”, atira, para começar. “Hoje em dia a política é um falso consenso para criar uma paz podre. Eu sou contra consensos, sou pelo confronto de ideias”, afirma. “Defendo um acerto dos consensos gerados pelo confronto. Há que tirar uma bissectriz, não se pode agradar a gregos e troianos”. Marreiros não fala de Macau, mas sim do mundo em geral. “Os consensos de paz podre fogem dos princípios que deveriam nortear a política. Macau, felizmente, ainda não segue muito estes exemplos”.
Por não gostar de política, refuta uma intervenção nesse campo. “Episodicamente venho a terreiro notar, mas nunca fui um político. Se me chamarem activista não me sinto insultado. Exerço até aos limites os meus direitos de cidadania, porque sei cumprir os deveres a que me sinto obrigado enquanto cidadão”, esclarece.
A política não deixa, no entanto, de condicionar a vida e a arquitectura. E é então que surge a importância da arte. “Eu não vivo da arte e isso dá-me a independência. A arte é o território onde eu não permito interferências”. Na arquitectura o caso já é outro, “há interferências do poder financeiro, político, eclesiástico, há a vontade do cliente, que paga para ter a casa que quer, pelo que têm que se fazer os tais consensos de paz podre”. Na arte é “um tirano”: “É o meu metro quadrado, eu é que dito as regras, não sigo as do mercado, não sigo conselhos, estou-me nas tintas para os críticos, faço o que gosto e ponho na parede. Quem gosta, compra, se é meu amigo, eu ofereço”.
Carlos Marreiros descobriu que queria ser arquitecto depois de ter chegado à conclusão que desenhava bem. Mas a primeira “vocação” nada tinha a ver com a arte de construir casas. “Quando era miúdo queria ser padre, porque no meu tempo os padres falavam muito bem, eram líderes naturais, distribuíam a alegria e o pão na freguesia, praticavam o bem, tinham uma mesa farta de comida e bebida, eram gordinhos, e estavam sempre rodeados de raparigas bonitas”, diz, de um fôlego só. “Com 6 ou 7 anos, achava que era o máximo”.
Com a entrada no liceu descobriu “o jeito para o desenho”. “Desde o primeiro ano que ajudava a fazer os cenários, a decorar o ginásio do Liceu para os bailes, arranjava sempre truques para escurecer o ambiente e podermos dançar melhor, porque estávamos num regime ainda salazarento, em que não podíamos apertar muito a namorada”, explica. Da família materna herdou o talento para as artes, uma das tias financiou o primeiro curso de desenho por correspondência, com um tio negociante teve contacto com “as telas e crayons”.
“Pendulava entre as artes, a arquitectura e as ciências. Era muito bom aluno a matemática e a físico-química”, recorda. A opção foi para a arquitectura, “para tristeza de alguns professores meus que queriam que fosse advogado”. Com orgulho, conta que a tristeza foi temporária. “Quando fiz a minha primeira exposição de arte retrospectiva tinha trinta e tal anos, em 1992, na Casa Garden. Muitos dos quadros do meu tempo de adolescência, aguarelas, desenhos e uns óleos toscos, foram cedidos por uns antigos professores”.
Para Carlos Marreiros, crítico acérrimo do que se vai construindo em Macau, a diferença entre um arquitecto apenas competente e outro que é bom “é que o primeiro promove a construção de um espaço habitável, enquanto que o último promove um espaço habitável, funcional e ajuda a promover a alegria entre as paredes”. A competência não chega no exercício da arquitectura. “Temos que ser criativos e que procurar promover a felicidade intra-mural e extra-mural, no que à cidade diz respeito, dando o timbre da contemporaneidade. Sou absolutamente contra o que se faz muito por aí, copiar modelos neo-clássicos, fazer pastiche, porque culturalmente é inadmissível”. É tudo uma questão de tempo. “Uma catedral gótica teve a razão de ser nos séculos XI, XII e XIII... Hoje, replicar edifícios do passado é como obrigar a andar de carruagem, as mulheres terem que andar com o rabo falso vitoriano e nós, homens, andarmos de espada à cinta”.
Num exercício de retrospecção, Carlos Marreiros tem dificuldade em eleger os trabalhos favoritos da carreira de arquitecto, pela relação paternal que tem com o que faz. “Considero as obras de arquitectura minhas filhas, um pai não gosta mais de uma filha do que de outra, gosta de todas elas. Gosto de tudo o que fiz. Agora, algumas foram maltratadas, adulteradas, falseadas...”. Aqui surge a consciência e a assunção de que a profissão obedece às regras do mercado. “A arquitectura não é só o exercício do risco, é também de quem constrói, das balizas legais, do promotor e do cliente. Tendo em vista todos estes condicionamentos, amo tudo o que fiz com a mesma intensidade”.
São duas, no entanto, as obras que podem ser “as mais representativas”: a Escola Superior das Forças de Segurança, em Coloane, e o Tap Seac, “na parte que foi minha”. No outro extremo, “o que gosto menos de conceber são casinos e tenho feito alguns”, lança.
Do percurso multifacetado de Marreiros, o destaque para as artes plásticas, sempre presentes pelo carácter de libertação que assumem. O lápis com que desenha cidades de pormenores microscópicos está ali à mão. “O desenho é um acto de exorcismo, é uma forma de deitar fora os diabinhos que tenho em mim, para não ser agressivo”. Quando era mais novo, conta, era com o futebol que fazia esse exercício de expulsão da agressividade. “Com a idade deixei de jogar futebol, pelo não me resta muito mais do que desenhar e pintar para me exorcizar”.
Existem dois temas que marcam os desenhos tão característicos de Carlos Marreiros. “É uma fixação no poeta e na cidade”. O poeta é Camilo Pessanha, “maldito, magistrado, jurista, professor, mas também opiómano, excêntrico, que não aceitava as regras hipócritas da cidade cristã dos anos 30”.
A cidade é Macau “como pretexto”, mas são outras cidades, que vai imaginando e “reconhecendo” das viagens que faz. “Viajo muito desde os meus 18 anos e há sempre um cantinho em Varsóvia, Lisboa, Rio de Janeiro ou Xangai que eu coloco nos meus desenhos. São Franskensteins de várias vivências, de várias cidades”, diz Carlos Marreiros, o arquitecto enquanto artista. “É um prazer louco, é a cidade que vou imaginando, aquela que não posso construir”.

O que Marreiros não admite

A nacionalidade é uma “decisão” pessoal que em nada afecta o espírito de trabalho das pessoas que estão à frente de instituições de matriz portuguesa. Carlos Marreiros diz-se “maçado”, e por sinal “bastante”, com os comentários que se seguiram sobre a adopção da nacionalidade chinesa.
“Fiquei bastante maçado, assim como outros quatro colegas, quando optei pela nacionalidade chinesa. Nós continuamos a vibrar com o Benfica, com o fado e com a selecção nacional”, assegura. “Andam pessoas a mandar bocas e recados. Não lhes autorizo, porque não têm legitimidade alguma para o fazer”, dispara.
O arquitecto aceitou este ano o convite para integrar o comité que deverá eleger os deputados de Macau à Assembleia Popular Nacional. Os comentários sobre o assunto não lhe agradaram, por ser “uma questão pessoal e, como disse e muito bem Jorge Neto Valente, se há semelhanças nas duas Constituições é que ninguém pode ser discriminado pela sua etnia, orientação política, religiosa ou sexual”. Sem papas na língua, diz que “estas pessoas estão a meter a mão nas nossas almas”.
“Não digo que todos tenham que concordar e apoiar, mas têm que perceber que isto é algo muito pessoal e, se o fazemos, é porque gostamos de Macau, porque acreditamos em Macau, e é porque aqui queremos ficar”. Carlos Marreiros vai mais longe e diz não admitir que “um português da República, um australiano, um gringo ou um yankee me venha dizer o que devo fazer, porque não nasci num outro sítio e emigrei para Macau”. Falando no plural, lembra que, “de repente, a bandeira mudou, nós somos o segundo o sistema, nós acreditamos no futuro de Macau e da China, e por isso cá estamos”.
Para o arquitecto, a prova de que a nacionalidade não é condição que altere a postura pública nem a intervenção cívica está em duas instituições lideradas por pessoas que tomaram a mesma opção: a Santa Casa da Misericórdia e a Associação de Promoção da Instrução dos Macaenses. “São altamente reconhecidas pelo Governo Central e continuam a trabalhar em prol da presença portuguesa”, vinca, realçando o “grande esforço feito por António José de Freitas e o trabalho de José Manuel Rodrigues à frente da APIM”.
A talhe de foice, e numa análise da presença de matriz portuguesa em Macau, Marreiros elogia o que a Casa de Portugal tem feito, admitindo uma desconfiança inicial que desapareceu com o trabalho desenvolvido. Na mesma perspectiva, o arquitecto considera extremamente positiva a postura do Cônsul-Geral de Portugal na RAEM, Pedro Moitinho de Almeida.
Num discurso particularmente crítico, o arquitecto responsável por um estudo feito há um par de anos para uma nova Escola Portuguesa a construir na Taipa deixa duras críticas a Carlos Monjardino, à Fundação Oriente (FO) e ao Instituto Português do Oriente (IPOR). “Eu tenho mau feitio para as pessoas que não são boas para Macau”, afirma.
“A escola cujo estudo prévio eu fiz a pedido da APIM e do Ministério da Educação foi inviabilizada por Carlos Monjardino”, acusa. “Se tudo tivesse corrido sem a interferência dele estávamos a concluir o ano lectivo na escola nova. O que é que há agora? Nada. E ficou tudo pior!”.
Sobre a FO, Marreiros ressalva o responsável pela estrutura em Macau para dizer, no entanto, que a instituição “continua a não fazer nada, não se sabe sequer o que faz”. A mesma ressalva é feita em relação à responsável pelo IPOR, instituição com a qual se mostra igualmente desiludido.
Isabel Castro
Fotografia: Tang Chi Kin



Sem comentários: