domingo, 28 de outubro de 2007

Agnes Lam e análise social, Do espaço público

Agnes Lam, professora de Comunicação e poetisa

A menina sem medo

Publica artigos em jornais, com assiduidade semanal, é colaboradora de um debate na rádio e de um programa de televisão, é editora-chefe de uma revista destinada a jovens e professora do curso de Comunicação da Universidade de Macau. No meio de tudo isto, pertence ainda a duas comissões consultivas do Governo, uma da área do urbanismo e a outra relacionada com os direitos das mulheres. No tempo livre que consegue inventar, multiplicando as 24 horas que limitam os dias, escreve poesia. Agnes Lam tem uma energia que é só dela.
Nada e criada em Macau, a professora universitária de olhar traquina, com algo de eternamente adolescente, acha que uma das maiores sortes que teve na vida foi poder perceber a diversidade cultural da cidade e aplicá-la à Comunicação. Foi este multiculturalismo que lhe permitiu crescer, enquanto jornalista, e que tenta incutir nos seus jovens alunos, afastada que está, há já alguns anos, do quotidiano das redacções.
Começando a história pelo princípio, Agnes Lam fala da descoberta do jornalismo com uma carga romântica que os anos de tarimba não conseguiram apagar. “Lembro-me muito bem de que a primeira vez que ouvi falar da profissão andava na escola primária”, diz. Pela voz de um professor, ficou a saber que os jornalistas tinham que ter “pés de ferro, olhos de cavalo e um estômago de deus”. Uma metáfora local que, descodificada, “significa que tem que se caminhar muito, ter os olhos sempre bem abertos e não pensar em banquetes, que os deuses não comem”.
O endeusamento da profissão deixou Agnes Lam encantada, porque “os jornalistas são pessoas sem medo”, mas os anos arquivaram a ideia, até que a tia da melhor amiga foi estudar jornalismo para a melhor universidade da China, o que “foi um verdadeiro acontecimento”. A adolescente começou a pedir livros emprestados à estudante universitária e a interessar-se pelo assunto. Em 1989, os acontecimentos de 4 de Junho em Tiananmen fizeram com que Agnes tomasse a decisão definitiva de estudar jornalismo, “não porque tivesse uma consciência política em torno da questão”, confessa. “Nós, que vivíamos aqui em Macau alheados do resto, preocupados com histórias de amor, tivemos a noção de que era necessário fazer alguma coisa pelo mundo, pela sociedade, e eu achei que o jornalismo seria a melhor forma de concretizar estes ideais”.
As preocupações da Agnes Lam de então eram sobretudo sociais, “mas de uma inocência tal que não percebia que a política está presente em todas as questões do quotidiano”. A consciência cívica que tem agora e que faz com que seja, no meio da Comunicação em língua chinesa, uma interventiva “opinion maker”, foi adquirida com os anos de profissão.
“Quando decidi ser jornalista, as pessoas perguntavam-me que tipo de histórias queria eu escrever, que tipo de profissional queria eu ser. Não me interessava por política e, no meu primeiro ano, quando fiz o estágio na TDM, queria sempre fazer reportagens sobre crimes e esse tipo de coisas”, sorri.
No entanto, em meados da década de 1990, com a crise asiática e a crescente sensação de insegurança que marcou os últimos anos da administração portuguesa, o cenário mudou e a postura da jovem jornalista também. “Percebi que a política é omnipresente. Tudo é uma questão de governação, de aplicação de políticas ou de falta delas, e é preciso que os jornalistas coloquem as questões directamente a quem governa”. Foi isso que Agnes fez.
“Gosto de falar, de discutir, de argumentar, de ter que responder com rapidez”. A participação nos debates de televisão e de rádio permite-lhe o exercício da retórica e a descoberta de “ideias inesperadas que só surgem quando se tem que pensar em poucos segundos”. [...] A escrita assume o papel da ponderação, “a articulação calma das ideias”.
Dos primeiros anos de vida profissional no jornalismo, a docente da Universidade de Macau recorda o ambiente que “afortunadamente” encontrou. “Na altura, e com o todo o respeito que tenho por essas pessoas, entendia-se que jornalista eram todos aqueles que tivessem jeito para a escrita. Tive a sorte de ter muitos colegas com uma visão diferente. Trabalhávamos juntos e tentávamos concretizar as nossas ideias”.
Numa altura em que o jornalismo em língua chinesa “era muito pouco crítico, por uma questão cultural e também porque as fontes eram portuguesas e as notícias feitas pelos órgãos de comunicação social portugueses”, Agnes Lam sentiu necessidade de sair do “círculo”. O domínio da língua inglesa e o facto de ser uma curiosa por natureza ajudaram em muito.
“Não havia muitos jornalistas que falassem português, agora também não há. E eram muito poucos os que conseguiam falar inglês”, recorda. “Para mim foi fácil, eu gostava de trocar ideias com os jornalistas portugueses, porque tinham uma ideologia e valores diferentes, comparativamente com o que se fazia no jornalismo em língua chinesa”. Esta diversidade cultural atraía-a, gostava do tom crítico que não havia na comunidade jornalística a que pertencia.
Para perceber o mundo político do período pré-transferência de administração, socorria-se dos colegas de língua portuguesa. “Foram os meus professores, os meus consultores, quando precisava de contextualizações sobre determinados assuntos”, diz. Em parcerias com jornalistas portugueses fez alguns dos trabalhos de que mais se orgulha, como um documentário a quatro mãos com Ricardo Pinto, sobre o período do “1,2,3”.
Quer com reportagens que exigem a paciência da pesquisa histórica quer com outras, de uma maior actualidade, Agnes Lam arranjou formas de ir assegurando o tal papel social que entende que o jornalista deve ter. Depois de três anos na TDM a tempo inteiro, surgiram o mestrado e o doutoramento em Pequim, ao mesmo tempo que começava a dar aulas na Universidade de Macau. O jornalismo passou a ser uma actividade a tempo parcial, depois saiu da TDM enquanto funcionária, mas nunca largou o mundo da comunicação social.
Editora de uma revista há oito anos, escreve todas as semanas uma coluna de opinião no jornal Ou Mun, uma colaboração que mantém há mais de uma década. A cada quinze dias, publica também artigos de maior extensão no jornal mais lido de Macau.
Lam não se vê como uma “opinion maker” na verdadeira acepção da palavra, embora “expresse opiniões e fique satisfeita se puder contribuir para a formação de outros modos de pensar porque, como é óbvio, defendo aquilo que acho mais correcto”. O que quer mesmo ser, diz, é “analista de fenómenos sociais”.
“Não começo os meus textos a dizer ‘eu penso que’ ou ‘as coisas devem ser desta forma’. Apresento factos, discuto possibilidades e as consequências de diferentes hipóteses, concluindo com as ideias que entendo serem as melhores”, explica. Neste trabalho de análise opinativa, a professora universitária quer “deixar espaço, através da enunciação dos factos, para que cada um tire a conclusão que entender”. Defeito (ou feitio) da formação profissional.
Agnes Lam exemplifica com um trabalho que tem em mãos, sobre a polémica Lei do Trânsito Rodoviário. “Ando a ler os artigos que foram publicados sobre o assunto desde 2005 até agora: são mais de seiscentos. Tento organizar os factos, perceber o que realmente está a acontecer, para traçar um cenário claro do problema e chegar a uma conclusão”.
Embora, no início de tudo, tenha estado a escrita, tem dificuldade em eleger um meio favorito de comunicação. “Gosto de falar, de discutir, de argumentar, de ter que responder com rapidez”, afirma. A participação nos debates de televisão e de rádio permite-lhe o exercício da retórica e a descoberta de “ideias inesperadas que só surgem quando se tem que pensar em poucos segundos”. Mas meios como a televisão podem ter um lado menos “saudável” para quem está à frente das câmaras, “a tentação de se dizer aquilo que a audiência quer ouvir”. É aqui, então, que a escrita assume o papel da ponderação, “a articulação calma das ideias”. “São apenas canais, o mais importante é ter a hipótese de transmitir o que sinto e penso”, dispara.
Responsável pela formação de futuros jornalistas, Agnes Lam explica que tenta fazer com que tenham a noção da responsabilidade que a profissão implica. Todos os anos, é convidada para palestras nas escolas secundárias do território, uma contribuição para a orientação profissional dos jovens de Macau, e o discurso não é meigo. “Digo-lhes que se quiserem ser jornalistas, têm que ter a certeza de que estão interessados em serem pessoas justas e não terem medo, terem consciência de que não vão ter salários tão bons como noutras profissões, mas que serão felizes no dia em que fizeram um bom trabalho”.
Aos estudantes do curso de Comunicação diz, entre muitas outras coisas, que “Macau é o sítio ideal para se perceberem as diferenças culturais e ser-se capaz de agir em função disso”. Trata-se de abrir horizontes com as questões práticas do quotidiano profissional. “Por exemplo, em Macau [os jornalistas] podem colocar as questões de determinada maneira, mas na China é diferente. Mesmo no Continente, se for uma conferência de imprensa internacional é diferente do que numa vila pequena. Tento explicar que essas variantes são muito importantes e que é fácil senti-las em Macau”.
São subtilezas que podem ser essenciais para o resultado final do trabalho. Agnes Lam recorda os seus tempos de jornalista e a altura em que aprendeu que os colegas portugueses eram mais agressivos do que os chineses na forma como confrontavam os entrevistados. Há um episódio que lhe ficou marcado na memória e que serve para sustentar como é importante ser-se capaz de sair do círculo cultural em que se está naturalmente inserido.
“Foi na altura da transferência de administração de Hong Kong, na maior conferência de imprensa a que alguma vez tinha ido”. Na sala estavam uns 400 jornalistas e o ministro dos Negócios Estrangeiros da China. “Havia o rumor de que afinal, ao contrário do que estava previsto, o Exército Popular de Libertação viria para Macau e eu queria fazer uma pergunta sobre isso”. Enfiada no meio de centenas de jornalistas estrangeiros habituados à disputa do direito à pergunta, Agnes Lam optou por uma solução pouco convencional. “Ninguém me via, pequena ali no meio, já tinha tentado colocar a questão sete ou oito vezes. Foi então que decidi deixar a mão no ar enquanto o ministro respondia à pergunta de outro jornalista. O ministro olhou para mim, sorriu e fez sinal ao assessor para me dar a vez”, diz, a rir. Resultado imediato: fez a pergunta. Resultado final: conseguiu confirmar o fundamento do rumor, fazendo dele notícia.
“Foi algo que não foi nada fácil para mim, sendo de Macau”, explica, ainda sobre o mesmo episódio. “Na altura, não era suposto termos atitudes pouco convencionais. Eu tive sorte em ter amigos de outros locais que me permitiram perceber que há outras formas de agir, diferentes daquelas que nos ensinam aqui”.
Sobre Macau e os tempos que correm, a professora-analista diz que Macau está a preparar-se para mais um processo de transição, desta feita não de administração mas na forma como a população lida com as questões políticas. Comparando com o percurso pessoal que fez em matéria de tomada de consciência da cidadania, Agnes Lam compara dados de há meia dúzia de anos (quando a política se encontrava no fundo da tabela das preocupações dos residentes) com a expressão social actual, para dizer que a população está a “amadurecer”.
“Nós crescemos a pensar que a política era um mundo reservado a muito poucas pessoas e que, quando se entra, jamais se consegue sair. Foi sempre uma questão muito distante da vida da população comum, que se deveria manter afastada”, afirma, e jeito de fundamentação para o fenómeno. “Antes de 1999, as questões políticas prendiam-se com a transferência de administração, estavam longe de nós. Ninguém pensava em grandes mudanças, quanto muito iriam verificar-se depois dos tais 50 anos contemplados pela Lei Básica”, continua.
O que fez, então, para que houvesse uma consciencialização gradual e generalizada? “As pessoas começaram a sentir que a vida delas depende das políticas que se decide aplicar. A Lei do Trânsito Rodoviário é exemplo disto mesmo: é política, é lei e é a nossa vida diária. Estamos numa fase de crescimento da consciência da cidadania e do poder que a população tem”. É o processo de acordar para a realidade. “As pessoas estão agora a perceber que a política não é um mundo que podem, pura e simplesmente, ignorar”.
Isabel Castro
Fotografia: António Falcão/ bloomland.cn

Passos em volta

Esta cidade é como as pessoas: quando se olha para o mapa, não se encontram duas ruas iguais. Cada bairro tem as suas histórias, vontades, artes, desejos, esperanças e desesperos. Os seus segredos sussurrados. São passos em volta à redescoberta da urbe.

Da Fortaleza do Monte ao Tap Seac

Ode ao espaço público

É um percurso “oficial”, desenhado pelas autoridades que pensam o turismo, aquele que se propõe hoje nestes passos em volta da cidade. “Para os turistas será um trajecto mais ou menos obrigatório, mas para quem cá vive pode ser desconhecido”, explica Manuel Correia da Silva, designer e anfitrião destas (re)descobertas urbanas. “É um convite a um passeio turístico na cidade onde vivemos”.
Este repto começa no Templo de Na-Tcha, perto das Ruínas de São Paulo, “uma oportunidade para ver este pequeno monumento que integra a lista de património mundial da UNESCO”. Construído em 1888, “a sua localização é um exemplo perfeito da dignidade e da natureza distinta das várias tradições religiosas de Macau, uma dicotomia multicultural única, que bem representa”, descreve o site do Instituto Cultural. “Na Tcha é também considerado um Deus irreverente. A identidade singular de Macau evidencia-se neste local, onde um templo tradicional chinês se encontra próximo das ruínas da principal obra jesuíta da região, apresentando uma dialéctica entre ideais ocidentais e chineses”.
Contempladas as diferenças, faz-se a subida até à Fortaleza do Monte, ponto privilegiado para ver a cidade. Edificada entre 1617 e 1626 pelos jesuítas, a Fortaleza era parte do complexo que integrava o Colégio e a Igreja de S. Paulo.
Daqui, a partida para o Bairro de São Lázaro, “através de um corredor , em ziguezague, feito com a intenção de ligar a cidade e convidar à fruição do espaço público”. Manuel Correia da Silva considera que há, nesta aposta cultural e turística da cidade, um tributo ao espaço público. “É um percurso relativamente curto, no conforto do ar condicionado, sempre acompanhado de património, que se pode ver”.
O designer destaca ainda o facto de, neste trajecto de ligação entre a Fortaleza e o Bairro de São Lázaro, “as paredes terem sido desenhadas para o espaço ter capacidade de funcionar como se fosse uma galeria de arte”.
Feito o “ziguezague”, chega-se ao Bairro de São Lázaro, local definido pelo Governo como espaço de excelência para o desenvolvimento das chamadas indústrias culturais e criativas. “Por enquanto é um bairro que está bastante vazio mas que é muito bonito, há bastantes edifícios recuperados e que mostram as potencialidades da zona”, frisa Correia da Silva. A calma e a beleza do local justificam a caminhada.
Mais uns passos e regressa-se a uma área aberta, desta vez num ponto baixo da cidade. “É a praça do Tap Seac, em que se volta a ter a sensação de aposta no espaço público, que se goste ou não das obras que foram feitas”. No Tap Seac, o designer aconselha que se pare e olhe para o aproveitamento que foi feito de edifícios históricos, recuperados de modo a serem funcionais, nas mais diversas áreas. “Temos o Instituto Cultural, o Centro de Saúde, a Biblioteca e a Galeria do Tap Seac”, aponta. Do outro lado, um outro tipo de arquitectura e de relação com a construção: o Hotel Estoril, que Manuel Correia da Silva faz questão de destacar.
“Este é um percurso de convite à partilha do espaço público. É muita agradável”. Sintetizando os passos dados, o designer enfatiza duas vertentes diferentes da cidade que este trajecto permite sentir. “Na Fortaleza do Monte vê-se a Macau a crescer, mas o caos está ao longe. Depois da visão mais generalista, somos convidados a ver aspectos específicos e característicos da cidade”.
Nos locais que integram este percurso, Manuel Correia da Silva encontra ainda “cuidado com a iluminação e com a arquitectura”. “É também um espaço de respiração e, ao contrário de outros locais da cidade, não existe agressividade”, conclui. São ainda pontos da urbe cheios de História para descobrir.
Manuel Correia da Silva*, percursos e imagens
Isabel Castro, texto
* É designer em Macau. Em 2004, foi o vencedor de um concurso do Instituto Cultural sobre os percursos históricos da cidade, no âmbito da conservação do património de Macau.




Sem comentários: