Uma surpresa ao virar da esquina
Picante. Insólita. Surpreendente. Três adjectivos que descrevem bem Chengdu, na província de Sichuan. A primeira impressão é a que se tem nas grandes cidades chinesas – enormes estradas de betão e viadutos de cimento desproporcionais. Mas basta perder-se um pouco a pé para descobrir a comida, as ruas tradicionais, o povo, os jardins e os monumentos. E a calma. Nem mesmo o facto de estar situada quase junto à fronteira com Lhasa, e de contar com uma grande comunidade de tibetanos, a perturba. Pelo menos, aparentemente. As surpresas ao virar da esquina na quinta maior cidade do país.
“Hello, hello” ouve-se frequentemente pelas ruas. São os habitantes locais que saúdam os estrangeiros depois de um longo olhar inquiridor. O inglês normalmente não passa disso. O que se segue são palavras do dialecto local, semelhante ao mandarim. Mas nem só de falar vive a comunicação. O sorriso está lançado e as portas da cidade estão abertas.
Em pleno centro de Chengdu situa-se a estátua gigante de pedra do antigo líder do Partido Comunista, e impulsionador da Revolução Cultural, Mao Zedong. Com a mão erguida em jeito de “estou a olhar para vocês”, a enorme figura está disposta a um nível bem superior a qualquer um dos elementos da paisagem. A poucos metros de distância, vale a pena parar para observar o espectacular estádio desportivo. Mais uma obra monumental.
Caminhando a pé, de autocarro ou de táxi – desde que esteja preparado para uma eventual condução em contra-mão -, além das inúmeras casas de chá, restaurantes e lojas que vendem bugigangas, depara-se com um trânsito caótico, a que ficam imunes as bicicletas, que circulam numa via reservada. Não raras vezes se vêem ciclistas, motociclistas e peões, impávidos e serenos, nas passadeiras, à espera que o sinal mude. E, sem medo, avançam rumo à sua via. Um cenário, no mínimo, curioso. Mas normal – e saudável - para uma cidade que é completamente plana.
Pelo caminho, encontram-se alguns militares ou civis “mascarados”. O que é certo é que, em Chengdu, existe pelo menos uma rua repleta de lojas que vendem exclusivamente uniformes, calçado e restante material militar. Para os profissionais ou para meros curiosos e entusiastas.
Por todo o lado, os cheiros. Não são maus. São bons. É o cheiro da comida. Mas cuidado. Para apreciar a comida de Chengdu – bem como de toda a província -, é preciso gostar muito de picante. E, mesmo apreciando, há que estar preparado para alguns efeitos colaterais, como ficar com os lábios dormentes, tal é a intensidade do chili e da malagueta.
Em cada rua, uma surpresa. De repente, num muro vulgar uma figura impecavelmente pintada por algum artista local. As flores e as plantas que se encontram por todo o lado. O rio claro e límpido, sem indícios de mau cheiro. Nos jardins espalhados pela cidade encontram-se pessoas a comer, a jogar às cartas, a fazer tai-chi, ou mesmo a cantar. Passeando pelas ruas, é frequente encontrar um rádio a alto volume e pessoas a dançar ao som da música. Aquelas danças tradicionais, tão características da cultura chinesa.
Não muito longe da praça central de Tianfu, vale a pena ver o mosteiro budista Wenshu, um espaço onde monges e cidadãos convivem serenamente. Sendo um espaço de oração, encontram-se vários ensinamentos budistas escritos em chinês e em inglês – caso raro – espalhados pelo lugar sagrado. Caminhando pelo mosteiro, encontra-se ainda um jardim, onde idosos e jovens praticam tai-chi, observam os animais no lago ou conversam animadamente. Saindo do espaço religioso, o visitante encontra-se num quarteirão comercial que em nada destoa do monumento. Em casas tradicionais inspiradas no mosteiro, vendem-se as sedas e tecidos de Sichuan, comida ou livros. O local ideal para comprar uma lembrança.
Partindo dali de autocarro chega à rua dos tibetanos. Um local onde se vendem recordações, tecidos e comida característica daquele ponto do mapa. Um local onde, é quase certo, se avistam tibetanos. Desta vez, dados os recentes incidentes em Lhasa, contava com policiamento extra. Carros e agentes repartiam o espaço com tibetanos e transeuntes. Ali perto, o templo Wuhou. Um local de oração onde, além das figuras pitorescas esculpidas nas plantas ou árvores cuidadosamente podadas, estão representadas principalmente as figuras do período dos Três Reinos (220 d.C. – 80 d.C.). Entre jardins lindíssimos, encontram-se ainda locais destinados à interpretação de ópera chinesa que tem lugar à noite.
Relativamente perto, vale a pena espreitar o templo taoísta Green Ram. Desta vez, ao invés dos monges, encontram-se taoistas trajados a azul escuro. E são inúmeras as bandeiras e os símbolos alusivos ao Yin e Yang e à natureza. Saindo do templo, é de aproveitar um passeio pelo Parque do Povo, onde além de casas de chá, situadas no meio da natureza, há jogos para crianças e espaços para descansar, conversar e comer.
Percorrer as ruas. Perder-se nos caminhos que rodeiam o rio. Perder-se na tranquilidade da paisagem. Quase se esquece dos viadutos de cimento e das longas avenidas com prédios altos e mosaicos não particularmente bonitos. Descobrir as árvores de bambu, as cadeiras tão características construídas com este material e os vários parques bem cuidados espalhados pela cidade. Ou os resquícios de outros tempos. É o caso do bairro tradicional atrás do Hotel Shangri-la. Quarteirões que sobreviveram à modernização. Um sítio onde impera o comércio tradicional, as ruas estreitas e animadas, os becos, as senhoras sentadas nas ruas, os pátios a servir de acesso às casas. O local ideal para capturar o tempo e obter boas fotografias.
À noite, a não perder a animação. E as surpresas. Vale a pena perder-se numa visita a Cunxi, um local interdito a viaturas, onde o transeunte pode passar pelos espaços comerciais e pelos restaurantes. Descontraidamente. E terminar a noite num dos bares da zona.
Chendgu, uma cidade de surpresas, onde o verde convive com o betão. Onde as bicicletas convivem com os automóveis. Onde as tasquinhas chinesas convivem com os restaurantes ocidentais. Onde as livrarias chinesas se misturam com as ocidentais. Onde, inesperadamente, se encontram pontos como a “Bookworm”, um espaço junto ao Consulado dos Estados Unidos, que vende livros em inglês sobre a Ásia e que serve de biblioteca, restaurante e bar. Uma agradável surpresa, ideal para terminar o dia.
O Buda Gigante de Leshan
Um Buda gigante esculpido num penhasco ou um dos grandes símbolos da China, o panda. Duas atracções nas redondezas de Chengdu, que vale a pena visitar.
Situado no sopé do Monte Lingyun, em Leshan, a algumas dezenas de quilómetros de Chengdu, está aquele que é considerado o grande orgulho da cidade e o seu ex-líbris, o Buda gigante. Listado como Património Mundial da UNESCO, e situado junto aos templos Lingyun, Tiangwang, Daxiong, até subir todas as escadas e percorrer os trilhos que vão dar ao penhasco, ainda há muito para ver. Na confluência entre o rio Dadu e o Min, além da paisagem espectacular de flores e água, destaque para as várias representações do Buda do Sudeste Asiático.
Depois de uma longa subida, e de muito exercitar as pernas, vê-se finalmente o Buda Gigante – são 71 metros de altura e só o dedo grande do pé mede 8,5 metros. Foi concebido por um monge budista chamado Haitong em 713 a.C., na esperança de que a figura viesse acalmar as perigosas correntes e proteger os pescadores. Acabaria por estar completo quase 90 anos depois da morte de Haitong. Observar o Buda Gigante de vários ângulos é obrigatório. Só assim se tem noção do seu tamanho real. Só assim se tem percepção da sua importância para a China. Passar de barco para avistá-lo também é uma hipótese.
Na terra do bambu, os pandas, outro dos símbolos da China. A poucos quilómetros de Chengdu, basta apanhar um táxi ou um autocarro e rapidamente se chega ao Centro de Pesquisa e Criação de Pandas. Um espaço que nasceu da captura de seis pandas selvagens e cujo principal intuito é preservar a espécie quase extinta, fazendo nascer, através de inseminação artificial, mais animais. O resultado é um local onde esta espécie muito semelhante ao urso, ao ar livre, alimentando-se de bambu, está separada por um fosso e um muro dos visitantes. A uma pequena distância dos inúmeros curiosos que acorrem todos os dias ao centro. Destaque ainda para a presença do chamado panda vermelho, uma espécie também quase extinta, que de panda só tem o nome, já que pertence à família dos guaxinins.
Vivendo nas florestas de Sichuan, o panda é também o símbolo da cidade de Chengdu. Por todo o lado surgem as referências ao animal que fascina as pessoas pelo mundo fora. Basta olhar em volta para ver as imagens e as alusões turísticas, comerciais e históricas a esta espécie em vias de extinção. Uma passagem pelo Centro de Pesquisa e Criação de Pandas é obrigatória.
Luciana Leitão (texto e fotografias)
Das figuras de gente aos momentos históricos, a criatividade ao serviço da arte de moldar o barro é o que se pode encontrar na Galeria do Tap Seac. Artistas de Macau e da província de Guangdong juntaram as suas obras no mesmo espaço a convite do Instituto Cultural, na “Exposição de Cerâmica Contemporânea 2008”. Divididos por várias salas, os 38 trabalhos dos 15 criadores revelam técnicas e bagagens culturais distintas. Passear pela mostra é algo mais do que uma contemplação da cerâmica chinesa. É uma descoberta das diferenças entre as concepções artísticas “made in” Macau e da província vizinha.
Entre as cerâmicas provenientes de Guangdong, dominam os temas relacionados com a história da China, com recurso às técnicas mais tradicionais. Pelo menos é o que se encontra nas primeiras salas da galeria. Mal se entra, no chão, à direita, estão expostas duas espécies de formações militares. “Naquele Momento Estávamos” é o título do conjunto de obras da autoria do artista da província da China Continental Huang Qianghua. Cerca de uma dezena de figuras humanas com cerca de um palmo de altura estão alinhadas, vestidas com fatos militares, segurando um livro vermelho. A cena faz lembrar os tempos da Revolução Cultural.
Ao lado, as pequenas estátuas vestem a pele de um exército da antiguidade num trabalho intitulado “O General da Família Yang”. O mesmo tema militar é repetido nos “Aliados em Taoyuan”. Todos os trabalhos foram concebidos através da mesma técnica, o barro é a base material que foi queimada com lenha.
A sala da parte esquerda do espaço é totalmente ocupada com cerâmicas da série “Novo Ser Humano”. Mais uma vez, são notáveis as diferenças entre as esculturas assinadas por artistas de Macau e da província de Guangdong.
O criador local Sou Pui Kun apresenta três bustos incompletos e desfigurados, conjugando o barro com o acrílico e as fibras ópticas. Já Zhang Wenzhi, oriundo da província vizinha, utilizou o barro grosseiro para dar corpo a três obras. Duas assemelham-se a potes de porcelana, destacando-se as decorações monocromáticas. Há ainda uma figura vermelha assinada pelo mesmo artista, que representa um rosto humano visto de perfil.
No espaço que se segue, prevalece o tema militar e/ou político. Li Jing trouxe da província de Guangdong três trabalhos subordinados ao tema “Memória Vermelha”. Os pequenos homens de barro, cujo tamanho da cabeça é desproporcional ao corpo, posam de um modo autoritário.
Da parte de Macau, Alice Lee Shun Yu expõe uma caixa de costura entornada criada em porcelana, com agulhas verdadeiras incluídas. Através do barro e da técnica da queima por oxidação, a artista local criou “Memórias sobre Amendoins”. São vários amendoins gigantes, alguns com forma humana, que estão espalhados numa mesa.
Num regresso às temáticas orientais, Alice Lee tentou retratar o “Desabrochar das Bombax num Dia Primaveril”, combinando a porcelana e o veludo. Esta espécie de árvore encontra-se no Sul tropical da Ásia, Norte da Austrália e África tropical. As flores vermelhas destas plantas, que chegam a alcançar entre 30 a 40 metros de altura, surgem entre Janeiro e Março.
A parede do espaço contíguo à segunda sala é ocupada por máscaras de porcelana pintada criadas na província de Guangdong. É uma homenagem aos próximos Jogos Olímpicos de Pequim que se organizam em Agosto. “No mesmo mundo, no mesmo piso” é a ideia que o artista pretende transmitir.
James Wong, residente em Macau, contribuiu para a mostra com dois trabalhos. “Contos Dobrados I e II” são cerâmicas produzidas em barro vidrado, um dos exemplos de obras que se demarcam das demais por não desenvolverem uma temática local, nacional ou tradicional, mas sim contemporânea.
Atravessando o corredor principal, no centro, à direita, dominam os materiais eléctricos criados em porcelana branca, da autoria do artista da província de Guangdong Simon Ho Siu Chong. A parede maior é o suporte de “Distâncias Iguais”. São 405 pequenas tomadas, lâmpadas e fichas eléctricas de porcelana.
Na parede ao lado, repete-se a concepção artística. O trabalho “Natureza Morta” é composto por 20 peças rectangulares que representam materiais eléctricos. Da mesma série, há ainda uma escultura formada por um conjunto comprimido numa espécie de cubo de lâmpadas e fichas eléctricas. Simon Ho nasceu em Sidney, na Austrália, mas as suas raízes são de Cantão.
Nesta sala, o único criador que representa Macau é Konstantin Bessmertny com a sua “Almofada para a República”. Para criar esta escultura em porcelana branca pintada, o artista de nacionalidade russa escolheu a técnica de queima por oxidação.
No chão do espaço contíguo, Zhuo Zhengyao expõe três “Séries de Tianju” concebidas em barro de Fosham. Já Josefina Maria Bañares usou o barro em combinação com o plástico e o pano para dar forma a pequenos “Trabalhadores”.
Subindo as escadas, chega-se às últimas salas da exposição de cerâmica chinesa. No primeiro patamar, Diana Maria Bañares de Jesus partilha o espaço com o artista de Guangdong Wang Qi, com as suas obras de barro grosseiro de Shivan.
A criadora de Macau apresenta trabalhos inspirados no Largo do Senado. Três figuras, apenas da cintura para baixo, sentadas em bancos, mostram os diversos tipos de pessoas que se podem encontrar no mais movimentado local do centro histórico da cidade.
Pai e filho com cabeça de produtos de fast-food parecem representar a cultura ocidental que invade a zona. Os famosos sacos azuis e vermelhos transportados pelos comerciantes chineses são usados para dar corpo a dois residentes que descansam trocando uns dedos de conversa. O turista tem a cabeça em forma de saco dos biscoitos tradicionais de Macau e segura uma máquina fotográfica.
No final da exposição, apenas a província de Guangdong marca presença. Através do barro grosseiro, os artistas Tan Hongyu e Yi Hua apresentam um conjunto de cinco esculturas que assumem a forma de um cão, um anjo e “Mulheres Belas”, entre outras.
A cerâmica chinesa vai habitar a Galeria do Tap Seac até o dia 4 de Maio, entre as 10h00 e as 19h00. A entrada é gratuita.
Cerâmica para desenvolver indústrias culturais
Mostrar “trabalhos de grande qualidade” é apenas um dos objectivos da “Exposição de Cerâmica Contemporânea da Província de Guangdong e Macau 2008”, organizada pelo Instituto Cultural (IC), que vai estar patente na Galeria do Tap Seac até ao dia 4 de Maio. O evento tem ambições mais altas que se centram no desenvolvimento de pesquisa e promoção das indústrias culturais em Macau. Uma meta que pretende ser alcançada não só abrindo mais uma vez as portas à cerâmica, mas também através da realização de workshops.
As obras de 15 artistas da província de Guangdong e da RAEM pretendem revelar novos aspectos da cerâmica contemporânea chinesa, bem como divulgar e promover os artistas e as suas criações. Em particular, no que respeita ao tipo de materiais que usam e às suas diferentes concepções artísticas.
A mostra pode representar uma plataforma onde os artistas procuram a sua posição e estilo, com base nos traços tradicionais, contemporâneos, orientais e ocidentais. Na Galeria Tap Seac, encontram-se trabalhos sobre temas locais e nacionais, ou ideias inovadoras.
De acordo com uma nota divulgada pelo IC, nos últimos anos, Macau tem assistido a um desenvolvimento considerável no mercado da arte da cerâmica. É na sequência deste fenómeno que o organismo governamental decidiu promover a exposição, visando aprofundar o conhecimento dos residentes sobre este mundo da arte de moldar o barro, bem como o seu desenvolvimento no território e na província de Guangdong.
Para concretizar este objectivo, a organização da exposição irá realizar dois workshops destinados a jovens e crianças nos dias 6 e 13 do próximo mês, entre as 14h00 e as 16h00. A participação nesta iniciativa é gratuita.
Alexandra Lages
A história de Fuxi e Nuwa
O confronto dos seres humanos com o deus do Trovão
O confronto dos seres humanos com o deus do Trovão
Estando nós absortos na luz proveniente do computador, não demos conta da mudança rápida do tempo. Somos interrompidos quando, pela falta de luz, a máquina se desliga e logo se ouve um estrondoso ribombar de um trovão que nos traz à memória duas histórias da mitologia chinesa.
O deus do Trovão (Leigong) constantemente pairava nos céus e fustigava os agricultores com inúmeras tempestades e intensas trovoadas e chuvas que deitavam a perder as culturas dos campos.
Um dia, farto de trabalhar para no fim perder tudo, um camponês, ao aperceber-se, pelo adensar das nuvens no céu, que o deus do Trovão se aproximava, resolveu confrontá-lo. Dependurando uma gaiola de ferro na parte de fora da casa, desafiou o deus para um combate. Furioso perante o desplante daquele terreno ser, atirou-se dos céus para acabar com o provocador. Mas o agricultor com a sua forquilha de ferro e cabo de madeira apanhou-o e num movimento rápido meteu-o dentro da gaiola, fechando-lhe a porta. O deus fora derrotado e logo parou de chover.
Precisando de ir fazer umas compras, antes de partir o agricultor avisou os seus dois filhos para se afastarem da gaiola, não se dirigirem ao deus e muito menos darem-lhe água.
As duas crianças, o rapaz de nome Fuxi e a rapariga chamada Nuwa, andavam a brincar já que, desde há muito tempo não se encontrava um dia tão bonito e ensolarado, quando o deus do Trovão se começou a lamentar pelo calor que fazia. Assim preso não podia falar com o deus das Águas e só as crianças o poderiam salvar. As crianças, lembrando-se dos avisos do seu pai, tentaram ignorá-lo, mas a insistência com que o deus clamava por compaixão, agora murcho e com um aspecto inofensivo, mexeu com elas. Começaram a ter pena e após este prometer não lhes tocar, pensando não haver grande mal em lhe tirar a sede, assim lhe deram um pouco de água para beber.
Mas mal o deus tocou na água, logo a sua força e poder voltaram, libertando-se da jaula. As crianças assustadas iam fugir quando o deus do Trovão lhes lembrou que não lhes faria mal e deu-lhes um dos seus dentes dizendo que este os protegeria da vingança que iria dar aos humanos, pela desfeita de o terem capturado.
O lavrador, com o cair das primeiras gotas, logo percebeu que o deus do Trovão se tinha libertado. Mas nada pôde fazer já que o deus do Trovão, conjuntamente com o deus das Águas rodopiando, abriram tamanha tempestade que durante dias inundaram todas as terras e até as mais altas montanhas ficaram cobertas de água. Ninguém se salvou excepto os dois irmãos pois, logo após plantarem o dente na terra, este se transformou numa enorme cabaça. Quando as águas começaram a chegar, esta dividiu-se em duas metades e as crianças colocaram-se em cada uma das partes. Nas agitadas águas navegaram durante dias mas as correntes, devido ao deus do Vento, levaram-nas por caminhos diferentes, separando-as.
As águas estavam a chegar ao Céu e então o Deus do Céu ordenou aos deuses seus subordinados para pararem e voltarem a colocá-las nos seus leitos.
Já outra história, que ouvimos contar quando, na parte Leste da província de Gansu, visitamos a cidade de Tianshui, apresenta-nos uma versão diferente acerca do nascimento mitológico de Fuxi, um dos três Ancestrais chineses.
Fuxi era filho do deus do Trovão e de uma jovem mulher, a única filha de um casal que habitava no Noroeste, na província de Gansu, junto ao rio do Trovão, próximo do lago com o mesmo nome, onde o deus também vivia.
A jovem, farta dos maus humores do deus do Trovão, que constantemente infligia inundações às povoações junto ao rio, um dia resolveu ir falar-lhe e perguntar qual a razão dele não ir habitar o céu como os outros deuses. Perante tal desplante, mas rendido à beleza da rapariga, acordou retirar-se para o céu, se ela casasse com ele. Passados nove meses tiveram um filho e como a ela estava vedado o regresso à sua terra, resolveu que o seu filho deveria crescer fora daquele fechado lugar e, se possível, na sua terra natal, entre os humanos. Um dia, aproveitando a ausência do deus Trovão, colocou a criança dentro duma enorme cabaça e deixou que o rio a levasse. Aconteceu que o pai da jovem estava a pescar e ao ver a enorme cabaça retirou-a do rio levando-a para casa. Assim que o casal a talhou, dela saiu uma criança que envergava uma camisola bordada, que reconheceram ser proveniente da camisa da filha. Deram-lhe o nome de Fuxi, que significa oriundo de uma cabaça. A criança crescia rapidamente, distinguindo-se das outras por ser alta, forte e muito inteligente. Por ser filho de um deus podia subir ao céu pela escada celestial e assim, como era um observador atento, ao olhar para o Céu observou os fenómenos celestes e olhando para baixo, viu-os na Terra. Descobriu que o que dentro de si se passava, estava conotado com o exterior. Viajou por terras com propriedades de solos diferentes e viu muitos outros animais. Terá usado nós numa corda para fixar certos factos. Tendo criado um método de fazer redes de pesca inspirando-se nas teias de aranhas, foi um pioneiro na domesticação de animais, no lavrar a terra, no cozinhar os alimentos e no uso do almofariz e da mó.
Estas duas histórias mitológicas relatam o desaforo dos seres humanos que se atrevem a provocar um deus do Céu. Se umas vezes essa atitude faz que aconteçam as calamidades, por vezes levam ao aparecimento de seres, filhos dos deuses, que mudam os caminhos à História.
A pequena borrasca que se abatera sobre Macau terminara e a electricidade tinha regressado, retirando a mitologia dos nossos pensamentos e colocando-nos de novo a receber a luz proveniente do ecrã do computador.
José Simões Morais
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