domingo, 23 de setembro de 2007

A cidade escondida

António Conceição Júnior, consultor do MAM

A arte da paixão desapaixonada

Tem a calma dos gestos própria de quem já teve tempo suficiente para fazer o processo de “decantação” essencial para relativizar o passado e também o presente. António Conceição Júnior não gosta da palavra “artista”, gostos não se discutem, é apenas um “desabafo” de alguém que se pode incluir nas “pessoas que praticam artes”. “Uma vez disseram-me que era muito difícil perceber onde é que eu pertencia, o que é que eu era, porque fazia várias coisas, e em Macau as pessoas precisavam de referências. Se fosse pintor, então levava um carimbo de pintor na testa, se fazia fotografia, era fotógrafo. Quem faz mais do que isso não é nada. Então, pronto, eu sou nada!”, ri-se.
Consultor cultural do Museu de Arte de Macau, António Conceição Júnior pratica arte nas mais diversas disciplinas, mas prefere “a audiência da plateia ao protagonismo do palco”. “Comissariar exposições é algo que me dá tanta alegria como projectos pessoais. Não sinto necessidade de protagonismo. Não me ponho em bicos de pés, não faz parte de mim”, esclarece. “Tive que o fazer durante o período em que trabalhei em moda”, recorda. “As pessoas ficam presas a um momento. O António Conceição Júnior é alfaiate, ou é costureiro, ou é estilista. Nunca atinam com a palavra certa, mas também não tem importância, diverte-me imenso”, diz, descontraído. Na realidade, frisa, “sou mera e simplesmente um cidadão de Macau e não quero ser mais do que isso”, diz.
O António Conceição Júnior que fez moda, também desenhou jóias, concebeu espadas, faz fotografia, entre muitas outras formas de expressão artística, como o domínio dos traços da caricatura que estas palavras emolduram. O domínio de várias técnicas resulta daquilo que vai descobrindo, do apetite pelo desafio e da sua própria natureza. “Passo de disciplina para disciplina porque encontro numa respostas a perguntas suscitadas pela outra”, afirma, explicando que do conhecimento da técnica do fabrico das espadas passou para a concepção de jóias em aço, para as quais também contribuíram as medalhas feitas ao longo da vida.
Esta multidisciplinaridade tem outra justificação, o facto de ser “um produto híbrido”. Para Conceição Júnior, “numa sociedade globalizada como aquela em que vivemos, a conjugação de diversas culturas é provavelmente uma das possíveis respostas ao mundo actual, isto é, estar verdadeiramente numa sociedade de informação globalizada é ser miscigenado, é ser híbrido”. “E é sobretudo estar aberto ao outro, mesmo que para isso tenhamos que nos fechar fisicamente para nos podermos abrir”, diz, moldando as palavras.
Ainda sobre a arte que faz, explica que procura a relatividade em relação ao seu trabalho. “Procuro entender que tudo o que faço é meramente subjectivo, faço-o de um modo desapaixonadamente apaixonado. Há um envolvimento distanciado ou há uma distância de envolvimento”, lança. “Às tantas é a idade que me permitiu ver as coisas com o mesmo entusiasmo, mas com alguma decantação. Todos nós, com a idade, nos tornamos alquimistas”.
Nem sempre foi assim, houve uma idade para ser artista. A conversa recua no tempo, para se perceber como surgiu o interesse pela arte. Conceição Júnior conta que “não houve nenhum clique, foi como as estações do ano”, tudo surgiu naturalmente. Quando era miúdo desenhava bem, mas nunca pensou em ser artista... “até pensar que ser artista era muito importante”, pelo que foi para Belas Artes. “Andava vestido de preto, com os braços abertos que era para mostrar que tinha o tique de trazer muitas telas debaixo do braço”, diz, soltando uma gargalhada sentida. “Depois, em termos freudianos, tive que matar esse artista, para me libertar”.

“O que realmente é imperioso é que a população no seu todo, governantes e governados, assuma que deve existir um pacto social no qual a vertente cultural é aquela que vem conferir mais-valias à análise e à tomada de consciência dos problemas da cidade, de todas as origens”

Ainda antes de todo este processo, a dicotomia Macau – Portugal. Nascido e criado em Macau, foi para Portugal com apenas 12 anos, para um colégio, onde era “o pelintra no meio dos filhos dos milionários”. “Sentia uma necessidade de rasgar horizontes e achava também que era muito romântica a ideia do colégio, por causa dos ‘Cinco’, os livros de Enid Blyton”, confessa. A vida começou a ser um “pingue-pongue, três anos cá, dois anos lá”, até ao regresso definitivo a Macau, em 1977.
O regresso a Macau surgiu na sequência de “uma ideia muito interessante do então jovem major Garcia Leandro, que era a chamada macaização dos quadros”. O primeiro governador de Macau logo a seguir ao 25 de Abril de 1974 lançou o desafio, Conceição Júnior sabia para onde regressava, “é a minha terra”. Chegou com 26 anos e, no princípio do ano seguinte, entrava para o Museu Luís de Camões, onde foi conservador. “O meu ilustre antecessor tinha sido meu vizinho de bairro, colega dos meus pais no Notícias de Macau, era Luís Gonzaga Gomes, que falecera dois anos antes de eu voltar”.
Na Macau de então, “não havia nada ao nível de actividades culturais” e o jovem Conceição Júnior encontrou uma forma de se realizar ao “trabalhar para os outros, não tinha que estar centrado nas minhas coisas”. Não tardou a acontecer a Quinzena de Macau, “na sequência do levantamento daquilo que eu tinha feito interiormente sobre a forma de reflectir o que é que faltava cá”. No final da década de 70, “estávamos numa fase ‘muito arcaica’ em que os chamados artistas eram olhados um bocado de lado, eram desculpados de serem diferentes do normal por serem... artistas”.
Neste contexto, António Conceição Júnior teve espaço para criar e foi-lhe permitido “dar asas” aos seus projectos e, assim, ganhar confiança relativamente a algo que Portugal não era “capaz” de lhe dar: perceber que as suas propostas eram passíveis de serem realizadas. Chegados a este ponto, surge o esclarecimento, para não haver mal-entendidos: “Nunca pensei em mim como um profeta, alguém que vem e diz que sabe tudo, nunca foi essa a minha postura na vida. Era, isso sim, a postura de que havia muito para ser feito e que alguém tinha que o fazer. Como eu estava com as mãos na massa e sempre entendi que o Museu não era necessariamente, sobretudo naquele contexto, um espaço hermético, muito menos um espaço poeirento, fui desenvolvendo projectos, fui sendo acarinhado, as coisas aconteceram”.
Fez-se a Quinzena de Macau, reeditaram-se publicações que desde os anos 40 estavam esquecidas. Pequenas grandes conquistas que levam Conceição Júnior a concluir que “Macau sempre me deu muito mais do que qualquer outro lugar poderia dar e, sobretudo, deu-me algo que já vinha do nascimento, deu-me o multiculturalismo”. Não se pense, no entanto, que foi sempre tudo fácil. Um dos maiores sonhos ficou por concretizar, pelo menos na plenitude.
Conceição Júnior propôs a construção de um centro cultural em Macau em 1977, ainda antes de entrar para o Museu Luís de Camões. Chegou a fazer um levantamento, apresentou uma proposta, mas o projecto não foi para a frente. Onze anos depois, em plena governação de Carlos Melancia, a ideia é retomada. “Venho a saber que ele me procura, quer falar comigo, pois sabe que eu tinha proposto um Centro Cultural. Como ele soube, isso não sei”, introduz.
“Na altura fui nomeado, pelo Governador Carlos Melancia, director de um pequeno gabinete do chamado Complexo Cultural, que tinha um programa diferente, em relação ao [actual] Centro Cultural, ao contemplar uma escola de artes incorporada, virada para o Sudeste Asiático”. As escolas de arte neste ponto do mundo não tinham oferta para o exterior e “como Macau sempre foi, por natureza, um entreposto, um lugar de troca, fazia todo o sentido que fosse também um dos centros onde se encontrassem alunos de artes do Sudeste Asiático”.
O projecto compreendia ainda uma componente de ordem comercial que permitiria tornar possível a independência financeira do complexo. “O Governo de Macau não tinha que gastar dinheiro, apenas disponibilizar um terreno, para que investidores pudessem pegar no projecto, criar um grande centro comercial, um centro de convenções com hotel e, em troca, oferecer à cidade, de acordo com as nossas especificações, um centro cultural e uma escola de artes”.
O responsável pelo gabinete do projecto “tinha andado a sonhar desde 1977, as ideias estava mais ou menos claras, foi feito um estudo de viabilidade por empresas da especialidade que apontavam para um retorno financeiro anual suficiente para criar um fundo, organizado em moldes semelhantes aos da Gulbenkian, mas com uma estrutura e forma de gestão mais leve”. As mudanças políticas verificadas pouco tempo depois fizeram com que a ideia ficasse por ali, “os gabinetes de projectos tinham três anos e a situação estava num impasse”. Foi-lhe dito que “era um projecto megalómano”. Conceição Júnior só queria, sustenta, “construir um centro cultural a olhar o futuro, para os cinquenta anos seguintes”.
Vinte anos depois do agora consultor do Museu de Arte de Macau ter pensado num projecto de complexo artístico multidisciplinar, com uma forte componente de formação, o território continua a não ter uma escola específica de artes que abranjam técnicas além do design, curso garantido pelo Instituto Politécnico e mais recentemente também pelo Instituto Inter-Universitário. Não faz falta uma escola de artes em Macau? “Faz falta, mas não descontextualizada. O que realmente é imperioso é que a população no seu todo, governantes e governados, assuma que deve existir um pacto social no qual a vertente cultural é aquela que vem conferir mais-valias à análise e à tomada de consciência dos problemas da cidade, de todas as origens”. Faz falta encontrar a via para “pensar colectivamente, algo que acho maravilhoso”.
António Conceição Júnior acrescenta que “o Museu de Arte de Macau está a fazer muito dentro do que pode, em matéria de iniciação à formação artística”. Quando surge o debate sobre a atribuição de responsabilidades, diz que “há sempre espaço para mais” e a memória traz as letras de uma canção para dizer que “soube a pouco”. Para saber a tanto, há sempre vários caminhos, a começar “pelos próprios casinos que, enquanto instituições que obtêm lucro em Macau, deveriam assumir a sua quota parte de responsabilidades na vida cultural, por via do mecenato”.
António Conceição Júnior diz nunca ter amanhecido, nestas duas dezenas de anos em Macau, com vontade de voltar a partir. “Não, porque eu pertenço a isto. Se fosse americano diria ‘I belong here’”. Novo sorriso e uma pausa para acender um cigarro, que segura com a elegância de mãos criadoras. “Nem sempre a vida foi fácil mas parte do desafio estava aí, nessas barreiras que se vão encontrando”.
Isabel Castro

Passos em volta

Esta cidade é como as pessoas: quando se olha para o mapa, não se encontram duas ruas iguais. Cada bairro tem as suas histórias, vontades, artes, desejos, esperanças e desesperos. Os seus segredos sussurrados. São passos em volta à redescoberta da urbe.



Um cenário para Wong Kar Wai

Não fica longe do centro de Macau, mas aqui o tempo passa de uma forma diferente. Em tempos, foi um espaço muito vivido da cidade, um porto de chegada, sempre em mutação. “Há uma identidade mais recente do que a dos edifícios classificados. Aqui o património são as pessoas que ainda cá estão”, lança Manuel Correia da Silva, designer, o nosso anfitrião por estes passos em volta de uma cidade que vale a pena espreitar, por toda a genuidade que mantém. “Não dá para dizer onde é que o bairro começa nem acaba, tem uns braços que se prolongam”, gesticula.
O ponto de partida é na Rua dos Ervanários, ali ao pé da Rua das Estalagens, que em tempos foi a fronteira entre a cidade cristã e a chinesa. “Estas duas ruas são paralelas, são gémeas. Aqui havia uma porta, que desapareceu. Há um jogo interessante, de um lado temos o pavimento tipicamente chinês e aqui a calçada portuguesa”. No ponto em que as ruas se encontram, Manuel Correia da Silva aponta para o chão para mostrar uma flor desenhada na calçada, que em tudo se distingue do padrão que enfeita a rua. São estes pequenos pormenores, de enigmático significado, que dão sentido à cidade.
A cidade cristã fica para trás e andamos em direcção ao bazar. Manuel Correia da Silva conhece bem o bairro, vive nele todos os dias, o atelier onde trabalha está encaixado entre a Rua dos Ervanários e o Beco da Melancia. Sabe dos hábitos, reconhece rostos, indica os melhores espaços comerciais. Logo no início da Rua dos Ervanários, a primeira paragem para um lai cha”. “Neste café lindo de rua, pode tomar-se um bom pequeno-almoço. É um espaço que tem tudo a ver com este bairro... À noite é um parque de motas dos residentes, mas o frigorífico está enfiado numa caixa de metal, passa a vida aqui. É um café que aparece e desaparece”. Olhando para cima, os toldos “muito característicos desta parte da região”. “Em Hong Kong, pegaram neste material e fizeram uma marca, o “red, white and blue”, que aqui ainda é utilizado da maneira mais autêntica, com o propósito original”.
O passeio continua, rua abaixo, e Manuel Correia da Silva propõe que se olhem para as lojas, os pormenores. “Aqui as coisas não são nada sofisticadas”. Há espaços que vendem peixes e tartarugas, uma mercearia, uma pequena ourivesaria. “É um bairro de imagens mas também de sons, o mahjong faz parte da banda sonora deste bairro”. A ópera chinesa também, em becos mais escondidos.
“Este senhor da alfaiataria Va Seng faz umas cabaias muito bonitas. Temos também um médico, ‘massagista, quedas e pancadas’, com este pormenor de equipamento urbano de que gosto muito”, diz, apontando para uma estrutura de ferro que, imagina-se, “serve para que os doentes, que ele já nunca tem, se possam sentar cá fora quando o consultório está cheio”.
Existem detalhes surpreendentes nesta rua. Como “a senhora de uma loja que está sempre a ouvir o canal português de rádio”. “É uma banda sonora que não bate com o filme. É a companhia dela, a música portuguesa, as notícias em português”. Manuel Correia da Silva deixa o desafio: “Num espaço tão pequeno, cada loja, cada beco, tem estas histórias para contar. Isoladamente, contam-se em meia dúzia de palavras mas quando observadas adquirem uma dimensão cinematográfica”. O designer pensa em Wong Kar Wai, o realizador de Hong Kong, que “poderia fazer um filme aqui, porque há uma plasticidade enorme nas paredes, nas coisas velhas, nada aqui é novo, em contraponto com o que acontece do outro lado da cidade, em que está tudo a ser inaugurado”.
Manuel Correia da Silva ri e diz que “parece que está tudo pronto para fechar”. A verdade é que se trata de um ponto da cidade que vai sobrevivendo por si. “Há obras novas, mas as renovações estão a ser feitas à mesma escala. Não há qualquer tipo de restrições ao estilo de arquitectura que se faz aqui. Por ser a parte chinesa da cidade, deveria ter, na altura, um tipo de arquitectura muito específica, que ainda se vê nalguns pontos do bairro”.
Ainda nesta rua, um pequeno desvio à esquerda para ver o Beco da Pinga e descobrir “o espaço recreativo do bairro, onde se joga xadrez chinês, em mesas improvisadas”. No mesmo local, um barbeiro de rua, com uma cadeira das antigas, uma peça digna de museu, “tudo isto tem a ver cinema”. Neste beco, vale a pena olhar para as paredes, “feitas do tijolo cinzento que caracteriza os edifícios de arquitectura chinesa”. Há ainda um templo, “muito humilde mas muito bem tratado”, com inscrições protegidas por uma placa de vidro. É preciso espreitar para se verem estes pequenos detalhes. “Está tudo escondido, aqui”.
Saímos do bairro para a rua principal. É o ponto onde termina a Rua dos Ervanários e começa a Rua da Tercena, onde o passeio alarga e serve de espaço ao mercado dos tin-tins, “um acontecimento único porque, apesar de ser muito pequeno, tem características singulares e as pessoas, com a maior descontracção, vendem aquilo de que mais ninguém se lembra, como a caneta que já não escreve às pilhas usadas”.
Meia dúzia de passos e aparece o mais famoso espaço comercial do bairro, a sopa de fitas Ving Kei. O restaurante está enfeitado com as memórias do negócio familiar que começou com um carrinho de mão. O antigo Presidente da República de Portugal, Jorge Sampaio, também entra nos retratos pendurados nas paredes, numa visita feita à pequena loja. “Muita gente conhece esta loja, os turistas que andam por esta ponto da cidade vêm à procura da sopa de fitas”.
Quase no fim da rua, a paragem para ver uma “estação de reciclagem”. É neste ponto da cidade que se faz parte significativa da reconversão de materiais. Ao final do dia, assistem-se a verdadeiras procissões, “quase sempre mulheres”, com carrinhos de mãos cheios de papelão e latas. “O material é pesado e comprimido, resultam em volumes esteticamente muito interessantes”, diz Manuel Correia da Silva. “É uma actividade importante, não só do ponto de vista ambiental, mas porque é a forma de rendimento de muitas pessoas”.
Estamos ao pé da Travessa do Armazém Velho. Virando de novo à esquerda, começa um dos muitos labirintos do bairro. São becos e becos para explorar em próximos passos em volta.

Manuel Correia da Silva*, percursos e imagens
Isabel Castro, texto
* É designer em Macau. Em 2004, foi o vencedor de um concurso do Instituto Cultural sobre os percursos históricos da cidade, no âmbito da conservação do património de Macau.







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