domingo, 7 de outubro de 2007

O eterno pintor, Mercados às cores

Guilherme Ung Vai Meng, artista e director do MAM

O eterno pintor

Desenha em quase tudo o que lhe aparece à frente. Guilherme Ung Vai Meng precisa de ter sempre um lápis na mão, como se fosse o fio condutor do pensamento. Enérgico, de gargalhada convicta e convincente, o director do Museu de Arte de Macau (MAM) está longe de ser um administrativo convencional. “Olhem para aqui”, diz, enquanto folheia um “Moleskine” de tamanho A5.
“Esta é a minha agenda, eu prefiro o lápis, sempre o lápis.” A esferográfica não ajuda ao traço e o bloco de Ung Vai Meng está repleto de desenhos, entre caracteres bem definidos que codificam as tarefas do dia. O pintor já nem sabe o que significam as abstracções a grafite, desenha enquanto pensa. “Desenhar, trabalhar, administrar”, enuncia os verbos do quotidiano. “O lápis está sempre na minha mão. Só quando o chefe fala é que escrevo a esferográfica, as minhas propostas são sempre a lápis”, ri.
O princípio da escrita a grafite aplica-se a dossiês, onde os desenhos se misturam com separadores e textos saídos de computadores. Ung Vai Meng vive num mundo de desenho, de cores, de formas, num gabinete repleto de pinturas nas paredes, rolos de papel, livros e catálogos. Desde 1999 que é o responsável máximo pelo Museu de Arte de Macau, mas ficará para a história da arte local pelo trabalho enquanto pintor que se dedica também ao grafismo.
“A arte é importante não só pela produção de obras, mas como atitude de vida”, lança, com seriedade. “Cada pessoa tem uma qualidade única, uma característica forte”, diz. “O Guilherme tem uma característica, que pode ser usada de diferentes formas, na pintura, no desenho, no grafismo, no relacionamento com os colegas. Tudo se concentra na mesma característica”, afirma, num exercício de auto-descrição, como quem diz que é sempre o mesmo, independentemente do que estiver a fazer.
Nascido e criado em Macau, Guilherme Ung Vai Meng não foi um menino prodígio. Começou a estudar pintura, “a aguarela mas desde logo muito o desenho”, com o mestre Kam Cheong Leng. Quando nasceu, Macau era a cidade pacata com menos terra e mais água do que é hoje. O pintor vivia onde é hoje o Instituto Politécnico de Macau, numa casa com árvores e espaço para correr.
“Tenho cinco irmãos, eu estou no meio. O meu irmão mais velho começou a aprender a pintar mais cedo do que eu”, conta, “com o mesmo mestre que eu também tive”. Aos fins de semana, “o meu irmão ia para o atelier do mestre pintar a aguarela”. Guilherme ficava a brincar, “a apanhar pássaros e peixes”. Um dia, quis também experimentar a pintura e assim entrou para o mundo de Kam Cheong Leng. Foi esta a escola inicial, anos mais tarde passaria pelas Belas Artes do Porto e pela Ar.Co - Centro de Arte e Comunicação Visual, também em Portugal.
“As pessoas, artistas ou não, dependem de duas condições para poderem explorar as suas características”, defende. “Há algo que já nasce com elas, uma forma de sentir, um sentimento, mas outra parte importante é o ambiente familiar, os professores e os colegas, que influenciam muito”. Considerando-se um homem de “sorte”, o pintor constata que “há pessoas que têm um excelente ambiente, um bom mestre, mas falta o interior, enquanto outros sentem muito, mas falta aquilo que faz explodir”.
Ung Vai Meng utiliza o panchão como metáfora, no equivalente ocidental faz a comparação com o conceito de fogo de artifício, para descrever este processo que faz com que alguém se possa tornar artista. Não basta a pólvora no interior, é necessário que alguém o lance.
Na sua história de vida, que vai perto do meio século, as duas componentes estiveram presentes. O “sentimento” ou, se preferirmos, o talento, foi-lhe dado em herança, por via paterna. “O meu pai podia ter sido pintor, mas Macau era tão pobre”, exclama. “O meu avô tinha muito jeito para o artesanato. Durante o período da guerra, que não chegou a Macau mas trouxe muitas dificuldades, o meu avô fazia esculturas para viver”, conta.
O avô talhava figuras, animais, “galos como os de Portugal, mas não tinha jeito para pintar, pelo que chamava o meu pai”. Além de ter mão para a pintura, o progenitor de Ung Vai Meng tinha imaginação de artista. “O meu pai pintava cada lado do galo de cor diferente”, explica. “Para nós é muito artístico, mas o meu avô chamava-lhe malandro e perguntava-lhe como é que podia vender a peça com uma cor de cada lado”, conta, a rir.
Foi o pai que transmitiu o dom da criatividade e levou os filhos ao atelier de Kam Cheong Leng. “Tive muita sorte com o meu mestre”, refere. “Tive muita sorte também quando entrei para o Instituto Cultural”, na década de 80.
“Naquela altura eu não falava bem português, agora falo pior ainda”, ri-se, “comunicávamos com poucas palavras, mas havia um grande respeito entre colegas”. O primeiro trabalho que teve no Governo foi desenhar um conjunto de postais sobre o património de Macau. “Passei meses a desenhar na rua e depois entreguei os desenhos ao meu chefe”.


“Cada pessoa tem uma qualidade única, uma característica forte. O Guilherme tem uma característica, que pode ser usada de diferentes formas, na pintura, no desenho, no grafismo, no relacionamento com os colegas. Tudo se concentra na mesma característica”.
Na Macau culturalmente fraca da época havia uma excepção forte, criada por um movimento de artistas plásticos onde se incluíam os irmãos Marreiros, Carlos e Victor, Mio Pang-Fei, entre mais meia dúzia de nomes. Ung Vai Meng conheceu-os a todos e tornou-se um elemento essencial deste grupo. “Dentro do serviço havia um ambiente muito importante, foi muito bom, a vida começou a ter cor”. As dimensões reduzidas de Macau faziam-no ter vontade de conhecer outros mundos, “via catálogos, revistas, tinha muita vontade de aprender”.
O mundo abriu-se com a língua portuguesa, que continuou a aprender no Instituto Cultural. “O português foi, para mim, uma janela”, exclama no idioma em que se escreve este texto. “É como para os portugueses que não falam chinês. A partir do momento em que se pode comunicar, abre-se uma janela”. A dele deu-lhe a oportunidade de rumar até Portugal, aprofundar a técnica mas, principalmente, encontrar-se enquanto artista.
Numa descrição da sua própria obra, começa por dizer que “a carreira atravessa várias fases”. Começou pelo desenho, que continuou sempre muito presente enquanto estrutura para o abstraccionismo nas telas, a acrílico ou a óleo. As descobertas acerca dele próprio quando esteve a estudar em Portugal fizeram com que tivesse partido para a construção de um conceito de conjugação do Oriente com o Ocidente. Trocando isto por miúdos, e apontado para as paredes do seu escritório, Guilherme Ung Vai Meng diz que a ideia foi misturar a paisagem chinesa com a tridimensionalidade da técnica ocidental.
Esta fusão faz-se também ao nível dos elementos de composição. De pé, dirige o olhar para uma pintura clássica chinesa, “uma paisagem, só com árvores e água”, para rapidamente mostrar um exemplar de arte ocidental, as tais três dimensões em que, do ponto de vista clássico, a paisagem “é o cenário, o contexto”. “Na arte chinesa tradicional, as pinturas não têm pessoas, é tudo muito vazio e sossegado. Representam o isolamento que leva à reflexão, é o ambiente poético”, declama. “Então eu quis misturar tudo”. O resultado é o exercício de abstracção da sobriedade do traço chinês com a dimensão real da pintura ocidental.
Entregue à coordenação do Museu de Arte de Macau, sobra a Ung Vai Meng pouco tempo para pintar, mas tal não significa que passe um dia sem desenhar. Gosta do trabalho no MAM e elogia o ambiente que ali se respira. “Estou muito contente com os meus colegas, aqui não é preciso dizer ‘fai ti, fat ti...”. Porque “a cultura é muito importante para esta cidade”, o MAM sob a direcção do pintor não se limita à organização de exposições e artistas locais e do estrangeiro.
De novo, o conceito de tridimensionalidade, desta feita aplicada ao trabalho de administração. A primeira dimensão é a da promoção da arte local, não só com exposições mas também com cursos. “Queremos gerar o tal ambiente para que os jovens possam descobrir os seus talentos”, diz o director, que admite que faz falta uma escola de Belas-Artes em Macau mas que considera que já vão existindo condições para o desenvolvimento das qualidades artísticas. “Depois estes jovens terão que ir para fora estudar, mas aqui no Museu tentamos criar o ambiente, com toda a nossa força”, vinca.
A segunda dimensão do MAM está relacionada com a apresentação de arte vinda do estrangeiro, “de qualidade e de muitos pontos do mundo”. A terceira e última, mas não menos importante, consiste na divulgação de arte clássica e contemporânea da China. “O que se faz hoje em dia no país está a começar a ser muito apreciado a nível internacional, os preços estão, por exemplo, a subir muito. Se Macau desempenha uma função neste processo, fica na história da arte da China também, como agente de divulgação”.
As tarefas no MAM roubam-lhe o tempo para o acrílico e o óleo, pelo que decidiu apostar no “papel chinês”. Guilherme Ung Vai Meng levanta-se com agilidade e espalha pelo chão um rolo branco de grandes dimensões, em que o preto é a única cor dada pelo pincel. “Estou a experimentar utilizar menos elementos”, diz, contextualizado por um enorme quadro de cores fortes, pertencente a outra fase da sua vida artística. “Não é o minimalismo da arte ocidental, que é muito conceptual. O meu é visual, estou a concentrar-me na composição. Este traço aqui é diferente”, aponta. “Todos os elementos têm uma função própria. E, pronto, eu faço isto”, remata, com um sorriso.
Não deverá estar para breve qualquer exposição de Ung Vai Meng. Não que falte material, porque até mesmo quando viaja para fora de Macau não larga o lápis. “Se tenho uma reunião às 9 horas fujo do hotel às 7 e vou desenhar pelas cidades”, diz com uma gargalhada sentida. A questão é a incompatibilidade com as suas funções no Museu para expor dentro do próprio MAM, “não é conveniente”, e as iniciativas privadas na cidade não abundam.
Guilherme Ung Vai Meng não consegue sequer imaginar-se a deixar de desenhar e de pintar. “Não”, solta, prolongando a palavra, “não posso deixar de pintar”. É um prazer único, que nada substitui. “A arte é sempre mais importante”.
Isabel Castro
Fotografia: António Falcão/ bloomland.cn

Passos em volta

Esta cidade é como as pessoas: quando se olha para o mapa, não se encontram duas ruas iguais. Cada bairro tem as suas histórias, vontades, artes, desejos, esperanças e desesperos. Os seus segredos sussurrados. São passos em volta à redescoberta da urbe.

Da Horta e Costa aos Três Candeeiros

Os mercados das cores

Não é um percurso perfeito do ponto de vista estético nem uma visita a monumentos que se fotografam para postais, mas sim uma viagem ao quotidiano de Macau, das pessoas que cá vivem. Para se sentir uma cidade, não há nada melhor do que espreitar os mercados, observar os hábitos de venda e de compra de quem está em permanência na urbe.
No ponto em que a Avenida de Horta e Costa toca na Almirante Lacerda, encontra-se o Mercado Vermelho, o mais singular de todos os espaços de venda da cidade. O mercado foi criado em 1936 para “venda pública de vegetais e outros produtos frescos”. O edifício, de dois andares, vai buscar o nome ao material em que foi construído, os tijolos vermelhos.
Desenhado de forma simétrica, tem uma torre com relógio ao centro e uma torre de vigia em cada uma das esquinas, sendo um exemplo de “art déco” pouco comum em Macau. Consta da relação do património cultural de Macau na qualidade de edifício de interesse arquitectónico.
Esta orgulhosa construção de cor vermelha é contemporânea das avenidas que a enquadram, ambas baptizadas com nomes de governadores de Macau. A Almirante Lacerda foi traçada em 1930 e deve o nome ao homem que, poucos anos antes, tinha governado Macau interinamente. Para a história, Hugo Carvalho de Lacerda Castelo Branco ficou como o homem que realizou em Macau a primeira Exposição Industrial e Feira, em 1926. Rezam os livros que esta MIF da altura terá contado com 12 mil pessoas.
Na perpendicular à Almirante Lacerda, está a outra avenida com nome de governador, uma das mais conhecidas da cidade, fama que encontra correspondência ao estatuto de Horta e Costa. Foi governador do território por duas vezes, sendo que o primeiro “reinado” decorreu entre 1884 e 1896.
À partida para Portugal, e embora gozasse de boa reputação em quase todos os sectores da sociedade de então, não deixou saudades ao bispo. “Lá se vae o Horta e Costa, esse homem nefasto para o Clero de Macau. É verdade que quasi sempre ‘tratou bem’ o clero de Seminário, mas ainda n’isso havia manhas infernais. Desgraçados homens”, escreveu o bispo D. António Joaquim de Medeiros, em troca de correspondência com Portugal, citado pelo P. Manuel Teixeira na obra Toponímia de Macau.
Para mal dos pecados dos desgraçados homens do clero local, o “nefasto” governador regressou em 1900, tendo por cá ficado mais quatro anos, antes de partir para a Índia. Da sua obra, destacam-se as preocupações com o saneamento (coisa que não existia até então em partes densamente povoadas da cidade), a instituição do Liceu de Macau e a criação da Escola Central do sexo feminino, numa altura em que as mulheres tinham um complicado acesso à educação.
Mais de um século depois, estas duas avenidas são das mais agitadas da cidade e com um valor arquitectónico relativo, excepção feita ao Mercado Vermelho. “A arquitectura do edifício contrasta com tudo o que se passa na zona, em que tudo é recente, muito incaracterístico. O edifício do mercado é um ponto de referência”, destaca Manuel Correia da Silva, anfitrião destes passos em volta.
O designer conta que “são as memórias mais coloridas dos primeiros anos de vida em Macau”. A diversidade dos produtos e o conjunto de cores constroem uma plasticidade que interessa a Correia da Silva. Do Mercado Vermelho surgiu “a força criativa que deu origem ao M.I.R.”, um candeeiro concebido a partir dos tradicionais suportes de iluminação que se encontram nesta zona da cidade.
No Mercado Vermelho encontra-se de tudo, das frutas às galinhas vivas. “Tem dois momentos altos do dia, as horas que precedem o almoço e o jantar”. Nas ruas à volta, em direcção à Rotunda Carlos da Maia, a confusão não é menor. O mercado faz-se na rua, de improviso, em torno dos Três Candeeiros. “É um mercado que mostra muito bem o quotidiano dos cidadãos de Macau”, sublinha Manuel Correia da Silva.
Para este ponto da cidade não se leva o mapa atrás, nem sequer aquele que se vai construindo mentalmente depois de anos de visitas assíduas. “O mercado dos Três Candeeiros é um labirinto, exige ir à descoberta”, recomenda o designer. “É um local para as pessoas se perderem com calma porque o valor de todo este espaço está nos pormenores, nas surpresas”.
Depois do passeio sem rumo, os passos vão dar à Rua Norte do Mercado Almirante Lacerda, ou seja, a uma das artérias mais estreitas à volta do Mercado Vermelho. A paragem faz-se na porta assinada com o número 3. “É o restaurante dos pássaros, um verdadeiro ponto cultural deste bairro”.
O restaurante, que serve comida chinesa e um chá muito apreciado por quem percebe do assunto, tem vários aspectos peculiares, desde logo pelos frequentadores que enchem o espaço logo pela manhã. “Os homens fazem-se acompanhar ao pequeno-almoço pelos seus pássaros nas gaiolas”, realça o designer. As paredes estão forradas a fotografias de Macau, “o proprietário sempre se interessou por esta arte”. “O restaurante está no meio do ruído, é um excelente local para fazer uma paragem”, recomenda.
“São as cores, a diversidade, a roupa, a fruta, as galinhas vivas e logo a seguir uma loja de bolinhos. É toda esta diversidade de produtos e a maneira de os apresentar que são um bom motivo para vir até este espaço”, diz ainda o designer. Numa urbe com cenários que dão para vários tipos de filmes, Manuel Correia da Silva aconselha aqui a mudança de suporte artístico para a máquina fotográfica, por ser este bairro um “óptimo local para captar imagens”. Depois, há que apelar aos sentidos. “Este bairro não é bonito, o que interessa é a energia que se sente”.

Manuel Correia da Silva*, percursos e imagens

Isabel Castro, texto
* É designer em Macau. Em 2004, foi o vencedor de um concurso do Instituto Cultural sobre os percursos históricos da cidade, no âmbito da conservação do património de Macau.


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