Uma gota no oceano
Já se tornou o prato de cada dia do mundo lusófono. Enquanto se aguarda que Portugal decida ratificar o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, é rara a semana em que não aparece nos jornais mais uma tomada de posição de alguma personalidade que faz do português instrumento de trabalho. Por terras lusitanas e no continente africano, as opiniões dividem-se. Em Macau, a ideia de suprimir as duas normas da língua escrita para apenas uma também alimenta algumas discussões.
A iniciativa não é encarada na generalidade com muito entusiasmo. Há quem se manifeste totalmente de acordo e há quem se mostre céptico e não veja qual seja a utilidade de “legislar sobre a língua”. No final de contas, a maioria dos especialistas contactados pelo Tai Chung Pou apenas observa, sem se envolver, a discussão sobre o acordo.
A RAEM é um território pequeno, onde o português não é o idioma de rua; contudo, aqui concentram-se todos os aspectos que estão no centro da controvérsia que se gerou à volta da uniformização da ortografia. Além de ter a língua de Camões como uma das línguas oficiais e ser um dos centros de ensino da língua na Ásia, Macau é elogiada como plataforma das relações entre a China e os países lusófonos. Diplomacia, comércio e cultura são os três sectores em que o acordo fará diferença, segundo os defensores do projecto que se arrasta há 14 anos.
Uma perspectiva distinta tem o director da delegação em Macau da Agência para o Investimento e Comércio Externo de Portugal (AICEP), Miguel Crespo. “No mundo dos negócios, a língua portuguesa ainda consegue ser franca, porque partilha a mesma matriz. Dos Açores ao Brasil, passando por Timor, são precisas apenas algumas palavras rudimentares para avançar com um negócio”, afirmou o mesmo responsável.
“O Acordo Ortográfico, no contexto das relações entre Macau, China e os países de língua portuguesa, é uma pequenina gota no oceano das trocas linguísticas”, sustentou por sua vez, a presidente do Instituto Português do Oriente, Maria Helena Rodrigues.
Nas conversações entre os futuros parceiros até ao definitivo aperto de mão pode não existir qualquer dificuldade de comunicação, mas quando se chega à parte jurídica a situação complica-se. Tanto ao nível do comércio como das organizações inter-governamentais, a redacção dos documentos tem que ser feita em paralelo, nas normas de Portugal e do Brasil. “Não há necessidade e não faz sentido”, defendeu o director do Departamento de Português da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Alan Baxter.
Para os profissionais locais que todos os dias fazem de ponte entre os falantes de língua chinesa e portuguesa, as novas regras vêm facilitar o trabalho diário. Mas só em parte. A opinião é de Leo Stepanov, tradutor e intérprete que domina o português, cantonês e mandarim, entre outros idiomas.
“No campo das comunicações com o cliente será difícil implementar as normas do acordo, porque o cliente tem sempre razão e, quando não tem, passa a tê-la”, sublinhou. “No entanto, ao nível dos trabalhos da Assembleia Legislativa, da Administração e das empresas privadas é necessário fazer um certo esforço de uniformização da ortografia, porque há maneiras diferentes de escrever os títulos, por exemplo. Cada um utiliza a sua maneira”, acrescentou.
Contudo, no âmbito dos serviços governamentais, a introdução do acordo provoca algumas “confusões”. “Macau funciona com base nas amostras feitas anteriormente. Tudo segue uma lógica de ‘copy paste’. O pessoal não se preocupa com as regras modernas e toda a documentação administrativa tem uma tradição histórica. Será difícil convencer as pessoas de que a maneira antiga já não se aplica”, explicou o especialista.
Problemas que, para Alan Baxter, são resolvidos com recurso aos computadores. “Estamos na era da informática. Não é difícil instalar dicionários nos aparelhos. Fora do âmbito profissional, as pessoas escrevem como quiserem”, sustentou.
Apesar das diferentes correntes de opinião, académicos, tradutores, intérpretes e homens de negócios locais apontam que o acordo não terá um grande impacto no quotidiano do território. A opinião é geral – são normas que não podem ser introduzidas de um momento para o outro, mas sim paulatinamente.
Ao nível do ensino, Alan Baxter e Maria Helena Rodrigues concordam que as novas regras só podem ser apresentadas aos aprendizes de português dos níveis mais avançados. Já no capítulo das vantagens e desvantagens, as posições dividem-se.
Para o académico australiano, o acordo traz benefícios de várias ordens. Em primeiro lugar, o livre comércio e circulação de publicações vai começar a processar-se dos dois lados do Atlântico, aumentando consideravelmente as opções de manuais didácticos e beneficiando a alfabetização. Em segundo, a uniformização do idioma é uma necessidade dos novos tempos. “As línguas mudam e os padrões precisam de atenções e ajustes, um bom exemplo é o espanhol que tem sido orientado por reformas seculares”, exemplificou.
O mesmo não pensa Maria Helena Rodrigues. “Incomoda-me quando os homens legislam sobre algo que tem uma evolução natural”, criticou. Para a presidente do IPOR, mais do que razões sócio-linguísticas, por detrás do acordo há toda uma fundamentação política, económica e social. A uniformização tem a intenção, segundo a responsável, de fazer surgir “um bloco de um português.”
“Se é para ter uma lusofonia, o conceito deve ser mais abrangente e temos de estar em paridade. Unidade não significa que temos que andar todos ao mesmo passo. Não é necessário que nos tornemos homogéneos. Até porque o que enriquece a língua portuguesa são as diversas literaturas e formas de utilização.”
Desenhar com linhas direitas os traços da natureza. Animais, plantas, montanhas, rios, ou mesmo um mestre budista, é o que se pode ver no Museu de Macau na exposição de Gao Jianfu, fundador da escola de pintura Lingnan. Com carvão e tinta, utilizando o papel, este homem revolucionário, com íntimas ligações a Macau, procurou sempre mostrar o seu olhar para a natureza.
São 200 registos desenhados com carvão ou tinta em papel que retratam peixes, borboletas e pássaros. E tudo o mais que foi vendo pelos países por onde passou. Entrando no espaço que acolhe a exposição, o visitante depara-se logo com uma das fases mais emblemáticas da carreira de Gao Jianfu – o período que medeia 1939 e 1951, uma das alturas em que esteve em Macau, refugiado da guerra sino-japonesa. Peixes, imagens alusivas às ruínas de São Paulo e templos são apenas alguns dos seus registos de um território que descrevia como a “cidade-jardim da Península de Macau”. Aliás, como ele próprio dizia: “Apesar de limitada e sem floresta, três dos seus lados estão rodeados de água, fazendo sobressair pequenas montanhas à distância. As margens são povoadas por famílias que plantam flores e bambus em todos os recantos possíveis. No despontar de cada dia, uma brisa matinal deixa para trás uma lua imóvel, escuta o desenrolar das ondas e observa as velas que desaparecem; no crepúsculo, o sol desce vagarosamente por detrás de uma montanha, à espera do regresso dos barcos de pesca banhados em melodias.” Uma Macau que o inspirou e que o levou a registar também a altura em que levava os alunos a praticar desenho na Colina da Guia, na Praia Grande ou em Hac-Sá. Ao ar livre, onde Gao Jianfu se sentia melhor. Em sintonia com a natureza, a sua fonte de inspiração.
Percorrendo a galeria, encontram-se jogos interactivos que desafiam o visitante a encontrar a peça do puzzle que vai completar alguns desenhos do pintor, ganhando pontos e tendo acesso a mais informações sobre a sua vida. Sempre a rodar, está um ecrã de televisão com uma entrevista a Gao Jianfu.
A pequena mostra divide os registos do pintor por períodos. Além da fase relativa à sua permanência em Macau, é de realçar o período entre 1918 e 1938, altura das suas viagens pela China. Imagens de Cantão, como a da Vila Yun Gui, ou de Sichuan, Fujian e Hunan, são apenas alguns dos exemplos que se destacam. Imagens que respeitam sempre o lema “lealdade sem escravidão à natureza”, reflexo de um estilo próprio criado pelo autor.
Entre 1930 e 1931 surgem os seus registos mais budistas, precisamente por ter sido um ano dedicado a viagens pelo Sudeste Asiático. Vêem-se, por isso, imagens da Índia, Nepal, Butão, Sri Lanka, Mianmar, Vietname e Himalaias. Um dos desenhos que mais se destaca é a representação de Ajarta, uma terra considerada sagrada para os budistas, e que foi alvo de vários registos por parte do pintor.
No que toca aos períodos de formação do artista, é de realçar dois. Por um lado, estão expostos quadros que remontam a 1906, 1907 e 1908, altura em que Gao Jianfu é um estudante no Japão. Um período muito importante porque foi Gao Jianfu e o irmão Gao Qifeng que trouxeram o estilo “nihonga” para a China, dedicando-se à criação de uma nova escola. Deambulando pela galeria, encontram-se ainda desenhos realizados entre 1892 e 1903, o período em que Gao Jianfu descobre o mestre e mentor, Ju Lian. Imagens de borboletas ou peixes pintadas com tinta em papel e que representam apenas alguns dos exemplos mais visíveis desta fase artística.
Fundador de uma corrente artística, pioneiro da reforma da pintura chinesa, líder militar da Liga Revolucionária na Revolução de 1911, Gao Jianfu tem vindo a ser apresentado como um revolucionário de renome dentro e fora da China. Um artista que criou vínculos importantes com Macau, que surge como uma referência em várias etapas da sua vida – quando em 1900 frequenta a Escola Ling Nan, aprendendo ali a desenhar com o carvão, ou quanto durante a Revolução de 1911 liderou a secção de Macau da Liga Chinesa Revolucionária. Entre 1938 e 1945 refugiou-se em Macau, dada a invasão de Cantão pelo exército japonês, continuando a pintar e a ensinar no Templo Kun Iam, organizando ainda exposições para angariar fundos em prol das vítimas da guerra. Um período bem registado nesta exposição. Morreu em Macau, em 1951, no Hospital Kiang Wu.
Luciana Leitão
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