O que ainda está por fazer
Macau é um dos centros estratégicos do ensino da língua portuguesa na Ásia. Contudo, há ainda muito por fazer, começando nos materiais didácticos e acabando na investigação académica. O mesmo acontece no ensino do cantonês e do mandarim para a comunidade lusófona. Quem o defende é Márcia Schmaltz, docente e académica recentemente chegada ao território.
“Embora não se fale tanto português em Macau como se imagina, a região tem um papel primordial e estratégico no contexto do ensino da língua. Há aqui uma vocação tanto ao nível académico, como na tradução e interpretação. Além disso, existem dois estabelecimentos universitários que se dedicam a esta área, logo há margem para um desenvolvimento ainda maior”, sustentou a académica.
Com uma experiência de cerca de sete anos no campo do ensino e tradução do português e do mandarim, a especialista brasileira é um dos mais recentes reforços do departamento de português da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade de Macau (UM). A viver na RAEM apenas há dois meses, Márcia Schmaltz lecciona a língua de Camões aos alunos da licenciatura de Direito. Num curto espaço de tempo, a académica bilingue detectou algumas lacunas no trabalho de quem estabelece diariamente a ponte entre duas culturas.
“Percebi que há uma carência de materiais didácticos de ensino de chinês para falantes de português”, notou. Nas palavras da docente, actualmente para uma pessoa aprender a falar cantonês e mandarim é “obrigado” a utilizar material escrito na língua inglesa. “Os manuais em português existentes são pobres relativamente aos em inglês”, acrescentou.
A mesma situação se observa ao nível dos materiais para os chineses que querem aprender a dominar a língua de Camões. A quantidade não é um problema, explicou Márcia Schmaltz. A questão prende-se com a qualidade. “Alguns têm falta de criatividade. Isto é, tanto ao nível da beleza visual como na aplicação da investigação propriamente dita.”
Qual a solução? Mais investigação e reforço dos contactos entre profissionais da mesma área, por um lado, e, por outro, a criação de centros virados para o ensino da língua como instrumento, no seio dos estabelecimentos universitários do território. São estes os dois caminhos propostos pela académica brasileira.
“Deve haver mais conferências na área da interpretação e tradução. Aqui encontramos vários académicos bilingues, mas temos que ter espaço para aplicar e desenvolver investigação no âmbito das línguas chinesa e portuguesa. Há bastante área para desenvolver e trabalho a ser feito”, reiterou.
Um exemplo a seguir pode ser o trabalho de outro organismo da UM, apontou a docente. “Temos que nos espelhar no departamento de inglês, que mantém bastante interface com a população chinesa e tem realizado bastantes estudos. Tanto na área da tradução, como interpretação e ensino”, defendeu.
Já no sector da instrução universitária, Márcia Schmaltz é apologista de uma maior abertura ao público das instituições de ensino superior, ressalvando ter ainda uma perspectiva superficial da realidade da RAEM. “As universidades devem ser um centro de ensino de chinês para lusófonos”, sublinhou.
Na visão da académica, Macau reúne todas as condições para a concretização desta ideia. “Nós temos pessoas chinesas que falam a língua portuguesa! É um sonho: ensinar chinês em português”, exclamou.
À semelhança dos estabelecimentos de ensino universitários no Brasil e noutros países ocidentais, a UM deve repensar o seu papel. É uma necessidade dos novos tempos, diz. A parte académica que se processa ao nível da investigação necessita sempre de ser conservada mas, em simultâneo, é preciso criar estruturas voltadas para dar resposta às necessidades do público em geral.
E como se pode aplicar a teoria à prática? Desenvolvendo cursos adaptados ao ritmo de vida das pessoas e com métodos de ensino da língua como ferramenta. Didácticas diferentes para exigências distintas.
“Assim, podemos dar aulas ao público que precisa da língua apenas como instrumento. Para fazer negócios ou comunicar na rua não há necessidade de saber definir sujeito e predicado, ou escrever e ler”, exemplificou. Desta forma, continuou, talvez se torne mais fácil encorajar os residentes portugueses a aprender cantonês e mandarim, e vice-versa.
Márcia Schmaltz mudou-se de armas e bagagens para Macau atraída pelo carácter híbrido do território. No futuro, a académica quer trabalhar mais ao nível das traduções na região. Uma área que tem ainda muito terreno por explorar.
A RAEM afigura-se então, para a académica brasileira, como uma base perfeita. Macau está no centro dos projectos da brasileira, no entanto, ainda não há nada definido. Falta-lhe tempo para “ganhar pé”.
“Este é um local onde encontro pessoas chinesas que falam português e vice-versa. Pretendo ainda realizar aqui um curso de doutoramento. Quero fazer a ponte entre as duas culturas, a ligação entre as duas línguas.”
Entre dois mundos
“Quando tinha cerca de cinco anos, a minha mãe chegou de uma viagem e disse que se ia casar com um chinês. Foram morar para a China, mais concretamente para Taiwan. No ano seguinte, voltou para me ir buscar.” Foi assim a primeira aventura por terras asiáticas de Márcia Schmaltz, docente e académica da Universidade de Macau.
Na Ilha Formosa, viveu seis anos e frequentou a escola chinesa. Quando regressou ao Brasil, na sequência do divórcio da mãe, foi um choque. “Acreditava piamente que era chinesa e a adaptação foi difícil”, recorda.
Na infância, quando acompanhou a mãe, mal sabia que esta viagem iria definir o seu futuro. Márcia Schmaltz nasceu em Portalegre, no Brasil, e é do signo do Rato. “Já completei três ciclos”, diz entre risos para introduzir a sua idade, 35 anos.
Durante a segunda fase da sua vida, no Brasil, nunca perdeu contacto com a antiga família chinesa. “Recebia constantemente livros e correspondência”, conta. Aproximava-se a entrada na faculdade e era necessário dar um rumo à vida profissional. Márcia Schmaltz sonhava com o jornalismo, mas o esforço não chegou “para tanto”.
“Na Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul é que fui encontrar o meu caminho no estudo da língua. Mais tarde, fiz especialização em chinês e português e fiz o curso de mestrado nos estudos de aquisição da linguagem”, resume.
A passagem do meio académico para o profissional foi mais fácil do que previa. Estávamos no final da década de 1990, altura em que as relações comerciais entre o Brasil e a China começaram a intensificar-se. “Havia uma falta de intérpretes e foi aí que me estreei”, sublinha.
As primeiras experiências de trabalho foram “apavorantes”. “Comecei logo a receber governadores das províncias chinesas. Em seguida, acompanhei o governador do meu estado, Rio Grande do Sul, à China. Não foi nada como agora, que os novatos começam com trabalhos mais simples, como tradução de cartas e acompanhamento de delegações comerciais”, destaca.
Do ano 2000 em diante, Márcia Schmaltz viveu em deslocações constantes entre a China e o Brasil. “Andava sempre de um lado para o outro com o Presidente da República brasileiro e os responsáveis dos ministérios”, nota.
Em 2003, ganhou uma bolsa do Governo Central para fazer um curso de especialização em Pequim para professora de mandarim como língua estrangeira. Três anos depois, voltou à capital chinesa para trabalhar na Universidade de Pequim, onde deu aulas de português durante dois anos e coordenou o Núcleo de Cultura Brasileira do estabelecimento de ensino universitário. Na mesma altura, realizou mais uma especialização de tradução em inglês e mandarim.
Agora é uma das novas contratações do departamento de português da Universidade de Macau. Decidiu candidatar-se quando soube que havia vagas e pretende desenvolver projectos no território, principalmente ao nível da tradução de obras. A principal função de Márcia Schmaltz na RAEM é ensinar português aos alunos da licenciatura de Direito da instituição.
Márcia Schmaltz quer contribuir para o papel de Macau enquanto plataforma entre a China e os países lusófonos. Os dois mundos pelos quais se divide a académica. “No final de contas, sou brasileira, não tenho como fugir disso. Mas sou bastante influenciada pela cultura chinesa.”
Alexandra Lages
Fotografia: António Falcão/ bloomland.cn
Fotografia: António Falcão/ bloomland.cn
Foi o último regime feudal. Vigorou durante 268 anos, de 1644 a 1912. A dinastia Qing foi a última a anteceder a era moderna. São 120 pinturas, caligrafias, livros, porcelanas e bordados que visam transportar o visitante para uma era não tão remota assim, com grande impacto na História da China. Em exposição no Museu de Arte de Macau até ao próximo domingo.
A mostra está dividida em cinco secções. Divisões que coincidem com períodos importantes da História da dinastia Qing. E para cada uma das secções, estão em exposição diversos artefactos referentes a episódios marcantes ou a meros momentos de lazer. Ao entrar no espaço que acolhe a exposição, o visitante depara-se imediatamente com uma pequena resenha histórica.
Na primeira secção, denominada “O regime Qing e a expedição sul através do estreito”, podem ver-se algumas peças, como um arco revestido com casca de vidoeiro, usado por Hung Taji, o fundador da dinastia Qing. Durante o precedente regime Ming, os Jurchens estavam divididos em três tribos. Um chefe Jurchen, chamado Nurhaci, desencadeou uma guerra de unificação em 1583, tendo acabado por morrer na guerra que se sucedeu entre os regimes Jin – do qual era fundador - e Ming. O filho Hung Taiji subiu então ao trono. Em 1636 proclamou-se imperador, fundando o regime Qing.
O que sucedeu depois foi a lenta eliminação dos redutos da dinastia Ming, tendo Hung Taiji através de uma viagem pelo sul, atravessando o Estreito de Shanhai, entrando em Pequim em 1644. Outros artefactos também usados por Hung Taji nesta conquista estão em exposição, como a sela prateada com motivos de dragão ou o capacete imperial. Entre sabres com punho de ferro e adagas com punho de osso, podem ver-se ainda o retrato da imperatriz Xiaoshang e manuscritos intitulados “Estratégias para a repressão da rebelião de Dzungar”. Sinetes ou imagens de tiro ao arco são também algumas das peças expostas.
Saindo desse período, entra-se noutra época muito importante e que é o mote da segunda secção da exposição, intitulada “Génese da época áurea de Kang-Qian”. Uma secção marcada por inúmeros retratos – do imperador Shunzhi, do 5º Dalai Lama ou mesmo da figura mitológica de Zhong Kui. Até porque foi uma época de grande prosperidade social, económica e cultural, a dos 130 anos dos reinados de Kangxi, Yongzheng e Qianlong. Foi também nessa altura que o país consolidou o território, unificando os vários grupos étnicos. O imperador Kangxi – o regente desta época - foi o grande responsável pela consolidação da soberania Qing. Foi também nesta altura que começaram a ser comuns as práticas de corrupção e a ditadura, responsáveis pela queda da dinastia.
Continuando a percorrer os corredores do museu, o visitante depara-se então com a terceira secção intitulada “A China antes e depois da Guerra do Ópio”. Ilustrações referentes a momentos de lazer como “Doze Beldades no Pavilhão Vermelho” ou um biombo de sândalo vermelho com embutidos de marfim, além dos tradicionais sinetes dos imperadores são apenas alguns dos objectos em exposição. Ou mesmo imagens do imperador Daoguang em momentos de lazer. São artefactos referentes a dois momentos decisivos da História da China: as Guerras do Ópio (1840-1842, 1856-1860). Antes da primeira guerra, durante o reinado de Jiaqing, começou o declínio da dinastia Qing. Numa época em que cresciam os problemas internos e externos, viria a subir ao trono Daoguang. E nem mesmo ele conseguiu reagir às convulsões sociais que se vislumbravam. Ansiosos por entrar no mercado chinês, os britânicos começaram a traficar ópio na China. Desencadearam-se uma série de batalhas, na sequência do confisco de ópio aos britânicos ordenado pelo imperador.
Seguiu-se então uma outra fase, a do golpe de Qixiang e ressurgimento de Tonghzi. Entre retratos do imperador Xiaozhan, estão também expostos sinetes da era imperial. Peças de uma época de transição – os reinados Xianfeng e Tonghzi. Xianfeng, antes de morrer, declarou o príncipe Zaichun o sucessor e estabeleceu oito ministérios para ajudar o príncipe na administração. Algo que não foi bem visto na altura pela imperatriz regente Cizi. Juntando-se à também imperatriz regente Ci’an encenou um golpe de Estado e as duas governaram nos bastidores. Alterou-se então o nome do reinado de Qixiang – nome dado pelo imperador – para Tonghzi. Governado por estas duas mulheres – apesar de formalmente o imperador ser Yixin, o príncipe -, a China caminhou rumo à ciência e à abertura aos conhecimentos ocidentais.
O período que assinalou o fim da era Qing deu-se com a chamada Reforma dos Cem Dias e a reforma política dos finais da dinastia Qing. E está também assinalado na exposição. Além de retratos de Zeng Guofan e do imperador Guangxu, vêem-se também vários sinetes imperiais. Artefactos que remontam à era final. Derrotado pelo Japão na primeira Guerra Sino-Japonesa em 1895, o Governo Qing foi forçado a aceitar o Tratado de Shimonoseki. Três anos depois, o imperador Guangxu iniciou a chamada Reforma dos Cem Dias que, em traços gerais, propunha a instauração de uma monarquia constitucional. Um movimento que foi contrariado pelos conservadores através de um golpe. O imperador Guangxu foi detido em Pequim, tendo os conservadores recuperado o poder. Uma série de reformas políticas, económicas, militares e culturais acabam por ter lugar apenas em 1901, depois da Batalha da Aliança das Oito Nações. Um período que resultou na modernização da China, mas também na queda da dinastia Qing.
Pela sala do Museu de Macau estarão assim, até domingo, expostos os resquícios do Museu do Palácio referentes a uma era que lançou a China rumo à modernização. Um período que abrangeu perto de 300 anos e que ficará para sempre gravado na História.
Luciana Leitão
Sem comentários:
Enviar um comentário