Nunca mais tinha ido à Taipa desde que construíram a ponte Nobre de Carvalho. Leonel Barros não se importa de repetir e desfazer possíveis dúvidas. Confirma-se. Não saía da península há mais de 30 anos. “E quem não vai à Taipa, não vai a Coloane”, ironiza Neco, nome que lhe colaram à nascença.
“Costumava ir a Coloane nadar, trepar as montanhas e ainda lá estive a trabalhar”. Mas só no tempo em que o caminho marítimo era o único porto de acesso às ilhas. Leonel Barros já nem se lembra quando é que isso foi, a memória por vezes tem destas coisas. Mas só quando quer. Aos 84 anos, Neco ainda é o contador de estórias de Macau.
“Eu tinha boa memória, nunca escrevi nada, só muito mais tarde, lá pelos anos 80”, refere Leonel que aproveita a deixa para desfiar duas ou três recordações de uma assentada só. “Ainda hoje me lembro de ver e ouvir o barco do meu avô, capitão de um dos vapores da carreira Macau - Cantão”, conta. Com 13 ou 14 anos, Neco foi pela primeira vez por esse rio acima. “Estava impressionado, fomos ver os estragos dos ataques aéreos japoneses e, uma das vezes, soaram as sirenes e fomos a correr para o barco”. A bandeira portuguesa, pintada na parte superior do toldo da embarcação, era o escudo que mantinha os aviões japoneses à distância.
“Ao cair da noite ou amanhecer, quando estávamos no vapor, ouvíamos os pregões das tancareiras com as suas lojas flutuantes, a vender tudo o que um homem precisava em casa”. Mas, estas vendedoras foram talvez as que menos impressionaram o rapaz: “O que eu queria mesmo era visitar os “barcos de flores”, eram uns 300, tão bonitos!”. O avô, porém, tirou-lhe logo as ilusões: “isso não é para a tua idade, para além de ser para ricaços”. As flores eram um eufemismo para as embarcações especializadas no ópio e prostituição.
O apito dos vapores da carreira calou-se passado algum tempo, com a invasão japonesa de Cantão. Meia dúzia de anos depois, em 1943, ficou também pelo caminho o 4º ano do Liceu Nacional Infante D. Henrique: Leonel Barros teve que abandonar os estudos para cumprir o serviço militar obrigatório no Quartel de São Francisco.
Neco, o antigo soldado (49)53, não precisa de vasculhar muito no fundo do baú, para sacudir episódios da tropa que só terminou em Outubro de 1945. “Os japoneses tinham ocupado a ilha da Lapa, onde começaram a matar os velhos. O sangue atraía os tubarões para esta zona”. Não foi preciso muito para se tornarem no alvo da pesca e serem introduzidos na dieta local. Até chegarem ao quartel foi também um tirinho. “O chefe de cozinha, o cabo 610, todos os dias tinha tubarão. A pele é muita áspera, uma lixa autêntica”, afirma, enquanto torce o nariz. Parte da refeição era passada a retirar a pele do animal, apesar de nem todos se darem ao trabalho.
“Tirávamos todos a pele, bem, nem todos, os portugueses comiam tudo. Comentavam ‘Ó 53 isto é mesmo bom!’”, recorda o titular do número. Leonel Barros ainda tentou camuflar as regras: o pai envia-lhe todos os dias uma marmita ao quartel. A estratégia durou até ao tenente Gomes ter descoberto e ter-se apropriado diariamente da marmita do Neco: “53, isto é muito bom, muito melhor que tubarão”. Leonel limitava-se a encolher ombros, o mesmo que fez quando resolveu protestar por receber um pré (vencimento) de 90 patacas, menos 30 patacas do que os soldados provenientes de Portugal. “Disseram-me que não fazia sentido porque eles comiam bife e eu peixe salgado”, relembra com um sorriso de quem nunca guardou rancores.
“Muitas vezes metia-me na floresta para ver as aves. O sítio mais lindo era o Mangal, onde ficava horas a vê-las a apanhar o peixe”
Da natureza Neco foi também guardando conchas, mais de duas mil, agora expostas no Museu Marítimo. O espaço teve, desde os primeiros traços, um dedo de Leonel. Além de ter feito parte da equipa de instalação, ajudou a embalsamar os animais e até colaborou na concepção do desenho do edifício. Aliás, desenhar é uma paixão das antigas, quase forçada pelo pai, homem duro nas regras que em tenra idade ficou órfão de pai e de mãe. “O meu pai era um bom desenhador. Chamava-nos, a mim e ao meu irmão, e obrigava-nos fazer desenhos iguais aos dele”, recorda, ao mesmo tempo que ri da rigidez paterna. A queda para desenhar e pintar também era conhecida do professor de desenho que, sempre que não comparecia às aulas, “mandava aqui o Barros tomar conta da classe”.
Podia não ter hábito da escrita, mas foi sempre anotando em papéis soltos ou na memória o Macau que ia vendo passar, “esse tacho de culturas”. A curiosidade nata conduziu-o pelas ruas, pelas gentes e costumes da terra. “Quando havia alguma festividade ou quando eu via os chineses a queimarem coisas à porta eu queria saber tudo, a fundo. Ia com um caderno na mão e perguntava ‘Dim gai a?’ (porquê?)”, explica Leonel. A língua de perguntador estendia-se aos templos, onde “falava com os bonzos, perguntava tudo, deixava-me ficar lá durante horas, comia com eles”. Horas a fio para saber a origem das coisas, vasculhar as lendas e as tradições populares. Foi coleccionando tudo isso e, já a partir dos anos 80, partilhou-o através da publicação de artigos nos jornais e de vários livros, ilustrados pelo próprio punho.
Leonel pode nunca ter conhecido nenhuma das três pontes (até Setembro de 2007), mas movimenta-se como ninguém no bairro que o viu nascer, onde ainda hoje vive. A primeira morada teve-a no número 9 da Rua Tap Seac. “Se me disserem para ir dar um passeio à cidade nova, eu não sei. Depois do Hotel Lisboa já não sei andar a pé.” Às vezes aventura-se para os lados do Porto Exterior, guiado pelo único autocarro que lhe pára à porta. “Apanho o 28C que termina o percurso no centro comercial New Yahoan. Saio, vou lá almoçar e volto pelo mesmo caminho, com o 28C. Não sei mais e não quero saber. Gosto de estar em casa, a desenhar, a fazer bonecos”, afirma com orgulho.
Os 84 anos que já leva a sua relação com Macau, resume em poucas palavras, emprestadas de uma língua estrangeira: “There is no place like your own home”.
Mariana Palavra
Fotografia: António Falcão/ bloomland.cn
Fotografia: António Falcão/ bloomland.cn
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