É um dos efeitos mais visíveis do desenvolvimento de Macau, olhado com reticências por uns, encarado com naturalidade por outros. A população da Região Administrativa Especial está a crescer e a tornar-se mais diversa no que toca às origens de quem chega de novo. Em 2001, os Censos contaram 435,235 residentes. Por altura dos Inter-censos de 2006 éramos já mais de 502 mil, mas no final de Junho passado tinha sido atingida a barreira dos 526 mil, mais 27 mil pessoas do que em 2006.
O fim do monopólio da indústria do jogo, a 8 de Fevereiro de 2002, é um marco incontornável para as alterações demográficas que se têm vindo a registar. Os investimentos que começaram a crescer um pouco por todo o território levaram ao consequente crescimento dos sectores associados, da construção à hotelaria. As limitações de Macau em termos de recursos humanos, tanto na quantidade como nas áreas de formação, fazem com que a RAEM seja um destino apetecível, procurado por pessoas do outro lado da fronteira - com um aumento de mais trinta mil residentes oriundos da China no espaço de cinco anos -, mas também por jovens profissionais que chegam dos Estados Unidos, da Oceânia e da Europa.
As mudanças não passam despercebidas – a língua inglesa passou a ter uma nova dimensão em Macau, com quase 7300 pessoas a usarem o inglês como língua corrente. Este facto traduz-se na multiplicação de publicações que têm, como principal público alvo, a população que não fala nem chinês nem português. Livrarias com obras em inglês abriram as portas, o mesmo se passando com espaços nocturnos mais ao gosto da anglofonia.
Charlie Bassett, 25 anos, natural do Ohio, veio de Las Vegas para Macau. Ao contrário dos muitos americanos que conhece na RAEM, não foi o sector do jogo o motivo pelo qual veio para o território, embora a sua actividade profissional se enquadre no turismo. Director da filial de Macau de uma empresa internacional de desportos radicais desde Janeiro do ano passado, diz estar satisfeito com a experiência. “Macau é uma cidade muito peculiar. A experiência tem sido muito positiva. Para um americano há muitas vantagens em viver aqui, a começar pelos impostos”, explica.
Para Bassett, Macau é o primeiro destino de residência fora do país de origem e não esconde que, antes de chegar, estava apreensivo com o que ia encontrar. “Acabei por ficar surpreendido com a facilidade com que me adaptei. Há muitas pessoas diferentes, vários tipos de gastronomia, Macau está muito bem localizada do ponto de vista geográfico”, realça. “E a cidade não fica parada, está sempre a crescer e a mudar, o nosso negócio cresce com ela”. O facto de Macau ser um espaço onde o bilinguismo não elege o inglês como idioma principal, a começar pela toponímia e identificação de lojas e serviços, não atrapalha o jovem director. “A região é pequena, acabamos por conhecer o essencial em pouco tempo. Mais do que a língua, o obstáculo inicial é a cultura”, analisa. “O espaço pessoal é diferente, não é bom nem mau, mas com o tempo acostumamo-nos. No trabalho, há que ter um cuidado redobrado com a cultura local, para percebermos as diferenças e sermos capazes de as respeitar”.
Charlie Bassett não tem uma ideia precisa do número de americanos a viver em Macau, mas sabe que são muitos e que chegam todos os dias. De acordo com os dados apurados pelos Serviços de Estatística e Censos no final do ano passado, os residentes do grupo Estados Unidos/ Canadá eram 3275, mas Bassett presume que durante este ano o número aumentou significativamente, seguindo a tendência dos últimos anos e dando resposta às exigências da indústria do jogo em matéria de mão-de-obra. Há também que contar com os trabalhadores que obtêm vistos de apenas alguns meses, “os que estão cá apenas para desenvolver projectos específicos”. Numa região com uma população muito flutuante, Charlie Bassett pertence ao grupo de residentes a curto prazo, embora a partida não esteja ainda anunciada. O americano tem na memória o dia do carimbo no passaporte, à chegada, mas não comprou bilhete de regresso. “Pretendo ficar mais algum tempo, mas depende de onde a minha empresa me quiser”.
Karl Vanuden, neo-zelandês de 25 anos, também ligado ao sector do turismo, alinha pelo mesmo discurso. A vinda para Macau tem uma razão objectiva e a aventura da mudança foi muito calculada, até porque já tinha cá estado uns meses antes de deixar a Malásia, país onde viveu durante um ano. Diz gostar de viver em Macau, se assim não fosse “ia-me embora, que há imensos destinos no mundo”, e o factor diversidade convence-o, porque conhece “pessoas diferentes todos os dias”. Vanuden recusa comparações entre Macau e outros destinos, dada “a peculiaridade da cidade”, onde pensa ter encontrado o seu espaço. Numa análise rápida à comunidade da Oceânia na RAEM que, pelos números oficiais, contava 1100 pessoas em 2006, o jovem atira que “a maioria está por períodos relativamente curtos, por dois ou três anos, e veio por causa do trabalho, vivendo muito em torno da profissão”.
Se as comunidades australiana e americana de Macau têm vindo a contar, de ano para ano, com mais pessoas, o mesmo não se pode dizer da comunidade portuguesa. Em 2006, os residentes com nacionalidade portuguesa eram menos duzentos do que cinco anos antes, quando eram 8793. Quanto ao local de nascimento, os números oficiais explicam que, no espaço de cinco anos, passaram a ser menos trezentos os residentes que vieram de Portugal, ou seja, 1316. A maioria tem idade compreendida entre os 25 e os 40 anos.
Renata Borges, assistente de gestão de restauração, ainda não entra nestas estatísticas. Chegou a Macau em Julho passado, depois de ter cá estado dois meses para um estágio profissional em hotelaria. A experiência correu bem e foi convidada para ficar. “Macau é um excelente local para trabalhar em hotelaria”, contextualiza. “Há imensos grandes hotéis casinos, já para não falar de unidades de menor dimensão. Os lugares para trabalhar são muitos e bons. Costumo dizer aos meus amigos de Portugal que deveriam tentar Macau”. Da universidade onde Renata estudou vieram há cerca de três meses mais dois profissionais.
Com experiência de vida e de trabalho no Brasil, esta jovem de 22 anos faz uma avaliação muito positiva da sua (ainda) curta permanência na RAEM. Na dimensão profissional, “vinha com a expectativa de fazer um trabalho mais restrito e está a ser muito maior e melhor do que estava à espera”. Depois, há o lado pessoal, a vertente humana da história: “A maioria das pessoas com quem trabalho são da China, falam pouco inglês, pelo que há maior dificuldade de comunicação, mas nada que impeça o trabalho”.
Renata Borges diz que “o facto de lidar com todas as culturas é a parte bonita de estar em Macau, porque em Portugal nunca teria essa possibilidade, quanto muito tinha um director europeu”. “Aqui há uma mistura fantástica”, dispara entre sorrisos. Quanto a uma perspectiva de regressar ao país natal, ao contrário de Bassett e Vanuden – que têm uma perspectiva muito pragmática sobre a permanência na RAEM -, a jovem não arrisca qualquer data, isto porque “toda a gente diz vem por um ano e acaba por ficar dez”.
A “mistura fantástica” que é Macau fazia-se, no final de 2006, de 471,263 pessoas de nacionalidade chinesa, 10,286 oriundas das Filipinas e 757 da Tailândia. Americanos, australianos, portugueses e pessoas de outros países, quer europeus quer africanos, compõem o resto da população. Um dado revelador do aumento significativo da população da RAEM é o número de pessoas que chegaram a Macau em 2006 – 24,757 – 42 por cento do número total de novos residentes que chegaram entre 2001 e 2005. Quanto à faixa etária, Macau acolhe essencialmente pessoas entre os 20 e 35 anos, grupo que significa 45 por cento do total de chegados à Região nos últimos seis anos.
“Macau lidou com um grande número de imigrantes no passado, pelo que acredito que os residentes não terão dificuldades em lidar com esta nova onda”Werner Breitung, investigador na Universidade Sun Yat-sen de Cantão
O hábito faz a cidade
O problema existe e é sentido por todos, mas as soluções estão longe de serem consensuais. O ritmo do crescimento das indústrias do turismo e do jogo não permite, aparentemente, pensar (apenas) em soluções a médio e a longo prazos. A urgência da situação leva à adopção da hipótese que se apresenta como sendo a mais viável, se não a única: a importação de mão-de-obra. Aqui, dividem-se as opiniões, com o sector laboral a contestar a entrada de trabalhadores, por colocarem em risco os empregos de quem já cá esta, e o empresariado a contestar que, sem mão-de-obra, não há negócio que resista.
Werner Breitung, investigador na Universidade Sun Yat-sen de Cantão, estudou a noção de identidade das cidades transfronteiriças e fez uma análise do que é a RAEM. Do ponto de vista dos sentimentos colectivos da população, o académico acredita que esta nova “onda de imigração” para o território não será a causa de fenómenos sociais indesejados, não obstante o facto de muitas pessoas em pouco espaço ser sinónimo de problemas. “Claro que existem e vão sempre surgir novos problemas, mas Macau lidou com um grande número de imigrantes no passado, pelo que acredito que os residentes não terão dificuldades em lidar com esta nova onda”, analisou ao Tai Chung Pou. O académico afirma mesmo que a situação “é melhor agora do que no passado, porque a imigração não se deve a factores externos a Macau, mas sim porque há oferta de emprego na RAEM. As pessoas querem vir para Macau e, falando de uma forma geral, o trabalho é-lhes destinado, o que não foi sempre o caso”.
Breitung compreende as “atitudes proteccionistas dos representantes dos trabalhadores” mas alerta para o facto de “não serem os melhores indicadores para a definição de políticas”. É que este aumento demográfico tem impactos positivos derivados de uma maior competição, sustenta, como o “aumento de produtividade” e a inversão de uma “atitude muito relaxada em relação aos requisitos do mercado de trabalho” que sentiu há um par de anos, quando vivia permanentemente em Macau.
O investigador frisa ainda que, em relação ao tipo de novos residentes de Macau, “os estrangeiros, os ocidentais, não deverão ser encarados como o maior problema” no que toca ao tipo de sentimento despertado entre a população. “Ironicamente, a população de Macau parece aceitar com maior facilidade os estrangeiros do que os imigrantes da China, à semelhança do que acontece também em Hong Kong”. Werner Breitung também não acha preocupante o facto de mais de metade dos residentes de Macau não terem nascido cá. A experiência das últimas décadas permite-lhe afirmar que “um grande número vem para ficar muitos anos”. Comparativamente com outros enclaves, “em Macau o sentimento de pertença é muito forte, consequência do facto de estar separado da China por uma fronteira”. “Sente-se mais a imigração e há um maior impacto cultural porque há uma fronteira que tem que ser atravessada, assumindo uma maior dimensão do que o movimento migratório entre cidades de um país” com apenas um sistema.
Isabel Castro
Fotografia: António Falcão/bloomland.cn
Fotografia: António Falcão/bloomland.cn
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