quinta-feira, 21 de fevereiro de 2008

Coutinho, José Chu e a desilusão; Festa das Lanternas em Macau; Crónica de viagem ao Bangladesh

Deputado protesta contra respostas dadas por representante do Governo

Coutinho, José Chu e a desilusão

Foram anos e anos de queixas numa interpelação só. Pereira Coutinho diz que nunca se viveu um momento tão mau na Função Pública, no que ao moral dos trabalhadores diz respeito. José Chu, director dos Serviços de Administração Pública (SAFP), tem uma visão bem diferente do cenário traçado pelo também presidente da Associação dos Trabalhadores da Função Pública de Macau (ATFPM).
Sem apresentar novidades em relação aos temas focados pelo deputado, José Chu contestou as críticas de Coutinho. A resposta esteve longe de convencer o deputado que, no final da intervenção do director dos SAFP, disse estar “muito desiludido”. “Vendo bem as questões que coloquei, só respondeu às perguntas mais simples. É uma postura que muito me desilude. As perguntas foram colocadas de forma clara. Mais valia dizer que não consegue responder”, lamentou Coutinho.
A verdade é que a desilusão começou logo no início da sessão e teve a ver com a própria presença de Chu na Assembleia. O deputado considerou que, sendo as suas questões de ordem política e estratégica, à Assembleia deveria ter ido a Secretária, pois o director de serviços é apenas um “executor”. A presidente da AL, Susana Chou, lembrou que, nos termos regimentais, o órgão não tem possibilidade de escolher qual o representante do Governo que vai à Assembleia responder às interpelações dos deputados.
Resolvido este ponto prévio, passou-se então para a rápida troca de perguntas e respostas entre Coutinho e Chu. Resumindo a interpelação, o presidente da ATFPM criticou a eliminação da reforma e da pensão de sobrevivência, substituídas em 2007 pelo novo regime de previdência, a inexistência de um “sistema credível” de responsabilização dos titulares dos principais cargos políticos, a “continuada escandalosa exploração dos trabalhadores, através de contratos de prestação de serviços, de aquisição de serviços e de tarefas”, a estagnação das carreiras e “os baixos salários do pessoal da linha da frente” quando comparados com os vencimentos dos trabalhadores das concessionárias do jogo com funções semelhantes.
O deputado perguntou quanto tempo mais precisa o Governo para resolver a lista de problemas que focou, quais as medidas estão a ser adoptadas para elevar “o baixo moral” e para que “a competência seja uma das principais qualidades para a prestação de serviços públicos”.
José Chu refutou o cenário traçado pelo presidente da ATFPM, começando pelo regime de previdência. “Tem contribuído positivamente, desde sua a entrada em vigor. Mais de seis mil trabalhadores que não beneficiavam de nenhuma garantia estão agora integrados no sistema”, disse. Quanto à responsabilização das chefias, assegurou, “o Governo está empenhado”. Ao contrário do que diz Pereira Coutinho, o “pessoal da linha da frente” ganha “consideravelmente mais” do que os funcionários dos casinos, acrescentou o director dos SAFP, enquanto lia um mapa comparativo. O responsável anunciou que vai ser criado um centro de formação especializado para os funcionários públicos e disse que tem “havido intercâmbio e diálogo com os trabalhadores”.
O deputado insistiu na questão da responsabilização dos principais titulares de cargos públicos. Susana Chou passou a palavra a José Chu, que se limitou a dizer que a sua resposta foi “global”, pelo que não tinha mais nada a acrescentar. Au Kam San tentou dar uma ajuda e pediu que fosse dada resposta à questão sobre a forma como o Governo pretende levantar o moral dos funcionários. “A esmagadora maioria dos trabalhadores reconhece as políticas e medidas adoptadas pelo Governo. O público também reconhece os esforços dos funcionários”, disse o director dos SAFP, minimizando a questão. De qualquer modo, acrescentou, “quanto à questão do moral, o Governo tem vindo a desenvolver trabalhos”. Como? Não disse.
Embora já não tivesse tempo para voltar a usar da palavra, Susana Chou concedeu a Pereira Coutinho um minuto para expressar o seu desagrado. A primeira interpelação das cinco ontem apresentadas acabava assim com uma clara sensação de desconforto. Para os dois lados da barricada.
Isabel Castro

Futebol profissional gera reacções opostas entre elementos da modalidade desportiva

Um passo maior do que as pernas?

“Se for mesmo criada uma liga de futebol profissional em Macau é claro que deixaria o meu emprego e alinhava por uma das equipas.” Pelé nasceu para ser craque da bola e foi com esse objectivo que viajou há cerca de uma década para o território. Contudo, à semelhança de tantos outros jogadores lusófonos, o sonho caiu por terra. Futebol profissional sempre foi algo inexistente na região. No entanto, o mundo do desporto-rei local prepara-se para uma reviravolta.
A Associação de Futebol de Macau (AFM) confirmou esta semana à imprensa de Hong Kong que está a ser planeada a criação de uma liga feita só com equipas profissionais, que podem entrar em campo já no próximo ano. A notícia originou surpresa entre as várias figuras ligadas ao futebol de Macau.
Do conjunto de dirigentes, treinadores e jogadores contactados pelo Tai Chung Pou, alguns manifestaram alegria e satisfação puras perante a iniciativa, mas há também quem torça o nariz. Apoiantes ou não dos novos planos da direcção da AFM, o certo é que muitas questões são colocadas à criação da Super Liga de Futebol de Macau. Das bancadas, os representantes e elementos da modalidade no território aguardam o pontapé de saída para a segunda metade da história.
“Impraticável.” É esta a visão do novo projecto da AFM aos olhos do proprietário das equipas Monte Carlo e Heng Tai, Firmino Mendonça. Aquele que é apelidado como o “patrão” do futebol de Macau afirmou desconhecer por completo os planos da associação e, por isso, escusou-se a alongar os comentários. Contudo, o empresário considera “difícil” a concretização deste projecto.
As razões que alimentam a posição de Firmino Mendonça são as mesmas apontadas por José Eduardo, popularmente conhecido por Dedé, jogador do Heng Tai e da selecção de veteranos de Macau. Para o futebolista, a criação da divisão profissional significa uma oportunidade de progresso da modalidade desportiva, mas o cepticismo é a tónica dominante do residente que veio para o território em busca de carreira há 21 anos.
“É um impulso feito um bocado às cegas. Falta ao futebol de Macau toda uma estrutura e uma base onde se possa agarrar, bem como uma verdadeira mentalidade desportiva”, defendeu. “Estão mesmo a querer dar um passo maior do que as pernas”, acrescentou.
Para sustentar uma liga profissional de futebol são precisos, segundo Dedé, três peças fundamentais: jogadores, financiamento e infra-estruturas. As perguntas multiplicam-se. “Onde é que se vai buscar tanto dinheiro? E jogadores? Quanto tempo durará o campeonato à custa dos fundos? Seis meses? E depois? Acaba-se o futebol?”, apontou.
De acordo com as notícias que têm circulado na imprensa de Hong Kong, a AFM planeia criar a liga de profissionais com a ajuda de empresas privadas. O presidente da associação, Cheong Coc Veng, afirmou que o bom estado da economia da RAEM é o factor catalisador destas mudanças no futebol do território, havendo cada vez mais grupos empresariais a manifestar interesse em investir na modalidade.
Até agora, o que chegou do outro lado do extremo do Delta do Rio das Pérolas é que já existem quatro equipas formadas, mas que a associação pretende atingir um conjunto de seis. Ao contrário das formações amadoras existentes, os onzes compostos por profissionais não terão limites de jogadores estrangeiros.
Algo que deixa indignado Dedé. “Cortam as pernas a umas equipas e favorecem outras. Isto é dar o dito por não dito”, acusou.
Recorde-se que os clubes amadores actualmente divididos pelas três divisões são obrigados a limitar o número de atletas residentes não permanentes para oito por equipa e quatro por partida. Uma medida que foi imposta pela FIFA e a Confederação Asiática de Futebol, mas que aparentemente não terá efeito na divisão profissional.
As intenções da direcção liderada por Cheong Coc Veng são há algum tempo conhecidas pelo Governo. “Desde o ano passado que o Instituto do Desporto de Macau (IDM) tem conhecimento dos planos da AFM”, adiantou o vice-presidente do organismo governamental, José Tavares.
“É uma boa tentativa para que o nosso futebol dê uma volta e que tenha outra dinâmica, disciplina e essência. O projecto conta com todo o apoio do IDM, mesmo que no final não produza resultados”, acrescentou o mesmo responsável. Qualquer ajuda concedida pelo IDM será apenas de carácter logístico e não monetário, fez questão de destacar José Tavares.
Os moldes do financiamento é outra das questões que preocupam Dedé. “As assistências dos estádios estão vazias. Como é que um casino vai investir numa equipa sem fim ou retorno certo?”, questionou. A par disso, o atleta lançou ainda o problema dos jogadores. Será preciso, segundo o também treinador, uma grande quantidade de recursos humanos para alimentar seis equipas profissionais. A solução passaria por contratar futebolistas locais.
Contudo, grande parte dos atletas amadores de Macau já “têm as suas vidas feitas”. “Não os vejo a deitar fora uma carreira com futuro para daqui a meia dúzia de anos se reformarem do futebol”, sustentou.
Mais confiança tem Rui Cardoso, dirigente do Sport Macau e Benfica. “Não podemos ser cépticos. É um bom passo e o momento certo para avançar. Não podemos dizer que não vai resultar. É preciso tentar”, frisou. São também muitas as interrogações colocadas pelo ex-futebolista. No entanto, o mais importante para o responsável são as vantagens que poderá trazer para o desporto rei da RAEM uma liga profissional de futebol.
Tendo em conta que os “encarnados” se dedicam de corpo e alma à formação de jogadores, a notícia não podia ser melhor recebida por Rui Cardoso. “As camadas jovens vão estar mais motivadas, porque sabem que existirá uma competição séria além da amadora e isso vai exigir uma maior concentração e uma melhor condição física”, explicou.
O mesmo se aplica aos jogadores, profissionais na área do desporto e até dirigentes desportivos. “A partir do momento em que existe uma divisão profissional, tudo será profissional. Desde os atletas, treinadores, preparadores físicos, massagistas e dirigentes. É uma oferta de emprego motivante”, notou.
Resta agora saber se as actuais equipas de Macau têm as portas abertas para participar na liga profissional. José Tavares diz que sim. “Tudo é possível, desde que as formações alterem os seus estatutos”, explicou o vice-presidente do IDM.
Mais pormenores dos planos da AFM poderão ser conhecidos já amanhã. De acordo com fonte da entidade associativa, em declarações ao Tai Chung Pou, será organizado um encontro da associação onde provavelmente vai ser apresentado oficialmente ao futebol de Macau o novo projecto.
Alexandra Lages

Em Macau quase não se comemora a Festa das Lanternas

Uma tradição perdida

Quase desaparecida. Nem consta do calendário oficial. Assim é a Festa das Lanternas em Macau que se realiza hoje. Uma data que assinala o fim das festividades de Ano Novo chinês e que calha no 15º dia do primeiro mês lunar. Um “simbólico apagar da iluminação” que acolheu a chegada do Ano do Rato e um “regressar ao trabalho”, afirma a socióloga que se dedica à investigação da sociedade chinesa, Regina Paz.
No fundo, prende-se com a “necessidade de luz”. Um “pedido para que a noite seja curta” e os dias mais longos. Mas em Macau já não é particularmente celebrado. “É comemorado aqui e ali – está mais diluído”, conta. Apagam-se as lanternas. A Primavera “está a chegar e os dias a aumentar”, avizinhando-se um período maior de sol. Em termos sociais, “quer dizer que param os festejos e metem-se mãos à obra”. Para assinalar a data poderá, quanto muito, “haver um jantar de família dentro ou fora de casa”. E, claro, as lanternas são uma constante da tradição chinesa e não desaparecem só porque terminam as festividades de Ano Novo chinês. “Para nos guiar e não nos perdermos”, diz. É também o dia em que os casados deixam de oferecer envelopes recheados de dinheiro, ou lai-si.
De acordo com várias pessoas contactadas pelo jornal Tai Chung Pou, a data que também coincide com o Dia Chinês dos Namorados apenas é celebrada “pelos mais idosos”. Tradicionalmente, estarão associados à festividade alguns enigmas chineses que são colocados no interior ou por baixo das lanternas.
A maior atracção do Festival Yuan Xiao – como também é designado - é um mar de lanternas de todas as formas e cores que pode ser encontrado pelas ruas chinesas. Começou a celebrar-se durante a dinastia Han (206 a.C – 221 d.C), tornando-se popular durante as dinastias Tang e Song. À noite, as pessoas deslocam-se para as ruas erguendo uma série de lanternas, debaixo da lua cheia, para observar a dança do dragão e do leão, decifrando enigmas, desfrutando dos típicos “dumplings” de arroz glutinoso chamados Yuan Xiao e lançando fogos-de-artifício. Um dia de diversão para velhos e novos. Os “dumplings” simbolizam a união familiar e a felicidade. E são recheados com nozes, sésamo, pétalas de rosa ou carne e vegetais. O modo de cozinhá-los varia do Norte ao Sul da China.
O festival é também marcado por enigmas que são pendurados debaixo das lanternas para que todos possam ler. Enigmas que estão longe de serem convencionais. Um exemplo: “Em que cidade não existem mulheres?” A resposta é: Seul. O nome em chinês é “Han Cheng”, em que Han significa homem e Cheng, cidade.
É também a única altura em que as mulheres podem sair de casa para se divertirem sem sentirem o mínimo de culpa. Eis porque também é considerado o Dia Chinês dos Namorados. Uma oportunidade para os solteiros conhecerem a eventual cara-metade.
Tradicionalmente, lanternas de várias formas e feitios, de vários materiais, estão expostas em feiras de lanternas. Um símbolo da sabedoria e do dom para o artesanato do povo chinês, já que pode ser feito de palhinhas, vidro, melancia, papel ou seda.
Algumas lendas estão por detrás da origem do festival. Conta-se que o começou com a dinastia Han, quando um ministro ouviu uma empregada, chamada Yuan Xiao, a chorar porque não poderia regressar a casa por ocasião do Ano Novo chinês. Com pena, o governante dirigiu-se então ao Imperador e alegou que a cidade estaria destinada a ser destruída por um incêndio 16 dias depois do Ano Novo por ordem do Deus do Fogo. A população, amedrontada, perguntou ao ministro o que poderia fazer. Foi então que o governante afirmou que o Deus do Fogo iria disfarçar-se no 13º dia de mulher vestida de vermelho e que os populares deveriam encontrá-la. Assim, incitada pelo ministro, uma das empregadas, erguendo um vestido vermelho, andou pelas ruas da cidade no 13º dia do primeiro mês. Rapidamente, as pessoas se aperceberam que seria o Deus do Fogo. Assim que se aproximaram, a jovem entregou uma carta aos populares, dizendo que se tratava de um decreto do Imperador Jade dos Céus que devia ser entregue ao imperador. A carta dizia: “Terás azar! No 15º dia do primeiro mês, o Deus do Fogo incendiar-te-á.” Assim que leu o documento, o Imperador pediu ajuda ao ministro. Foi então que o governante incitou o Imperador a ordenar que todos os populares fizessem uma grande lanterna vermelha e a pendurassem no 15º dia. Os populares deveriam sair à rua para ver a lanterna, juntamente com o Imperador e todos os que vivessem no palácio. “Só assim o Deus do Fogo não o encontrará”, dizia o ministro. Como o Deus do Fogo não importunou o Imperador, desde então, em todos os 15º dias do primeiro mês lunar, toda a nação deverá celebrar com lanternas. Pelo menos, é uma das versões contadas da história.
Se se celebra ou não em Macau, é o que hoje se vai ver. Certo é que todos os contactados pelo Tai Chung Pou afirmaram nem se lembrar desse dia. Nem mesmo no site oficial do Turismo constava qualquer referência à data. Em 2005 e 2006, o Governo de Macau organizou uma série de actividades que incluíam jogos, teatro de marionetas, espectáculos de magia e ópera chinesa no Jardim Lou Lim Ieoc e no Largo do Senado. Quanto ao ano passado e ao corrente, nada está programado no site oficial.
Luciana Leitão, com Ina Chiu

Crónica de viagem ao Bangladesh

O país que são dois

Custam 29,9 dólares de Hong Kong e são de uma cor só. As t-shirts da H&M têm uma enorme etiqueta cosida no colar com a indicação “made in Bangladesh”. É uma forma simples de se ficar saber que o país tem uma indústria manufactureira com baixos custos de produção. As notícias sobre o Bangladesh que aparecem nos órgãos de comunicação social são, por norma, relativas a casos de corrupção ou a inundações. No entanto, o país parece que está a mudar lentamente. A questão que se coloca é até que ponto poderá ir a florescente classe média numa nação que padece sempre de algum mal.
Não é preciso dizer o que se vai fazer ao Bangladesh para facilmente se adivinhar o propósito da viagem. No avião, em pleno Ano Novo chinês, a hospedeira lamentava a sorte dos passageiros que, durante os feriados mais populares do ano, continuavam a ter que trabalhar. Com efeito, o turismo é área que quase não existe no país, sobretudo se o compararmos com o seu gigante vizinho, a Índia. À excepção do icónico edifício do Parlamento, desenhado pelo famoso arquitecto Louis Kahn, e de uma meia dúzia de memoriais, a capital do Bangladesh, Dhaka, bem como a segunda maior cidade, Chittagong, têm poucos locais que se possam classificar como sendo de interesse turístico.
Localizado entre a Índia e o Myanmar, antiga Birmânia, o Bangladesh era uma província isolada do Paquistão até ter conquistado a independência, corria o ano de 1971. Não obstante o facto de ter uma significativa reserva de gás natural (calculada em 135,8 mil milhões de metros cúbicos em 2006), a economia da nação islâmica tem estado estagnada desde a sua independência, à mercê de administrações corruptas e pouco eficientes.
O ambiente político que se vive nos dias que correm deixa poucas esperanças de que o país encontre o seu rumo. Em 2007, o presidente interino Iajuddin Ahmed cancelou as eleições e instaurou um governo de excepção apoiado no exército. As manifestações de rua e as greves estão terminantemente proibidas. Dois antigos primeiros-ministros, Khaleda Zia e Sheikh Hasina, continuam presos por corrupção e extorsão, respectivamente.
Para o final deste ano estão agendadas eleições mas os locais duvidam que o Governo cumpra a palavra dada. Quanto à corrupção (o Bangladesh é o 8º pior país neste parâmetro), está bem presente no quotidiano e não é nada difícil de detectar.
As infra-estruturas básicas não chegam a existir. As duas principais cidades do país não têm uma via rápida que as ligue. A companhia aérea nacional, recentemente privatizada, não tem verbas que lhe permitam fazer reparações nos DC-10 e A310, que acusam os anos de voo. O fornecimento de electricidade não é assegurado e todos os dias falha a luz. Não espanta, tendo em conta o contexto, que o Bangladesh não seja um destino turístico.
No entanto, existe uma outra dimensão na vida do país: a classe média (ou alta, dependendo dos padrões de avaliação). Os reluzentes jipes japoneses e as limusinas nas ruas de Dhaka são a fase mais visível do fenómeno, que ganha contornos mais explícitos no bairro elevado da capital, Gulshan. Os hotéis de luxo e os bons restaurantes, que também os há, conseguem contornar os problemas básicos, como o fornecimento de energia, com geradores próprios.
A vida próspera desta classe de elite também se sente em Chittagong, a segunda maior cidade do país, que tem o maior porto do Bangladesh. Além dos centros comerciais e dos edifícios de escritórios em vidro, obras recentes de arquitectura moderna, é possível encontrar restaurantes de luxo, como um buffet instalado num edifício “arte deco”, que tinha aberto as portas poucos dias antes da nossa visita. Um jantar neste elegante espaço, de nome Ambrosia, que até tem um porteiro a receber os clientes, custa apenas 300 takas, ou seja, menos de 40 patacas. Parece o valor perfeito, mas está longe de ser suportável para a maioria dos habitantes.
No primeiro dia passado em Chittagong, surgiu a oportunidade de conhecer Mohsin Musa, um bem-sucedido comerciante especializado em ferro-velho. Um convite para jantar em sua casa permitiu ter noção de como vive esta classe privilegiada de um país pouco afortunado. Mohsin Musa vive num condomínio fechado. A garagem na cave tem um elevador com acesso exclusivo ao apartamento no 9º andar. A casa, com duas salas de estar e três quartos de grandes dimensões, tem varandas a toda a volta, que permitem uma vista geral sobre Chittagong. Os preços praticados no mercado imobiliário subiram consideravelmente nos últimos anos mas, ainda assim, o apartamento onde vive Mohsin Musa custa 600 patacas por metro quadrado.
O repasto oferecido combina com o ambiente. A fruta é importada e a melhor carne, só para as visitas, é servida por volta das 22h00, hora a que por norma se janta no Bangladesh. A família não é numerosa, comparativamente com os agregados familiares que vivem em casas de menores dimensões.
As duas pequenas filhas gémeas do casal Musa dominam o reino do 9º andar e entretêm as visitas com demonstrações ao piano, resultado de aulas particulares. São felizes mas partilham um problema que afecta muitas crianças de Hong Kong e de Macau: os pais têm pouco tempo para elas. Ao contrário da maioria das mulheres da nação islâmica, a mãe trabalha – dá aulas numa escola primária.
A conversa passa a ter então como tema as empregadas domésticas e o facto de serem essenciais na manutenção do equilíbrio familiar e profissional. Musa explica que por 500 takas é possível ter uma empregada a tempo inteiro. Um jantar no Ambrosia custa 300.
E assim se regressa à realidade do Bangladesh, país profundamente dividido política e socialmente. O Produto Interno Bruto per capita foi estimado em 1400 dólares norte-americanos em 2007, um valor mínimo quando comparando com o PIB de Macau de 2006 (28.436 dólares). O sector dos serviços, onde se incluem as actividades comerciais, contribuiu para 52 por cento do PIB, mas apenas 25 por cento da população activa trabalha nesta área.
Em 2000, 28 por cento do consumo tinha sido feito pelos dez agregados familiares mais ricos do país, enquanto 45 por cento dos 150 milhões de bengalis viviam abaixo do limiar da pobreza, de acordo com cálculos de 2004. O desemprego é de apenas 2,5 por cento mas uma parte considerável dos recursos humanos emigrou para os países islâmicos do Médio Oriente. As remessas desta parte da população, calculadas em 4,8 mil milhões de dólares (2005-2006), são a locomotiva da economia do Bangladesh.
O grande número de emigrantes fez com que o país tivesse aberto o seu espaço aéreo, ente Outubro e Dezembro do ano passado, de modo a que os trabalhadores pudessem regressar aos países onde estão a viver. A companhia aérea Biman não estava a ser capaz de dar conta do recado. Uma situação semelhante viveu-se no Ano Novo Chinês. O aeroporto de Chittagong, porta de regresso à capital e a outros destinos mais longínquos, estava cheio de pessoas que se despediam dos seus familiares.
A higiene pública é uma das grandes preocupações do Bangladesh. Em Chittagong, os mercados de rua e o lixo que se acumula nas artérias da cidade fazem com que os mosquitos tenham as condições ideais para viverem e se reproduzirem à velocidade da luz. Existe um grande receio em relação à gripe das aves, uma vez que foram detectados vários casos em aviários do país, mas há corvos em todos os lados, à procura de restos no lixo.
O facto de se viajar num confortável carro com ar condicionado não apaga a realidade. No meio do trânsito, vêem-se vendedores de pipocas, toalhas, artesanato e até romances em inglês. Nos vidros dos automóveis batem ainda idosos, crianças, pessoas portadoras de deficiências e mães com filhos ao colo, que pedem esmolas.
Experienciados dois diferentes países num só, chega a hora do regresso. Faltava pouco para a meia-noite quando cheguei ao Aeroporto de Dhaka. Fora das instalações, colados às grades, dir-se-ia que estavam exactamente os mesmos rostos que me deixaram uma forte impressão aquando da minha primeira visita ao país, já lá vão oito anos. Não se sabe se esperam por alguém mas nota-se que, em vez de esperança, há um olhar de desespero. Estão talvez a aguardar a hora da saída.
Kahon Chan

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