sexta-feira, 14 de setembro de 2007

Casa do Mandarim em debate


Carlos Marreiros explica importância da Casa do Mandarim

Para lá das paredes

Não é invulgar encontrar turistas desorientados lá para os lados do Lilau, de guia turístico na mão, à procura da Casa do Mandarim. O monumento foi considerado pela UNESCO como património mundial, há já dois anos, mas encontra-se fechado ao público por estar a ser alvo de uma complicada intervenção de restauro. Quem faz turismo em Macau fica desapontado com os toldos e ruma a outro ponto de interesse. Daqui a uns meses a história será outra.
As autoridades dizem estar para breve o cair do pano que cobre a casa onde viveu o mandarim Zheng Guanying, construída em 1881, exemplar da arquitectura chinesa tradicional do sul da China, enriquecida por elementos de influência portuguesa. Quando as portas se abrirem, o mais provável é que parte da casa seja parcialmente ocupada por um hotel-boutique, sendo o restante espaço destinado a um centro de pesquisas e um núcleo museológico sobre o mandarim que a habitou.
Zheng Guanying nasceu em 1842 na província de Guangdong e é considerado um dos mais influentes pensadores da China moderna. Mais de setenta anos depois de ter sido construída, o ambiente intelectual e artístico da casa, composto por vários pavilhões, desapareceu. Nos anos cinquenta, período atribulado do mundo ao qual Macau não passou impune, a casa foi arrendada a vários inquilinos, com algumas centenas de pessoas a pernoitarem nos 3997 metros quadrados do complexo.
“Durante a década de 90, a administração portuguesa tentou adquirir o imóvel, considerado património desde 1996, mas não foi bem-sucedida”, lembra o arquitecto Carlos Marreiros. Em 2001, o Governo da RAEM conseguiu comprar o edifício, que tem estado desde então em obras de restauro.
Chang Sam Ku é uma observadora atenta do vai-e-vem na Casa do Mandarim. Residente na zona do Lilau, Chang teve o privilégio de conhecer bem o espaço, noutros tempos, pois habitou, enquanto jovem, o refúgio outrora de Zheng Guanying. Agrada-lhe a ideia de que a Casa volte a ser habitada, ainda que temporariamente e por turistas, uma opinião que, disse ao Tai Chung Pou, transmitiu “a um técnico do Instituto Cultural que esteve a fazer uns inquéritos aos residentes desta zona sobre o hotel-boutique”.
“É uma forma de permitir que as pessoas saibam o que é viver numa casa tradicional chinesa”. Será em melhores condições que aquelas que Chan conheceu, quando “a casa não tinha sequer instalações sanitárias condignas”. A ex-habitante do espaço confessa alguma ansiedade para ver o resultado final das obras.
Como já passaram seis anos da aquisição do imóvel pelo Governo, há quem levante questões sobre um tão prolongado trabalho de restauro. Carlos Marreiros explica a complexidade da tarefa: “A arquitectura chinesa é bastante perecível, porque utiliza muita madeira. Em Macau utilizava-se a alvenaria de tijolo, pedra e madeira. Neste caso, a madeira deve ocupar 35 por cento da estrutura, o que cria problemas como formiga branca e humidade”.
O restauro “é difícil e demorado” e está a ser feito por técnicos do Instituto Cultural, com o apoio da Universidade do Sul da China, que faz a peritagem. “As obras estão a ser bem feitas”, atesta o arquitecto. “Tem que ser feita a substituição e restauro do madeiramento das coberturas dos telhados, das portas, das vigas e de toda a estrutura dos pavimentos. Depois, o tijolo azul tem que se lavado, o que leva muito tempo”. Existem ainda “os chamados altos-relevos e os frescos feitos em estuque, policromados, restaurados com um pequeno pincel, para pormenores como os olhos dos pássaros”.
O estado em que a Casa do Mandarim estava quando foi adquirida em nada ajuda, “porque esteve abandonada durante muito tempo e parcialmente incendiada por descuido de toxicodependentes e sem-abrigo que faziam lá as suas casas temporárias”. As voltas que a Casa teve fizeram com que tivesse desaparecido o espólio móvel, algum destruído outro vendido, como “os dísticos de madeira, com inscrições auspiciosas e máximas confucianas que estavam nas paredes”.
Para Marreiros, vale a pena a aposta na recuperação do edifício. A Casa do Mandarim foi construída ao estilo do Sul da China, que “fez grande sucesso em toda a zona de Cantão mas só foi reconhecido como forma de arquitectura, de arte e de pintura nos últimos cinquenta anos”. O “encanto” do edifício aumenta por ser “mestiçado com arquitectura portuguesa”, que se denuncia no “arco de volta perfeita, na composição das fachadas, em certos pormenores de molduras e pilastras, e até mesmo nalguns capitéis”. Esta introdução de elementos ocidentais na arquitectura tradicional chinesa canónica, que “é repetitiva e muito rígida no vocabulário, no desenho e na implantação”, faz com que o edifício seja o resultado de “um exercício interessante”, conclui Marreiros.
O contexto histórico da Casa do Mandarim é outro factor apontado pelo arquitecto como uma mais-valia do imóvel. “A casa ocupa um lote muito grande, com uma enorme esplanada arborizada voltada para a antiga Praia do Manduco. Tinha vistas fantásticas do Porto Interior, com as lorchas e o bairro flutuante”. Hoje em dia, “essa relação de volumetria perdeu-se, porque há edifícios em todo o lado”.
Ainda assim, o monumento classificado pela UNESCO fica num sítio especial de Macau, o Largo do Lilau, “um dos primeiros locais povoados pelos portugueses de Quinhentos”. A casa, com uma área de grandes dimensões, é organizada em torno de pátios. “A arquitectura chinesa não é composta por um corpo, é um conjunto de edifícios pequenos, vários pavilhões articulados por pátios, quer sejam templos ou habitação”.
Por último, mas não menos importante, a Casa do Mandarim adquire um valor adicional pelo facto de ter sido habitada por “aquele que será, talvez, o único escritor e pensador chinês da época que viveu em Macau com uma grande importância para a China”, Zheng Guanying. Uma figura histórica para conhecer melhor na edição de amanhã.

Alice Kok e Isabel Castro


Treinador de futebol brasileiro fala de experiência em Macau

Herói de pais e filhos

Tudo começou apenas com um aluno. Josecler ainda se lembra do seu primeiro dia como professor na escolinha de futebol. Hoje, os “garotos” ao seu comando já ultrapassam o número cem. Durante cinco dias da semana, dentro das quatro linhas do relvado, o residente brasileiro passa as tardes com os pupilos de Pelé para os ensinar a “tocar na bola”. “Pelo futebol, ia até à China”, já dizia nos tempos de adolescente. “E não é que vim justamente cá parar?”, brinca, sempre sorridente.
O sotaque nordestino ainda se nota ao pronunciar algumas palavras. Com seis anos de idade, Josecler, começou a dar os primeiros toques na bola. Dez anos mais tarde fez do futebol profissão. “A minha história começou em São Paulo, no Noroeste Club, onde eu joguei três anos”, recorda.
Ao descrever as suas características de jogador, os olhos ainda se enchem de brilho. Estreou-se na posição de lateral direito. “Ali junto à ala direita”, fala com as linhas do relvado desenhadas ao milímetro na memória. Com o tempo, tornou-se um atleta polivalente com a força, a agressividade e poder de reacção a dominarem sobre a criatividade. “Tudo o que o treinador me pedia eu dava conta do recado”, remata.
De repente, os problemas de dinheiro surgiram ao ataque e os sonhos de menino estavam sozinhos à baliza. Josecler despertou o interesse dos clubes “grandes”, como o Corinthians e o Flamengo. “Foram as melhores oportunidades da minha vida, mas não chegaram a ser concretizadas. Não por falta de potencial, mas por meios financeiros”, lamenta.
Foi então tempo para as substituições. Saiu o Brasil, entrou a China. Mais concretamente a RAEHK. Em 1996, um empresário brasileiro radicado no território vizinho viajou para Terras de Vera Cruz à caça de talentos. “Foi parar a Bauru [no Estado de São Paulo] e começou a observar os treinos e, a partir daí, surgiram os contactos para vir para Hong Kong”, recorda. Ao chegar à então colónia inglesa, defrontou-se com mais uma adversidade – a transferência do passe de jogador.
A espera pela resolução do problema foi feita em Macau. “A estadia ficava muito mais barata aqui”, explicou. Entretanto, o passe foi “liberado”, integrou uma equipa da liga de Hong Kong, mas já não largou a região. “No correr de todos estes acontecimentos, acabei por ficar por aqui mesmo, né?”.
A travessia de jetfoil começou então a ser o “corre-corre” de Josecler. Ao longo de três anos, conheceu o balneário de várias equipas de Hong Kong. Para a prosperidade, ficou o título de campeão e a subida à primeira divisão. No entanto, clube e jogador tinham ambições distintas. “Como não éramos um clube grande como o South China, então passámos o campeonato a lutar para sobreviver e para não descer”, lamentou.
As questões financeiras foram sempre uma sombra na sua carreira. Tempos de crise começaram a fustigar o futebol de Hong Kong. “Aí é claro que não dá para sobreviver. É preciso ter um bom salário para conseguir garantir um futuro”, defende.
Deu ordem de expulsão ao clube e só voltou a calçar as chuteiras em Macau. De olhos mais abertos para a vida, concluiu que o futebol é uma profissão com um prazo muito curto. “Adquiri uma posição aqui e escolhi este sítio para refazer a minha vida, com ou sem futebol”, contou.


“As crianças tocam no meu lado mais positivo, porque elas amam o futebol de verdade”

Na RAEM, bateu-se apenas pelas cores de um clube, onde foi campeão três vezes consecutivas. “Tenho 35 anos e até ao ano passado ainda fiz a temporada no Monte Carlo”, informa sem esconder o orgulho. Na mesma altura, há cerca de oito anos, segundo o brasileiro, Macau não tinha futebol infantil. Era uma oportunidade de golo e Josecler chutou mesmo no centro da baliza.
“Comecei no Sport Macau e Benfica (SMB) com apenas um garoto. Ainda me lembro de ver chegar o David, depois surgiu o Diogo, os amigos deles e agora a gente está trabalhando com um número elevado que fica na média dos 100”, exclama como se ainda lhe parecesse difícil de acreditar.
De segunda a sexta, divide-se por várias turmas e tem que “administrar bem as horas” para assistir todos os seus alunos. Às 17 começa com os mais pequenos, dos cinco aos dez anos. Uma hora depois, tem os “maiorzinhos”, a partir dos 12 anos de idade. Desde o ano passado, a tarefa tornou-se mais difícil após abraçar um projecto pessoal no Clube de Futebol Macao Brasil.
A anca direita pregou-lhe uma rasteira e fez Josecler agarra-se ainda mais a formação de jogadores. “O ano passado deve ter sido o meu último ano em competição. Por enquanto posso dizer que pendurei as chuteiras, porque a lesão que eu tenho é séria. A força não é a mesma de antes e já não tenho tanta vontade”, confessa. Com a International School, o brasileiro sonha ver uma equipa de garotos a vestir a camisola com as cores do seu país.
“Quero correr atrás das coisas sem intermédio de ninguém. Hoje não temos material, nem sequer coletes para treino ou mesmo ajuda para o aluguer do campo. Vou fazer os possíveis para que isso seja uma realidade”, promete.
Actualmente, o treinador trabalha nos relvados com crianças de todas as nacionalidades. Em português ou inglês, é notável o jeito como se entende com os jogadores em miniatura. O segredo é bem brasileiro. “Treinar crianças é um jogo de cintura, como a gente fala. É como se a gente estivesse a sambar”, salienta.
É preciso ter jeito, diz. Falar “grosso” quando tem que ser, mas também saber “passar a mão pela cabeça” nas alturas certas são os seus conselhos chave. “As crianças têm capacidade suficiente para entender realmente o que é que uma pessoa pretende delas. São de jeito resmungão e pensam que podem fazer tudo, mas a gente consegue arranjar uma maneira simpática para lhes impor disciplina e passar a mensagem de que, naquela horinha de trabalho, eles estão ali para aprender a jogar futebol”, completa.
Nos relvados, os jogadores não o tratam por treinador ou mesmo “mister”. Josecler é o professor que os espera nos relvados depois das aulas. Com mais de uma centena de “garotos” em pulgas para “jogar à bola”, o jogo de cintura tem que servir ainda para uma tarefa mais árdua – encontrar campos e condições.
O futebol em Macau continua minado pela falta de espaço. E, depois, há ainda que fintar o tempo. “Não temos lugares disponíveis e, além disso, temos que fazer com que os horários batam com a escola. Tem que se saber conciliar muito bem o tempo”, sublinha.
No entanto, Josecler não é de desistência fácil. Nas suas mãos tem uma centena de miúdos carregados de sonhos, tal como ele tinha nos tempos em que vivia no Estado de São Paulo.
De falar doce, Josecler conquistou também a admiração dos pais. “As crianças tocam no meu lado mais positivo, porque elas amam o futebol de verdade”, sustenta.
“Os meus garotos sonham com futebol e, quando acordam, imaginam-se um Cristiano Ronaldo. O que eu lhes digo é que podem ser ainda melhores. Eles dizem: ‘Professor olhe aqui. Depois de me mostrarem o que sabem fazer, digo: ‘’tá bom, se você treinar vai conseguir melhor do que isso!’. Digo que eles podem ser grandes jogadores e excelentes pessoas”. E, como diz o ditado, “quem meus filhos ama, minha boca adoça”.

Alexandra Lages
Fotografia: António Falcão/bloomland.cn



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