terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

Castanheira Lourenço reitera legalidade no GDI, Radiografia da comunidade de São Tomé e Príncipe no território

Castanheira Lourenço ouvido ontem em tribunal

Antigo coordenador reitera legalidade no GDI

Não foi um discurso, mas quase parecia. Um longo discurso. Durante cinco horas, o antigo coordenador do Gabinete para o Desenvolvimento de Infra-Estruturas (GDI), Castanheira Lourenço, foi a testemunha ouvida ontem no Tribunal Judicial de Base. Negou que, enquanto membro de comissões de avaliação, tivesse recebido quaisquer instruções de Ao Man Long no sentido de favorecer a adjudicação a certas empresas. Negou também que, por detrás dos ajustes directos à empresa Sam Meng Fai na realização da segunda, terceira e quarta fases da Nave Desportiva dos Jogos da Ásia Oriental, estivesse qualquer orientação ilícita. Algo que repetiu exaustivamente e causou mesmo alguma irritação por parte do Ministério Público (MP).
“Não havia grelhas provisórias. A comissão apresentava um relatório final com um parecer e era isso que era apresentado superiormente”, disse em resposta à delegada do MP. Garantias dadas por Castanheira Lourenço aquando da inquirição, enquanto procurava definir a “metodologia” aplicada no âmbito do GDI no lançamento de um concurso público. Tendo em conta que a maior parte das obras em que esteve envolvido o GDI eram “de grande envergadura”, o processo normal implicaria sempre a intervenção posterior do antigo secretário para as Obras Públicas, mas a última palavra seria sempre do Chefe do Executivo. “Diria que mais de 90 por cento das obras eram assim”, declarou.
Para fundamentar a sua posição, Castanheira Lourenço apresentou estatísticas. “Desde 2000, o GDI lançou 52 concursos públicos – desses, seis não chegaram a ser adjudicados e desses 46, 30 tiveram vencedores diferentes”, disse. Algo que não satisfez o MP, que alegou que algumas empresas, como a Sam Meng Fai e a Tong Lei, conseguiram mais obras do que outras concorrentes.
O Ministério Público deu então mais ênfase ao concurso público internacional que culminou com a adjudicação às empresas Sam Meng Fai e China Construction da construção da Nave Desportiva dos Jogos da Ásia Oriental. “Ganharam porque tiveram as melhores pontuações”, afirmou a testemunha. Em causa esteve, sobretudo, a existência de uma segunda, terceira e quarta fases na construção do recinto e na adjudicação por ajuste directo ao mesmo consórcio que concluiu a primeira fase. Castanheira Lourenço tinha resposta pronta – dado que o processo já estava em andamento, “não seria viável que numa obra daquela dimensão e com aquelas interligações pôr lá dois empreiteiros a fazer acabamentos”. Justificou ainda com os “limites temporais”, dado que o recinto estava a ser construído para a realização dos Jogos da Ásia Oriental, alegando, assim, que não haveria tempo para adjudicar a obra a outro empreiteiro que não aquele encarregue da primeira fase dos trabalhos. Uma resposta que repetiu consecutivamente, já que foi inquirido reiteradamente sobre esse mesmo ponto.
Realçando que o projecto da Nave Desportiva só chegou às mãos do GDI depois de adjudicada a obra, o antigo coordenador afirmou que a segunda, terceira e quarta fases do recinto existiram porque “o processo estava incompleto desde o início”. E, dado o prazo-limite de fim da obra, chegou-se à conclusão de que teriam de existir outras fases e que seriam atribuídas por ajuste directo ao consórcio inicial. “Obviamente, quem decidiu foi Ao Man Long”, declarou. “Informou-se o secretário e este terá também falado com o Chefe do Executivo”, disse. Os ajustes directos estão “dentro da legalidade”, garantiu. E os orçamentos foram apresentados “à medida que iam sendo entregues os projectos das fases”.
Em resposta ao MP, Castanheira Lourenço afirmou desconhecer se a cunhada do secretário para as Obras Públicas, Ao Chan Wa Choi, exercia de forma negligente as suas funções de empregada da limpeza na empresa Lei Pou Fat. “O que sei é que entregava a correspondência e quando ia ao escritório aquilo estava limpo”, disse. Recorde-se que o antigo coordenador do GDI era representante do Governo na empresa e que, na anterior sessão de julgamento, a coordenadora-adjunta do GDI, Pun Pou Leng, acusou a familiar de Ao Man Long de não cumprir as funções que lhe competiam.
A segunda testemunha do dia, Mário Sousa, engenheiro civil que desempenha o cargo de consultor no GDI, corroborou a versão apresentada por Castanheira Lourenço. Além de negar ter recebido quaisquer instruções no sentido de propor a alteração de resultados de concursos públicos para favorecer alguma empresa, Mário Sousa afirmou que o único “problema” por detrás da realização da Nave Desportiva foi o “facto de o projecto não estar completo” sendo “praticamente impossível pôr outro empreiteiro” na realização das fases subsequentes. Nem mesmo tendo em conta a existência de dois acidentes de trabalho na conclusão da primeira fase – fundações e estrutura – da obra. “Não considero que tenha havido falta de segurança”, disse. Opiniões que transmitiu na altura, num parecer, ao então coordenador.
Ouvido como testemunha de acusação no julgamento que tem como arguidos os familiares de Ao Man Long e três empresários de Macau, Castanheira Lourenço – que abandonou o cargo de coordenador do GDI poucos dias antes do início do julgamento do antigo secretário – foi também testemunha no julgamento do ex-governante. Ao contrário dos responsáveis pela Direcção dos Serviços de Solos, Obras Públicas e Transportes, Castanheiro Lourenço assegurou perante o Tribunal de Última Instância que o então secretário não teve qualquer intervenção na escolha das empresas adjudicatárias. Um depoimento que repetiu desta vez no Tribunal Judicial de Base.
Luciana Leitão

Caligrafias

Os limites da reserva de lei

As competências do Governo em matéria legislativa voltaram esta semana a ser tema de discussão num artigo assinado por Ng Chan, colunista do jornal Va Kio. Desta feita - e numa altura em que continua a ser debatida, em sede de comissão, a proposta de lei relativa ao enquadramento das leis e dos regulamentos administrativos - , na origem do comentário de Ng Chan está a alteração sugerida pelo Executivo relativamente às competências de polícia criminal atribuídas à Direcção dos Serviços de Economia (DSE).
Na passada semana, o Conselho Executivo anunciou o envio para Assembleia Legislativa (AL) de uma proposta de lei que visa revogar o artigo da lei orgânica da DSE que investe o director, os subdirectores e o chefe do departamento de Inspecção das Actividades Económicas da qualidade de autoridade de polícia criminal. O objectivo da eliminação deste artigo prende-se com a orientação política escolhida para o combate à criminalidade e a concentração das tarefas desta natureza nas autoridades criminais e nos Serviços de Alfândega. Na realidade, questões como a propriedade intelectual e industrial tinham deixado de ser do domínio da DSE desde 2003, altura em que o Executivo emitiu um regulamento administrativo sobre a matéria.
Aquilo que parecia ser apenas uma alteração de pormenor é, afinal, resultado de um pequeno conflito em matéria de iniciativa legislativa, revela Ng Chan no seu artigo. Acontece que havia, no seio do Governo, quem tivesse a convicção de que o regulamento administrativo de 2003 tinha eliminado já as competências de órgão criminal da DSE. Ora, só a Assembleia Legislativa tem capacidade para deliberar sobre a matéria. O “erro de análise” chegou a ser abordado pela presidente da AL, Susana Chou, e um residente submeteu uma petição escrita ao órgão legislativo em que frisava que a DSE continua a ter autoridade de polícia criminal.
Ng Chan foi ouvir a opinião da deputada Kwan Tsui Hang sobre este “equívoco” que, pelo que afirma, se arrastou ao longo de quase cinco anos. Para Kwan, “erros deste calibre” devem ser objecto de análise. “Tenho dúvidas no que toca à forma como os funcionários responsáveis pelas questões jurídicas do Governo interpretam a legislação”, disse a deputada. “O que mais me preocupa é a interpretação do conceito de reserva de lei”, acrescentou, instando o Governo a analisar profundamente este assunto, de modo a poder encontrar uma solução para o problema.
Ng Chan destaca também o facto de Kwan Tsui Hang considerar ser necessário rever os princípios legais com que foram emitidos, no passado, os regulamentos administrativos, porque o diploma que está a ser apreciado na AL sobre a questão não tem efeitos retroactivos.
O órgão com competência legislativa originária da RAEM é a AL, sendo que o Governo dispõe de capacidade para regulamentar. Nos últimos tempos, tem-se assistido a divergências sobre a divisão da competência legislativa dos dois órgãos, facto que levou o Governo a apresentar uma proposta de lei que visa esclarecer a questão.

Radiografia da comunidade de São Tomé e Príncipe no território

A ponte que Macau pode ser

O Ano do Rato vai ser de festa para o mundo lusófono do território. Em especial, para os residentes são-tomenses. Está para breve a criação da Associação Amizade São Tomé e Príncipe Macau, China. Um projecto que está na forja desde o estabelecimento da RAEM e que finalmente irá ver a luz do dia.
Macau é um berço de comunidades. Cada grupo oriundo de vários pontos do globo acrescenta à região uma cultura própria. Tudo em conjunto, oferece à cidade a singularidade que a distingue do resto do mundo. Diariamente, cruzam-se nas ruas pessoas com origens e percursos diferentes mas, simultaneamente, com pontos de convergência. É o caso da comunidade de São Tomé e Príncipe, um dos grupos lusófonos mais pequenos da RAEM, mais que, em termos de histórias para contar, é gigante.
“Os são-tomenses formam uma comunidade que não é muito numerosa, mas que é basicamente estável. A par disso, é bastante recente. Muitos vieram no início dos anos 1990 e ainda continuam cá.” A análise é feita por Vitorino Trovoada, médico licenciado na China que há 15 anos encontrou no território uma casa e um local de trabalho.
“Há três gerações de são-tomenses actualmente em Macau. De todas, a composta por jovens que estudaram na China é a mais interessante”, explica Adalberto Tenreiro, arquitecto e cidadão natural do país africano.
Hoje, contando com os mais pequenos já nascidos em terras da antiga cidade do nome de Deus, não chegam a duas dezenas os residentes são-tomenses da RAEM. Contudo, o panorama mudou muito desde que o arquitecto chegou a Macau nos anos 1980.
Adalberto Tenreiro faz parte “da primeira leva” de pessoas com ligações a São Tomé e Príncipe que escolheram Macau como nova morada. “Somos aqueles que nasceram antes do 25 de Abril de 1974. Somos europeus que ali nasceram ou que trabalharam e viveram no país”, contextualiza. Esta foi a fase inicial da formação da comunidade lusófona local.
Nos inícios da década de 1990, o grupo começou a aumentar à medida que chegavam os jovens licenciados das universidades da China. Formado em Engenharia Informática com aplicação às telecomunicações em Pequim, António Costa é um dos elementos deste segundo grupo que foi responsável pelo virar de uma página na história da comunidade. Dominam o mandarim, aprenderam rapidamente o cantonês e encontraram emprego na Função Pública e nas empresas privadas da região. Quanto mais o tempo passa, mas profundas são as raízes.
“Vamos ficando. É óbvio que Macau tem mais referências lusófonas do que qualquer outra cidade da China. Aqui sentimo-nos quase em casa. É um local onde trabalhamos e falamos português, apesar da língua chinesa ter mais força”, frisa António Costa. A RAEM é “uma espécie de casa mais próxima”, acrescenta.
Depois do engenheiro informático, foram chegando mais estudantes que terminaram o curso na China. Durante quatro anos, esta comunidade lusófona foi sendo alimentada essencialmente pelos recém-licenciados.
No entanto, o movimento cessou em 1997, quando o Governo de São Tomé trocou a China, país com o qual mantinha relações desde a independência em 1975, por Taiwan. A nação africana está ainda hoje do lado dos países que reconhecem a independência da ilha. Uma das consequências foi o fim do acolhimento por parte de Pequim de estudantes são-tomenses.
“Hoje, os cidadãos de São Tomé e Príncipe que vêm para Macau são bolseiros da Fundação Macau”, conta António Costa. O cenário dos anos 1990 alterou-se. “A terceira geração são-tomense é composta por estudantes que vêm estudar directamente para o território”, completa Adalberto Tenreiro. São, na sua maioria, alunos da licenciatura de Direito e conferem uma nova dinâmica à comunidade. Vão chegando em espaços intervalados de tempo. Uns ficam, outros partem.
Foram os estudantes que, ao longo de mais de uma década de história da presença de São Tomé em Macau, representaram o pólo de intercâmbio cultural entre o território, a China e o país africano. Tanto a geração de António Costa e de Vitorino Trovoada como os futuros advogados provam a importância da RAEM no seio das relações entre dois governos que diplomaticamente estão de costas voltadas.
Contudo, a oficialização da Associação Amizade São Tomé e Príncipe Macau, China, marca o nascimento de uma nova etapa. A partir deste ano, a organização assume o papel da promoção do intercâmbio cultural entre dois continentes. A participação na Festa da Lusofonia passará a ter um novo significado, sendo que serão organizadas mais actividades para reunir a comunidade e confraternizar com as restantes existentes no território, não apenas de cariz lusófono.
No entanto, não terminam aqui as ambições dos dinamizadores do projecto. “Macau pode contribuir para o melhoramento das relações entre São Tomé e a China. Tudo o que a futura associação puder fazer nesse sentido será feito”, sublinha António Costa. “A solução para o problema que existe entre os dois países não está nas nossas mãos, mas se quiserem o nosso contributo temos contactos e experiência suficiente para tal”, acrescenta.
A diplomacia é a característica mais destacada por Adalberto Tenreiro no povo são-tomense. São Tomé, diz o arquitecto, recebeu influência de todos os outros países lusófonos do continente africano. As ilhas que compõem a nação estavam desabitadas quando foram descobertas pelos navegadores portugueses, tornando-se um entreposto de escravos.
“Uma quantidade enorme de cabo-verdianos, angolanos e moçambicanos estabeleceram-se no país. A cultura são-tomense é um dialecto especial de subtilezas de várias etnias. Há uma relação quase diplomática entre as pessoas.” Algo que também se observa na presença da comunidade são-tomense em Macau.
Alexandra Lages
Fotografia: António Falcão/ bloomland.cn

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