Um alemão na cidade
É exactamente metade da vida passada num continente que não é seu, mas que é já a casa principal, embora as origens estejam onde cresceu. Macau é mesmo assim, é um ponto de passagem para alguns, de fixação para outros, e o encanto vem de todas as pessoas que, não sendo de Macau, acabam por o ser, independentemente da nacionalidade, juntando-se às outras que sempre foram de cá.
Harald Bruning, nascido alemão, 54 anos de idade, chegou à Ásia há 27. Jornalista e director do Macau Post Daily, vive em Macau desde 1985 e o regresso ao país natal é uma hipótese que deixou de equacionar já lá vai algum tempo. É o jornalista estrangeiro com um maior número de anos numa redacção de língua chinesa mas, curiosamente, foi o facto de falar português que lhe abriu a porta de Macau.
É uma vida cheia de coincidências e pormenores. Sentado no meio da redacção que dirige, num edifício no centro da cidade de onde se vêem os telhados mais antigos da urbe, Bruning começa a história pelo início, pelas memórias que deixou a uns milhares de quilómetros de distância. “No meu passaporte está o nome de uma terra que não conheço. Talvez um dia vá lá”, conta. O jornalista fala do parâmetro “naturalidade”, uma curiosidade em relação ao local onde nasceu.
“Foi por acidente. O meu pai era militar, a minha mãe foi visitá-lo e eu nasci num complexo militar, num local que nunca mais visitei. Duas semanas depois voltámos para a cidade onde cresci”, relata. “Nasci na fronteira com a França mas considero-me da Baixa Saxónia, toda a minha família é de lá”.
Licenciado em Ciências Políticas e Económicas, começou a aprender português nos tempos de estudante universitário, em Munique. Do liceu levava já conhecimentos de espanhol e foi essa a razão pela qual decidiu aprender português, longe de imaginar que um dia lhe seria útil na Ásia. “Em muitas escolas da Alemanha o espanhol é uma das língua estrangeiras ensinadas. Quando fui para a universidade, tinha que estudar pelo menos dois idiomas estrangeiros, e achei que o espanhol e português eram parecidos”. Não demorou muito a perceber que “na realidade não é bem assim”. Passados 27 anos, o espanhol caiu quase no esquecimento, o português nem por isso.
Curso acabado, o jovem Harald Bruning mudou-se para Hong Kong, no primeiro ano da década de 1980. “Parte da minha família vivia lá, tinham negócios” na então colónia britânica. Com a Ásia chegou a entrada no mundo do trabalho porque, à excepção de algumas traduções em “part-time” quando era estudante, não tinha chegado a ter na Alemanha uma experiência profissional propriamente dita.
“Em Hong Kong, trabalhei para a empresa dos meus familiares durante dois anos. Por uma coincidência engraçada, eram agentes da empresa que equipou a Teledifusão de Macau”. Foi no papel de mediador dos aspectos contratuais para o equipamento da TDM que Bruning veio para Macau e conheceu a cidade, onde até então só tinha vindo nuns rápidos passeios turísticos. O motivo pelo qual foi escolhido para a tarefa era simples: falava português, a língua da Administração da altura. A Teledifusão de Macau foi equipada, começou em as emissões em 1984. Pouco depois, Harald Bruning mudou-se para o território.
Cinco anos depois de ter aterrado no Oriente, o licenciado em Ciências Políticas e Económicas ainda ponderou a possibilidade de regressar à Alemanha para continuar a estudar. “Gostei de Macau, decidi ficar na Ásia, mudei-me para cá”, situa. Mais de vinte anos volvidos, diz não pensar em regressar ao país natal, até por causa da profissão e do idioma em que a exerce. É que Macau representou uma mudança de rumo em termos profissionais.
“Comecei a trabalhar para o jornal Va Kio, andavam à procura de um jornalista estrangeiro”, lembra o homem que esteve quase duas décadas na redacção do segundo jornal local em língua chinesa mais lido em Macau. Ao trabalho no Va Kio juntou-se a tarefa de correspondente da agência United Press Internacional (UPI). “O correspondente da UPI tinha deixado Macau nessa altura, tinha ido para Taiwan, e estavam à procura de alguém que falasse português. Foi uma coincidência feliz”.
Da Alemanha, Harald Bruning trazia a licenciatura e no currículo uns artigos que tinha escrito para jornais, ainda no tempo de estudante. Foi Macau e a UPI que o fizeram jornalista. “Gostei muito da experiência na UPI, na altura era uma das maiores agências do mundo, tinham um escritório em Hong Kong. Aprendi a escrever notícias, ensinaram-me a fazer um ‘lead’, como ser independente, objectivo, qual a utilização das fontes”, recorda.
Em simultâneo, decorria a vida no Va Kio, que foi “muito agradável” e durou até 2004, ano em que lançou o Macau Post Daily. Ainda nas décadas de 80 e 90, Bruning teve outras experiências enquanto correspondente, primeiro no Hong Kong Standard, onde esteve 12 anos, mais tarde no South China Morning Post. O mundo das agências noticiosas foi sempre acompanhando o percurso do jornalista. Depois da UPI, seguiu-se a Reuters, que deixaria também há três anos, quando passou a estar à frente do jornal em língua inglesa.
“É um trabalho a tempo inteiro, tive que largar tudo”, explica, falando da publicação que é feita no amplo espaço da Avenida Almeida Ribeiro. “O Macau Post é detido pelas pessoas que o fazem, os jornalistas, um dos accionistas está ligado ao negócio da impressão”, contextualiza o director. “Esta ideia de lançar um jornal em inglês era comungada por várias pessoas, mas não fazíamos ideia do quão difícil seria. Não sei se faria o jornal outra vez, mas a partir do momento em que se tem um bebé não se pode, simplesmente, desistir”, lança.
O Macau Post Daily é o projecto editorial privado em língua inglesa com mais tempo de publicação. Entrou já no quarto ano de vida. Na década de 90 e já depois da mudança de milénio, foram feitas tentativas que acabaram por não resistir. O jornal dirigido por Bruning bateu já o recorde em termos de números publicados e veio preencher uma lacuna da imprensa diária, até então feita nas línguas chinesa e portuguesa.
O jornalista lembra que “mesmo nos anos 80, as pessoas perguntavam porque é que Macau não tinha um jornal em inglês”. “Várias cidades da Ásia, como Banguecoque, Taipé e Hong Kong, tinham já duas ou três publicações em inglês, mas Macau não tinha, o que era estranho. Mesmo agora não é fácil”, constata.
Nos últimos tempos, o número de potenciais leitores aumentou, dada a expansão em Macau da comunidade que só lê jornais em inglês, mas este crescimento do núcleo anglo-saxónico corresponde a um fenómeno que em nada parece ajudar à imprensa inglesa: a absorção da mão-de-obra pelos casinos.
Bruning afirma que “um dos maiores problemas são os recursos humanos, é difícil encontrar pessoas que escrevam para um jornal em língua inglesa”. A dificuldade não é só o idioma em que se trabalha, “é preciso juntar a isto alguns conhecimentos sobre Macau”. Se já não era fácil quando o projecto foi lançado, agora ainda é pior, “porque faltam recursos humanos em todas as áreas, as pessoas que têm um bom nível de inglês não acham que seja muito atractivo trabalhar num jornal e vão para a área de relações públicas”.
Ao contrário do que aconteceu com Harald Bruning, que encontrou no jornalismo a profissão de uma vida, é comum “os jovens que estudam Comunicação optarem por serem relações públicas, o que é compreensível, porque nos jornais trabalha-se à noite, aos fins de semana, tem que se estar sempre alerta”. “O jornalismo não é só um trabalho, é uma paixão, uma vocação. Se alguém entra na profissão sem paixão vai sentir-se infeliz rapidamente, porque não é um emprego das 9 às 5”, resume.
Pouco tempo depois de ter saído para as bancas, o Macau Post Daily sofreu uma reestruturação ao nível da equipa. “Olhando para trás, talvez tenha sido um bebé prematuro, teve vários pais e talvez mais do que uma mãe”, diz com um sorriso. “De qualquer forma, sobreviveu miraculosamente e agora vai no quarto ano de vida, espero que vá crescendo e seja um adolescente”.
Se nos anos 80 o jornalista ainda pensou em regressar à Europa, na década de 90 deixou pura e simplesmente de pensar nisso e agora, com um projecto em mãos, a ideia está ainda mais distante. As razões são várias, desde logo o facto de, a determinada altura, ter adoptado a língua inglesa como instrumento de trabalho. “Quando comecei a trabalhar em jornalismo na Ásia, ainda escrevi artigos em alemão, para publicações na Alemanha. Depois, deixei de o fazer, passei a escrever só em inglês. Conheço outros casos de jornalistas alemães, holandeses ou suecos que têm o mesmo problema, porque tiveram que tomar uma decisão em relação à língua e optaram por aquela em trabalham”. No caso de Bruning a escolha da escrita em inglês nem sequer foi uma decisão, “aconteceu naturalmente”. “Consigo escrever em alemão mas para fazer um artigo precisava do triplo do tempo que demoro a escrever em inglês”, sorri.
Depois, entra ainda em linha de conta o facto de Macau ser “a casa principal”. “Não precisamos de deixar a nossa identidade para termos outra casa. No meu caso até já é a principal, mas serei sempre diferente das outras pessoas de Macau, porque sou alemão, tal como acontece com os portugueses ou os fujianenses”, aponta. Lembrando Marlene Dietrich, “que deixou o país por causa desse monstro chamado Hitler, nunca voltou a viver na Alemanha e morreu em Paris”, explica que num documentário filmado pouco tempo antes de morrer, “disse que tinha nascido alemã e iria morrer alemã”.
Em Harald Bruning a noção de identidade é semelhante e defende que “todas estas pessoas devem continuar a ser o que são, porque é isso que faz com que Macau seja interessante, é um local onde não nunca assisti a nenhuma declaração de racismo aberto”.
Para o jornalista alemão, que tem a capacidade pouco vulgar de perceber o que se passa nas ruas - quer as conversas sejam em cantonês, em português ou em inglês, porque domina as três línguas -, “é notável” a forma como as diferenças convivem em Macau, “sendo um local tão pequeno”.
“Penso que será pelo facto de as pessoas daqui terem uma noção grande de tolerância, o que significa, frequentemente, serem permissivas. Isto tem um lado negativo e outro positivo”. A cidade tem uma forma de “auto-gestão” que agrada a Bruning, em contraste com alguma falta de flexibilidade europeia.
Em relação à urbe que vê da varanda da Almeida Ribeiro, o jornalista encontra diferenças óbvias quando compara à cidade pacata para onde decidiu mudar-se, mas não são tantas quanto isso. “Os edifícios são diferentes e as pessoas também, mas Macau, quando cá cheguei, já era uma contradição e continua a ser”. Bruning precisa: “É uma contradição em termos de pessoas, de edifícios, de ambiente, gastronomia. Há igrejas ao pé de casinos, prostitutas ao pé de freiras... O aspecto interessante é que tudo isto convive num espaço muito pequeno, porque noutras cidade tudo isto também existe mas há um espaço que Macau não tem”.
Nada disto é novo, “é mais rápido agora e mais visível, mas lembro-me de que nos anos 80 as pessoas já diziam que vinte anos antes Macau era muito melhor”, ri. “Conhecia pessoas em Hong Kong que conheciam a Macau dos anos 60 e diziam ‘não, a Macau real era nos anos 40’. Tenho a certeza que em 1940 se dizia isso dos anos 20”. Harald Bruning considera que “faz parte da identidade de Macau estar sempre a queixar-se de que está a mudar, mas esta mudança constante faz parte da sua identidade, no sentido em que, na essência, não se altera assim tanto”.
Macau tem “uma identidade muito forte” e o jornalista entende que não são as fronteiras que mantêm essa noção de pertença. “Macau é mais antiga que a maioria dos estados, sobreviveu ao longo de 450 anos como sendo algo diferente, minúscula num país que é colossal”. Bruning detecta uma “fronteira espiritual e uma energia suficiente para continuar a ser diferente, porque as pessoas gostam de ser diferentes, o que não significa ser contra a China”, porque “Macau faz parte dela, mas é uma parte muito especial do país, e é também um bocadinho portuguesa, o que é simpático”.
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