quarta-feira, 19 de setembro de 2007

Os dias da Rádio


Fórum na Ou Mun Tin Toi, o canal chinês de rádio

Quem fala assim é de Macau

Há oito anos que Chan Kam Fei, uma dona de casa chinesa que mora na Taipa, sintoniza o canal chinês da Rádio Macau, em 100.7 FM, todos os dias de manhã.
Por volta das sete e meia liga o aparelho que tem na sala e por lá fica, “sintonizada” até às dez e meia, altura em que sai à rua para as voltas do costume, com uma paragem obrigatória no mercado municipal da ilha para a compra. Tem de preparar o almoço da família.
O que a faz ouvir a rádio não é a música nem a informação. É o programa Fórum Macau, “Ou Mun Kong Cheong”, onde nos últimos meses o tom crítico em relação ao Governo subiu. O programa, que foi para o ar a 1 de Janeiro de 1999, é hoje um dos raros barómetros da sociedade chinesa e macaense de Macau.
De tudo se fala. As chamadas dos ouvintes são emitidas em directo e pequena é a “rede” de segurança dos seus quatro apresentadores sentados no estúdio da Avenida Dr. Rodrigo Rodrigues, rodeados de jornais chineses. “Por vezes há mesmo palavrões no ar!”, afirmou a senhora Fei do alto dos seus 45 anos, mãe de dois filhos. “Oiço todos os dias porque me interessa saber o que as pessoas dizem”, acrescenta.

“Houve um membro do Governo que ligou uma vez para corrigir uma informação que tinha sido dita no programa. Um outro ouvinte ligou para dar os bons dias”.
Chan Si Ka, assistente de produção

A senhora Kam Fei acredita em tudo o que é dito no estúdio porque “o Fórum Macau é um programa em directo, como poderiam eles enganar as pessoas?”.
O programa começa às oito em ponto, com as notícias da manhã. O momento mais nobre do canal.
Iu Veng Ion e Cheang Kok Keong, as duas “estrelas” fundadoras do programa, são conhecidos em toda a cidade, pelo menos por onde se fala e entende cantonês: “Como é que não os conhecemos?”, afirma Glória, uma jovem chinesa que trabalha numa associação local. “Estão todos os dias na rádio, falam com toda a gente”.
No estúdio existem ainda duas vozes femininas, que vão rodando. Uma delas diz as horas e o estado do tempo, a outra é produtora da redacção do canal chinês da Rádio Macau.
O programa levanta questões, analisa a imprensa diária e coloca nas “ondas hertzianas” os temas quentes do dia. Normalmente os ataques são feitos ao trânsito “caótico”, à falta de lugares para o estacionamento ou ao “estado da saúde” em Macau.
Recentemente, os casinos dominaram o tempo de antena e ainda mais recentemente o caso de corrupção que levou à detenção do antigo secretário para as Obras Públicas, Ao Man Long. “A vida está cara, os preços aumentaram, se não for na rádio, onde podemos falar dessas coisas?”, questiona Fei, que não lê muito os jornais e diz não ter tempo para a televisão. “Na rádio fico a saber tudo”. Não há dúvida de que é fã do programa.
Os dois apresentadores-estrela que para o público só têm “voz” consideram-se “opinion makers” em Macau: “Sim, diz Iu Veng Io, muitas vezes sentimos que temos uma forma de ver a sociedade e transmitimos essa visão. É um passo em frente, se calhar por isso marcamos a agenda”.
Uma agenda que encontra eco na imprensa em língua chinesa que se publica em Macau e, por vezes, até na portuguesa: “A população de Macau está habituada a que o programa dê em primeira mão muitos dos assuntos importantes que as pessoas desconhecem. Esses temas são depois debatidos por todos”, concluiu Iu, que é presidente da Associação de Cultura Juvenil de Macau.
Chiang Kuok Keung é académico, presidente da Associação para Protecção do Património Histórico e Cultural de Macau e presidente da Associação Promotora de Media de Macau, reforça a explicação com exemplos: “A história da demolição da Casa Azul fomos nós que demos em primeira mão. Nós lançámos o tema”. Iu aguarda impaciente a sua vez: “Nós também lançamos a discussão em torno da pneumonia atípica em Macau!”.
E a reacção dos ouvintes? “Existe mais abertura para o diálogo agora”, afirmou Iu. Em que sentido? “A população pensa que, havendo um governo local, pode haver mais diálogo, pode falar, sente que é ouvida”. Cheang completa o pensamento: “Para além disso, agora, e devido ao desenvolvimento económico e às diferenças sociais, há mais temas e problemas para debatermos”.
E as autoridades locais, como reagem a eventuais críticas no vosso programa? Cheang pondera as palavras: “Muitos departamentos aceitam, agora, responder às nossas questões. Já o fizeram. Até podem não dizer nada, como já aconteceu, mas respondem.” Iu aproveita para lançar um repto: “Queríamos muito falar com os quadros mais altos, mas até agora não passámos de directores de serviço”.
O estúdio está dividido em duas partes: a sala onde estão os apresentadores do programa e a sala onde está o técnico de som e Chan Si Ka a “menina” que recebe e filtra os telefonemas.
Uma enorme janela divide as divisões. Os telefonemas são anunciados através de folhas A4 que Ka cola ao vidro. Aos apresentadores basta ler o papel para saber o nome do interveniente e o tema. “Por dia recebemos uns 20 telefonemas, por vezes de ouvintes muito zangados. Há também aqueles que não têm nada para dizer, apenas querem companhia, e quando estão no ar falam muito. A esses temos de cortar a linha...”, afirma Ka, com um sorriso enorme.
Há um ano que trabalha com a equipa do Fórum Macau. Pode não ser o trabalho mais interessante do mundo, mas “é muito divertido”, confessa.
Quando rebentou o escândalo Ao Man Long o programa recebeu mais de 100 telefonemas. “Um recorde”, garante. Alguns momentos curiosos que Ka recorda: “Houve um membro do Governo que ligou uma vez para corrigir uma informação que tinha sido dita no programa. Um outro ouvinte ligou para dar os bons dias”.
No dia em que o Tai Chung Pou em Portguês foi ao estúdio onde decorre o Fórum Macau não teve a “sorte” de assistir a um dia “quente” de programa. Os ouvintes ligavam para se queixar da falta de táxis em Macau. Um chegou mesmo a denunciar um taxista que se recusou levá-lo por ser um percurso curto. O ouvinte afirmou que até chamou a polícia, mas o agente terá dito que não pertencia ao departamento responsável pela questão. “O que fez?”, perguntaram do estúdio. “Acabei por me rir de tudo isto, é assim que se desenvolve a cidade...”
Joyce Pina
Fotografia: António Falcão/bloomland.cn


Hélder Fernando, produtor e realizador da Rádio Macau

Pelo interior da pele

Anda há mais de quarenta anos à procura da resposta, mas os dicionários são sempre limitados quando se procuram palavras para definir muitas coisas. É isso que a rádio é, “são muitas coisas”, é “a paixão da vida” dele. E as paixões são sempre difíceis de descrever, de justificar, de perceber. “A rádio é aquilo que me dá a vida, às vezes dá muita dor”.
Hélder Fernando dispensa apresentações. Alguns nunca lhe viram o rosto mas adivinham quem é só pela voz. É uma daquelas vozes radiofónicas, profundas, bem colocadas, pertencente a uma espécie quase em vias de extinção. Todos os dias, ao longo de anos, num estúdio ali na Avenida Dr. Rodrigo Rodrigues, fecha a porta que deixa o barulho da rua do lado de fora. Carrega num botão, o sinal “no ar” aparece, o microfone está ligado e assim faz o exercício nunca solitário de dar alma à rádio.
A rádio dá muita dor mas não tem culpa, “é a maneira como as coisas são geridas dentro das rádios”. “Mas vale a pena, porque é um estado de espírito”, garante. A rádio é a liberdade também, “é nós conseguirmos passar a mensagem sem estarmos preocupados com o penteado ou com a gravata que está mal colocada”, lança. Um despojamento que se ensina aos que se convidam para a antena. “Os escritores, os poetas, os músicos, os cientistas, aqueles que nós trazemos para o estúdio, para eles próprios também passarem as mensagens, também se vêem despojados dessa necessidade que a televisão tem, por exemplo, de parecerem melhor”.
E tudo isto leva Hélder Fernando a concluir que “a palavra é a coisa mais importante que o ser humano tem”. A rádio é essencialmente palavra, “o exercício da palavra ouvida e da palavra dita”. “É a maior de todas as paixões”, sorri.
A rádio, que “é uma mulher, indiscutivelmente” apareceu na vida de Hélder Fernando quando tinha 17 anos, no teatro radiofónico em Moçambique, no Rádio Clube, com Sara Pinto Coelho. Seguiu-se a Rádio Universidade e produtoras privadas na então Lourenço Marques. Após o 25 de Abril de 1974, o jovem jornalista torna-se elemento efectivo do Rádio Clube de Moçambique, “porque até lá a juventude não podia entrar para os quadros, que eram dominados pelo sistema”.
Foi em Moçambique, nesses primeiros tempos de vida radiofónica, que ganhou a componente multifacetada ao microfone. “A gente fazia tudo, reportagem, notícias, programas, entrevistas, programas ao vivo”. Eram tempos de emissões activas, de uma “rádio muito directa”, com poucos programas gravados. O Rádio Clube de Moçambique tinha então “três canais em língua portuguesa, nove canais em dialectos locais e um em língua inglesa”.
Da terra de onde considera ser natural - porque embora nascido em Lisboa deixou a capital com apenas um mês de idade -, Hélder Fernando recorda ainda o teatro radiofónico e depois a independência, “todas aquelas reportagens antes e depois dessa transformação de Moçambique a que assisti”. Pouco tempo depois, em 1975, foi para Portugal. Foram oito anos de jornalismo na Antena 1, na Rádio Difusão Portuguesa, até Macau aparecer no mapa de vida, em 1983.


“Isto é um bocadinho meu, aqui vou amando, aqui vou chorando muitas vezes e aqui tenho grandes alegrias [...] é uma terra que é a minha terra, por dentro da pele e não à flor da pele”.

Macau não começou de maneira óbvia, começou em onda curta. Três meses depois de cá ter chegado, para “profissionalizar o jornalismo” que se fazia nestas bandas do império, foi exonerado das suas funções. “A administração saiu, saí eu e muitos camaradas que tinham vindo na altura comigo, como o caso do Adelino Gomes, que é um paradigma”, conta. Ao contrário dos restantes jornalistas que vieram para o território, Hélder Fernando decidiu ficar, a trabalhar na imprensa, no então semanário Tribuna de Macau.
Seguiram-se três anos sem rádio, sem olhar para o relógio e contar os segundos que faltam para a hora certa. Foram os piores de todos. “Quando estive de 1983 a 1986 sem fazer rádio, sei aquilo que sofri. Não foi só por esse motivo, mas foram os piores anos de toda a minha vida”, deixa escorregar. “Coincidindo ou não, foram os anos em que não fiz rádio”.
O regresso à paixão da vida dele fez-se através de um convite de António Duarte, que “deixou de ser assessor de Carlos Melancia para ser director da Rádio e pediu-me para dar formação a uma série de pessoas que foram trabalhar para a televisão, que tinha começado em 1984.” O convite foi alargado para fazer um programa ao fim de tarde, das 6 às 8.
O tempo da rádio corre mais depressa do que o da rua e, um ano depois, em 1987, Hélder Fernando volta para a Teledifusão de Macau, desta feita como funcionário. Deixou para trás o Gabinete de Comunicação Social (GCS), onde era chefe do departamento de Publicações, a sua “passagem pelos corredores de algum poder”. Dessa etapa ficou a Revista Macau, que criou e dirigiu nos primeiros números, “quando era toda feita no GCS, incluindo a parte gráfica, e impressa na Imprensa Oficial”.
O homem que diz não conseguir imaginar-se a deixar de fazer rádio não esconde o que está atrás do microfone. O que é que se sente quando faltam dois segundos para entrar no ar? A resposta desdobra-se em duas. “Sinto uma grande alegria por ligar o microfone e dizer ‘boa noite’, ‘boa tarde’ ou ‘bom dia’, é como se estivesse ao pé de um ente querido”.
Depois, confessa sentir também “um profundo medo de não agradar às pessoas, de dizer-lhes coisas que não querem ouvir, de passar músicas ou de entrevistar pessoas que elas não querem ouvir”. Uma sensação agravada pelo “desconhecimento de quais são as preferências do auditório em Macau, porque ninguém sabe quais são, não sei para quantos é que estou a falar, que idade é que têm, onde é que me ouvem, em que condições me ouvem, o que é que pretendem ouvir”. Tem “uma sensação de abismo diária, isso é uma realidade” para a qual contribui (também) a inexistência de estudos sobre o auditório em língua portuguesa. “É todos os dias uma prova de fogo que eu e os meus companheiros de trabalho temos que enfrentar. Mas isso faz parte do risco desta alegria imensa que temos em comunicar”.
Há quase 25 anos em Macau, Hélder Fernando tem uma relação especial com os ouvintes, aquela que só o tempo e a dimensão do espaço permitem cultivar. Em Moçambique o auditório perdia-se no tamanho do país, em Portugal a rádio era nacional, aqui é “uma rádio de proximidade”. “A minha relação com o auditório de língua portuguesa que escuta a Rádio Macau, não só os meus tempos de antena, é uma relação de grande carinho, de grande emoção”.
As novas tecnologias vieram ajudar à comunicação entre quem está dentro do estúdio e quem sintoniza a 98 FM. “Permite-nos receber manifestações de carinho por todas as formas. Isso eu nunca esqueço todos os dias, porque todos os dias tenho manifestações de grande carinho”, diz, com ternura na voz. “Não deixo de responder a nenhum e-mail e termino sempre -principalmente àqueles que me escrevem pela primeira vez, com uma grande generosidade -, pedindo que me digam também quando não concordam comigo”.
A relação com os ouvintes muda conforme as características do potencial auditório. Esta parte de Macau, hoje e agora, é mais comunicativa que noutros tempos, porque “há pessoas que chegaram recentemente e têm hábitos de comunicar com a rádio, que é uma coisa que os antigos foram perdendo”, depois de épocas distantes em que a relação era de grande intensidade. “Temos passatempos na rádio em que a participação tão simpática e tão generosa das pessoas – e não é por causa dos prémios, que são simbólicos – se prende exactamente por quererem comunicar”. O homem que ama a rádio diz que isto lhe enche de “felicidade e entusiasmo” e lhe dá “uma alma nova todos os dias”.
Embora a rádio seja o meio onde encaixa, aquele que a perspectiva de deixar traz dor, o jornalista que se diz “desactivado” nunca deixou de escrever em jornais. No Hoje Macau, tem há anos uma crónica semanal que dá pelo nome de “À Flor da pele”, um exercício de análise e de reflexão sobre vários universos, o de dentro e o de fora.
É a relação com Macau à flor da pele? “Não, é ao contrário do título do espaço, a minha relação com Macau é mesmo pelo interior da pele”. Hélder Fernando explica: “Sou moçambicano e não fui criado numa grande cidade, até aos 18 anos vivi numa pequena vila. Vim de quase 29 anos de Moçambique e tenho quase 25 de Macau”. Diz já sentir esta terra “como proprietário emocional deste espaço, isto é um bocadinho meu, aqui vou amando, aqui vou chorando muitas vezes e aqui tenho grandes alegrias”, que é como quem diz “é uma terra que é a minha terra, por dentro da pele e não à flor da pele”.
A conversa volta sempre à rádio que Hélder Fernando ama e que “é uma mulher”, o não significa que seja uma mulher bonita. “Já gostei muito de mulheres que não eram propriamente bonitas”, e surge a metáfora com o espaço, “eu gosto muito de Macau, que não é uma terra particularmente bonita, tem uma beleza que entendi que ela devia ter e é uma beleza de mulher”. Com um só fôlego, diz que “é uma terra cada vez menos elegante, não há uma cor de pele desta mulher que é Macau, como não há uma cor da pele da mulher rádio”. É “feminina, emociona-me muito quando falo de Macau, não sei se é bonita, o termo é redutor, mas é uma mulher fantástica”.
Faltam poucos minutos para o fim, não tarda nada desliga-se o microfone. À conversa vem o episódio de quando Hélder Fernando emprestou a voz, em 1999, a um sinal horário há muito anunciado. “É meia-noite em Macau”, anunciou sem surpresa mas com uma imensa solenidade, para outra voz, logo de seguida, anunciar a criação da Região Administrativa Especial. É um som que a Rádio lembra sempre, por altura de 20 de Dezembro. No outro de 99, não se imaginava que agora fosse assim, essa é a surpresa. Hélder Fernando olha agora para “os companheiros e companheiras de profissão”, metade deles pós-RAEM, e esse olhar “diz-lhe das coisas profissionalmente mais importantes na vida”.
“Assiste-se hoje a uma profissionalização, com as pessoas que chegaram nestes últimos anos. Vejo com muito carinho a vinda de jornalistas - de comunicadores, se quisermos - para os jornais, para a rádio e para a televisão. Oxalá que não só essas pessoas se mantenham como venham outras e que haja um ciclo permanente de novo sangue”, desafia. “É que faz falta a esta terra ter novos olhares sobre ela e não olhares cristalizados como aqueles que corremos o risco de ter, nós que estamos cá há 20 anos,” alerta o homem que veio profissionalizar a Rádio Macau e dar formação a então jovens potenciais jornalistas. “Tenho aprendido com os meus companheiros de trabalho a observar Macau de uma maneira muito mais rejuvenescedora e, se calhar, muito mais objectiva”. É assim, o homem da rádio, pelo interior da pele.
Isabel Castro
Fotografia: António Falcão/bloomland.cn

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