domingo, 16 de setembro de 2007

Para o corpo e para a alma


Co-produção sino-canadiana no Centro Cultural de Macau

As flores que Lu Xun fez nascer

Passaram por Macau há três anos, com um espectáculo construído a partir de Chekhov, e a reacção do público fez com que tivessem vontade de voltar. Depois de passagens por Paris e Xangai, a próxima estação é o Centro Cultural de Macau, já este mês, nos dias 20 e 21. Desta feita, a inspiração literária que deu origem à criação artística de Dean Gilmour e Michele Smith, fundadores do Teatro canadiano Smith-Gilmour, é a obra de Lu Xun, um dos maiores escritores chineses do século XX. “Lu Xun em flor” não foi só buscar à China a base literária: três dos seis actores integram o Centro de Artes Dramáticas de Xangai.
“Em 2004, quando apresentámos a nossa peça sobre Chekhov no Centro de Artes Dramáticas de Xangai, o produtor artístico do Centro, Nick Yu, desafiou-nos para criarmos e dirigirmos uma peça a ser co-produzida pelas duas companhias”, contou Dean Gilmour em entrevista ao Tai Chung Pou. “Decidimos de imediato que o material para esta nova criação deveria ser a partir de um escritor chinês, porque estávamos muito interessados em explorar a literatura chinesa enquanto fonte para a criação artística em teatro”.
Após vários meses de pesquisa e muita literatura antiga e contemporânea, os encenadores canadianos optaram por Lu Xun. A escolha faz sentido no próprio percurso da companhia canadiana, é uma espécie de prolongamento do trabalho feito. “Descobrimos várias semelhanças entre a escrita de Chekhov e de Lu Xun: ambos têm um sentido de humor fantástico e escrevem sem sentimentalismos”, referiu o encenador. A obra de Lu Xun permite ainda explorar o tipo de linguagem que a companhia canadiana emprega desde o início do seu trabalho, em 1980, “uma linguagem que apoia e contextualiza as palavras”. A co-produção com o Centro de Artes Dramáticas de Xangai é, assim, “uma grande oportunidade para nós, no sentido em que nos permite continuar a pesquisa que deu origem ao nosso projecto”.
Gilmour e Smith acreditam ter sido capazes de criar a ponte entre as linguagens cénicas ocidental e oriental. “Lu Xun acreditava na importância de lembrar o passado, que a mudança e a possibilidade de haver um futuro melhor dependem da nossa capacidade de olhar para o passado e de o compreender”, começa por afirmar o director da companhia canadiana. “Em Lu Xun, encontramos uma China anterior à revolução, em que se dirige a um público chinês e lembra o passado. Para um público estrangeiro é difícil perceber os pequenos detalhes da cultura chinesa. No entanto, há uma universalidade em Lu Xun, que qualquer pessoa pode compreender, independentemente da cultura onde esteja inserida”.
Este código universal de Lu Xun deixa a companhia canadiana com grandes expectativas em relação ao público de Macau. “O tipo de teatro que fazemos não é muito comum em Macau, mas encontrámos um público que apreciou muito a nossa peça de Chekhov, pelo que esperamos que com ‘Lu Xun em flor’ haja de novo esta ligação com o público. O público de Macau poderá ver história do maior escritor chinês, interpretadas por um grupo internacional de actores, chineses e canadianos”, destaca o encenador. “É também uma oportunidade rara para ver teatro que desafia a nossa percepção da cultura e do próprio teatro”, desafia.
Em jeito de remate, Gilmour frisou ao Tai Chung Pou que, para os actores que dirige, “a arte deverá ter como objectivo tornar as pessoas mais abertas e tolerantes e o teatro apela à capacidade que o público tem de ver e ouvir com o coração”. Quanto a Lu Xun, permite “focar a essência dos seres humanos”, que na versão em flor, assumem as formas de homens, mulheres, idosos e crianças, nos corpos de actores de diferentes culturas e linguagens, mas com o objectivo único de contar as histórias que o escritor chinês soube perpetuar.


“Há uma universalidade em Lu Xun, que qualquer pessoa pode compreender, independentemente da cultura onde esteja inserida”
Dean Gilmour, encenador


O modernismo nasceu assim

Escritor, ensaísta, crítico e teórico, Lu Xun é considerado não só uma das grandes figuras da literatura da China do século XX como o pai do modernismo literário do país. A Ocidente, Lu Xun é conhecido, sobretudo, pelos seus contos, traduzidos em mais de uma dúzia de idiomas, reunidos em três colecções que datam do período entre 1923 e 1935. É também o autor de ensaios, prosa poética e de cerca de sessenta poemas escritos ao estilo clássico, uma dúzia de volumes de pesquisas e inúmeras traduções.
Lu Xun (Zhou Shuren) nasceu em Shaoxing, na província de Zhejiang, em 1881, no seio de uma família nobre mas falida, onde recebeu uma educação tradicional. No início do século XX, partiu para o Japão para estudar medicina, mas acabou por se entregar completamente à escrita, corria o ano de 1906. Ainda em Tóquio, editou o jornal “Nova Vida” e contribuiu com ensaios para o jornal comunista Henan, algumas vezes em colaboração com o irmão Zhou Zuoren. O regresso à China aconteceu em 1909, para dar aulas em Hangzhou e Shaoxing, tendo integrado o Ministério da Educação em Pequim entre 1912 e 1926. Foi professor universitário em várias instituições do país.
A primeira obra publicada data de 1918, com o “Diário de um louco” a ser dado a conhecer num jornal que viria iniciar a revolução intelectual. Lu Xun foi o membro fundador de uma série de organizações politicamente colocadas à esquerda e um dos líderes do Movimento de 4 de Maio, que lutava então contra o imperialismo na China e reclamava o modernismo, a liberdade de crítica social e o espaço para a arte, livres do espartilho da tradição.
O “Diário de um louco”, de estilo vernacular e escrito na primeira pessoa, é considerado o primeiro conto ao jeito ocidental, tendo conquistado espaço para que as histórias curtas passassem a ser um meio efectivo de comunicação. Lu Xun quis evitar a narrativa tradicional e adoptou um plano objectivo na construção das suas histórias. Pouco depois, o escritor apresentou “A verdadeira história de Ah Q”, que viria a ser o seu conto mais célebre, uma narrativa em torno de um camponês ignorante que experiencia uma série de humilhações que interpreta como vitórias, sinal de uma grande falta de auto-consciência, e que acaba por ser injustamente executado durante a revolução republicana de 1911. Se por um lado o autor revela a fraqueza de vontade de Ah Q, demonstra, por outro, simpatia pela personagem. Lu Xun tentou, com uma alegoria, mostrar que a China não estava preparada para lidar com impacto da cultura ocidental e da tecnologia. Noutras obras, Lu Xun incide no contraste entre a hipocrisia da classe de intelectuais e o sofrimento dos mais pobres. Mas o valor da sua escrita alarga-se a outros trabalhos que fez, alguns deles a quatro mãos com o irmão Zhou Zuoren: a tradução para chinês de obras de Leonid Andreyev, Guy de Maupassant e Henry Sienkiewich.
Referindo-se ao conjunto da sua obra, a semióloga brasileira Maria Luíza Franco Busse destaca, em forma de síntese, que “a revolução literária encabeçada por ele [Lu Xun] pretendia erradicar a superstição, disseminar a ciência, introduzir a literatura ocidental e reabilitar a literatura clássica chinesa em língua vernácula”. Quanto ao papel da literatura no processo de transformação da sociedade, o próprio Lu Xun deixou-o bem claro num ensaio divulgado em 1930: “Não se supõe que a literatura seja apreciada somente por algumas pessoas de talento em detrimento dos que tenham nascido sem talento. Se a norma é: a maior qualidade, menos pessoas que apreciam as obras, então os escritos que ninguém entende deveriam qualificar-se como obras-primas”.
Participante activo de debates literários nas décadas de 1920 e 1930, foi patrono de jovens escritores, sendo que alguns deles viriam a conhecer a fama. No início dos anos 20, começou a interessar-se pelo marxismo, mas desapontou o movimento comunista ao recusar uma adesão formal. O envolvimento no movimento patriótico estudantil de 1926 não foi bem acolhido pelo governo e abandonou Fujian, onde se encontrava. Depois de passagens rápidas por algumas cidades, encontrou o ambiente que procurava em Xangai. Em 1933 contraiu tuberculose, doença à qual não resistiu. Morreu a 19 de Outubro de 1936, aos 55 anos. Dois anos depois, as obras de Lu Xun foram editadas em vinte volumes. Continua a ser muito lido na China e uma referência para os mais jovens.

Isabel Castro




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