segunda-feira, 14 de janeiro de 2008

O segundo capítulo do caso Ao Man Long; Jorge Morbey, o afro-asiático com pele europeia

Começa hoje julgamento de familiares de ex-secretário e empresários

O segundo capítulo do caso Ao Man Long

Tem hoje início, no Tribunal Judicial de Base (TJB), o julgamento do principal processo conexo ao de Ao Man Long, antigo secretário para os Transportes e Obras Públicas de Macau. Um mês depois das alegações finais do julgamento do ex-governante, num processo que decorreu no Tribunal de Última Instância (TUI) e que ainda não teve o seu desfecho, uma vez que é desconhecida a sentença, começam hoje a ser julgados aqueles que terão sido os principais cúmplices de Ao nos 76 crimes do quais é acusado.
O processo, com o número CR3-07-0215-PCC, envolve a mulher, pai, irmão e cunhada do ex-secretário, Camila Chan Meng Ieng, Ao Veng Kong, Ao Man Fu e Ao Chan Wa Choi, respectivamente. Os familiares são acusados de terem ajudado o antigo governante no branqueamento de capitais que terá recebido ilicitamente a troco de favorecimento de empresários.
Frederico Nolasco da Silva, Ho Meng Fai e Chan Tong Sang completam o grupo de arguidos – sete no total - a serem julgados neste processo e estão acusados de corrupção passiva e de branqueamento de capitais. Ho Meng Fai responde por 18 crimes de corrupção activa e outros tantos de branqueamento de capitais.
De acordo com a acusação do processo de Ao Man Long, o proprietário da empresa Sam Meng Fai terá sido o empresário que mais privilégios obteve, bem como aquele que entregou valores mais elevados ao ex-secretário. A empresa de Ho Meng Fai foi a responsável por importantes construções em Macau durante o período em que alegadamente foram cometidos os crimes, como as obras na Rotunda Ferreira do Amaral e o reordenamento urbano feito na Avenida da Amizade, na zona dos Jardim das Artes.
Chan Tong Sang, da empresa Chon Tit, é acusado de quatro crimes de corrupção activa e da co-autoria de 4 crimes de branqueamento de capitais. Quanto a Frederico Nolasco da Silva, a acusação considera que o responsável pela CSR Macau - Companhia de Sistemas de Resíduos terá cometido três crimes de corrupção activa e um crime de branqueamento de capitais.
O processo destes arguidos decorre separadamente do de Ao Man Long apenas pelo facto de este, enquanto titular de um alto cargo político, ter que ser julgado em primeira instância pelo TUI, de acordo com a Lei de Bases da Organização Judiciária.
As penas previstas para os crimes em causa variam entre dois e oito anos para o branqueamento de capitais e até três anos para a corrupção activa.
Os sete arguidos não deverão estar todos presentes no julgamento que tem a juíza Alice Costa como presidente do colectivo. Tanto quanto se sabe, a mulher de Ao Man Long, Camila Chan Meng Ieng, não está em Macau. O octogenário Ao Veng Kong, pai do ex-secretário, está em prisão preventiva mas cumpre a medida de coação no hospital, dado o seu estado de saúde, e não deverá comparecer. No que toca aos empresários, Ho Meng Fai encontra-se em paradeiro desconhecido. Frederico Nolasco da Silva foi a uma das audiências de julgamento do ex-secretário, uma vez que era testemunha do processo, sendo que Chan Tong Sang alegou estar doente e não esteve no TUI.
De acordo com o site do Tribunal Judicial de Base, os advogados da defesa são David Gomes, Vong Hin Fai, Pedro Redinha, Jorge Neto Valente e Pedro Leal, sendo este último defensor de três arguidos.
À semelhança do que aconteceu durante o julgamento de Ao Man Long, a audiência de hoje ficará marcada por fortes medidas de segurança. É proibido levar para a sala do TJB quaisquer dispositivos electrónicos, material informático e isqueiros.
Isabel Castro
Fotografia: António Falcão/ bloomland.cn

Mais de vinte feridos da colisão entre jetfoils continuam internados

Em situação estável e sem correrem perigo de vida. É assim que se encontram os feridos do acidente da passada sexta-feira entre duas embarcações da Shun Tak, que colidiram lateralmente a cerca de cinco milhas náuticas de Macau. De acordo com informações veiculadas ontem pelo Gabinete de Comunicação Social (GCS), estão ainda internadas 22 das 133 vítimas.
Seis pessoas – quatro homens e duas mulheres – estão no Centro Hospitalar Conde de São Januário. Um dos acidentados tem lesões nas veias, dois apresentam ferimentos no abdómen e três têm fracturas. Deste grupo, apenas um paciente não foi alvo de intervenção cirúrgica. Cinco feridos são portadores de bilhetes de identidade de Hong Kong e um reside na China.
Do Hospital Kiang Wu recebeu ontem alta um dos dezassete pacientes que se encontravam internados desde a noite de sexta-feira. A maioria das vítimas sofre de fracturas, cortes na pele e contusões. Um ferido com fracturas na vértebra cervical continua em situação relativamente grave, adianta o GCS, e os restantes com o quadro clínico estável. Entre os internados, estão várias pessoas de Hong Kong, quatro de Macau, seis da China e uma com passaporte de Taiwan.
Entretanto, continuam por apurar as causas do acidente entre o “Funchal” e o “Santa Maria”. O choque aconteceu às 20h30 da passada sexta-feira, num local que fica já nas águas territoriais controladas por Zhuhai. O “Santa Maria” fazia a ligação entre Macau e Hong Kong e transportava 206 passageiros, além de dez elementos da tripulação; no sentido contrário vinha o “Funchal”, com 239 pessoas a bordo.
Numa conferência de imprensa realizada na noite da colisão, no terminal marítimo do Porto Exterior, a directora da Capitania dos Portos, Susana Wong Soi Man, apontou como uma das causas eventuais do acidente a falta de visibilidade provocada pelo nevoeiro, mas deixou conclusões para depois de terminada a investigação que está a ser feita sobre a ocorrência.
Ontem, o jornal South China Morning Post avançou que o director da Marina de Hong Kong, Roger Tupper, também desencadeou uma operação para perceber a origem do acidente. Um porta-voz da mesma entidade explicou que as autoridades da antiga colónia britânica vão entrar em contacto com os homólogos de Macau.
Ontem, o jornal Ou Mun publicou um artigo sobre a utilidade dos radares instalados, tentando perceber se podem ou não evitar este tipo de situações. De acordo com os especialistas consultados pelo matutino, os equipamentos de que Macau dispõe têm uma grande capacidade de detecção, mas esta não é de 360 graus, pelo que poderá haver “pontos cegos” ou locais não abrangidos pelos sensores.
Um outro perito alertou para a velocidade a que viajam as embarcações, explicando que, mesmo que seja detectado um obstáculo e comunicada a sua presença, dificilmente o navio tem tempo para evitar a colisão. Recorde-se que, segundo as autoridades de Macau, os jetfoils navegavam a cerca de 80 quilómetros por hora quando chocaram. Por sinal, trata-se da mesma velocidade a que, por norma, fazem o percurso, não obstante o facto de as condições de visibilidade da passada sexta-feira estarem longe de serem as melhores.

Jorge Morbey, académico e antigo presidente do Instituto Cultural

O afro-asiático com pele europeia

Diz que nunca foi embora de Macau, embora tivesse saído por diversas vezes, e que ainda não chegou a hora de partir. Daqui a uns meses, é bem provável que o antigo presidente do Instituto Cultural e actual professor de Património e Cultura de Macau da Universidade de Ciência e Tecnologia passe a dividir o ano com Cabo Verde, o país onde nasceu. No entanto, quer estar, pelo menos, seis meses a Oriente. São muitos anos, muitas ligações afectivas, muito encanto. “Sou um mestiço africano e oriental com pele europeia”. É assim que Jorge Morbey se define.
Nascido em Mindelo, diplomado em Ciências Sociais e Políticas pela Universidade de Lisboa, veio parar a Macau vinte anos antes de ter vindo para cá viver. “Era caloiro na universidade e ganhei um prémio literário, que me valeu uma viagem a Macau, onde estive mais de um mês”, recorda. “As minhas memórias mais antigas são de 1965.”
São memórias bem gravadas, com mais de quatro décadas, que ainda hoje servem para pensar no quão diferente Macau sempre foi. “O meu baptismo de fogo foi o desembarque do hidrofoil, que ainda não havia jetfoil”, contextualiza. “Avistei um polícia, vestido com a farda colonial, de caqui amarelo, com o boné e as armas portuguesas, e dirigi-me a ele para lhe perguntar como é que ia para um endereço que trazia comigo. Com o mais simpático sorriso, fez-me perceber que não nos íamos entender em português, porque não sabia uma única palavra.”
Podia ser um episódio pitoresco ou um mero apontamento de viagem, mas para o jovem Morbey foi mais. “Conhecia Cabo Verde, bem como outras regiões do antigo Ultramar português, e nada disto existia. Era impensável, noutro lado qualquer, que o exercício da autoridade fosse feito que não em língua portuguesa. Desde logo percebi que havia aqui, subjacente a esta realidade, tão diferente para mim, algo de novo, que não conhecia. Amadurecendo um pouco mais a ideia, cheguei à conclusão de que a isto se podia dar o nome de cultura de tolerância.” A tese foi sendo confirmada ao longo deste quarenta anos. “Para mim, Macau é o lugar do mundo onde, de facto, existe uma maior cultura de tolerância. Pode haver outro, mas não conheço.”
De regresso a 1965, os tempos que corriam nem sequer eram os mais propícios à interculturalidade. “Estávamos a um ano e pouco dos acontecimentos do ‘1,2,3’. Já se notava alguma tensão nas ruas”, conta. O mês e alguns dias de estadia no Oriente terminaram e, de regresso a Lisboa, Jorge Morbey escreveu um estudo comparativo entre Macau e Cabo Verde, dois espaços pertencentes ao então chamado Ultramar. “O bichinho ficou.”
Mais ou menos adormecido durante alguns anos – que serviram para continuar a estudar, investigar e desempenhar funções em áreas sempre relacionadas com o que agora se chama mundo lusófono – o “bichinho” acordou em 1985, data em que foi convidado para vir para Macau, dirigir o Instituto Cultural, entidade que contava com um par de anos de existência. “Foram quatro anos sensacionais, que duraram até 1989, em que se fizeram muitas coisas”, diz.
Macau tinha “condições excelentes para se fazer obra”. O orçamento para a Cultura foi reforçado um ano após a sua chegada; Morbey e a sua equipa meteram mãos à obra numa série de projectos. “Uma das primeiras iniciativas que tivemos, uns meses depois de ter chegado, foi a abertura da Livraria Portuguesa”, explica. Mais tarde, foi fundada a Revista de Cultura, “uma aposta extremamente interessante”.
Pausa para contextualização. “Tinha a noção de que havia muita coisa em Macau que se escrevia com uma certa impunidade. Vivíamos em perfeita situação de desconhecimento recíproco.” Na segunda metade da década de 1980, a população chinesa e a comunidade portuguesa viviam de costas voltadas. Uma certa ignorância do outro em clima de tolerância.
“Entendi que a Revista de Cultura podia ser, entre outras coisas, uma excelente plataforma para difundirmos ideias e, eventualmente, fazê-las sair da esfera de Macau em inglês.” A revista foi idealizada para ser trilingue e trimestral.
“Nunca se conseguiu que fosse exactamente assim. Os atrasos eram crónicos, e eu passei a dizer que era a revista católica, porque saía quando Deus queria”, diz, com uma gargalhada. Mas certo é que, analisa, “a Revista deu um grande contributo”. E isto porque, embora o meio intelectual em Macau não fosse “muito denso”, os artigos publicado eram traduzidos com “absoluto rigor”, o que resultou “numa grande contenção, no bom sentido”. Morbey explica: “As pessoas começaram a entender melhor o outro. A Revista de Cultura passou a ser um fórum onde o que as pessoas escreviam extravasava a barreira da cultura e da língua.”
O trabalho de Morbey enquanto presidente do Instituto Cultural de Macau teve também forte impacto na cena musical local. “Em 1986, começámos os cursos de instrumentos chineses, na Casa Sir Robert Ho Tung.” Pouco tempo depois nascia a Orquestra Chinesa de Macau. No “pequeno ovo cheio de actividade por dentro” que era a Sir Robert Ho Tung, criou-se uma escola de dança.
Noutro ponto da cidade e provisoriamente – embora lá continue, vinte anos depois – foi lançado o projecto do Conservatório de Macau, com ensino de música, dança e teatro, “sempre com as duas vertentes, a oriental e a ocidental”. Com a Declaração Conjunta Luso-Chinesa para a Questão de Macau prestes a ser assinada, Jorge Morbey defendia que a acção pública deveria ser virada para toda a comunidade.
O conceito aplicou-se também às bibliotecas, remodeladas durante os anos em que esteve à frente da entidade que gere a cultura da cidade. A alçada dos livros e dos arquivos passou da Educação para o Instituto Cultural por insistência de Morbey, que deu início às bibliotecas móveis “uma novidade em Macau”. “À excepção da Sir Robert Ho Tung, as bibliotecas tinham todas muitos livros portugueses, mas não tinham livros chineses”. Muitas das obras vinham de Portugal e quem geria não sabia o que comprar nem como catalogar. Fizeram-se então cursos de técnicos bibliotecários e arquivistas e reorganizaram-se as casas dos livros. “Na área das artes plásticas, criámos a Academia das Artes Visuais.”
Jorge Morbey não esconde uma pontinha de orgulho e muita satisfação pelo facto de muitos dos projectos que desenvolveu continuarem vivos e de saúde. É uma alegria proporcionalmente inversa à sensação de perda que tem em relação aos que não tiveram continuidade. Como o Centro de Línguas, que surgiu dos contactos que Macau tinha com o então Instituto de Línguas Estrangeiras de Pequim, e que lhe permitiu trazer para a cidade um método de ensino de língua portuguesa testado e eficaz. É que, na altura, ensinava-se em Macau o português que se ensinava aos estrangeiros que estavam a residir ao pé do Atlântico. Ou seja, “como é que se compra o bilhete de autocarro e se pede a ementa”. Claro está que, aqui por estas bandas, ninguém pede “chao min” em português.
“Comprámos os direitos de autor para publicarmos os manuais aqui e assim aconteceu. Idealizei um centro de línguas para dar formação em português, cantonês e mandarim, que era menos falado em Macau, eventualmente, que a língua portuguesa. Numa perspectiva a prazo, interessava que alguém ensinasse mandarim em Macau”, explica Jorge Morbey.
“Quem não frequentasse escolas ou não fosse da Administração Pública, não tinha forma de aprender uma destas três línguas. Os cursos, por módulos, foram feitos na Escola Comercial e correram muito bem.” Mas, e porque em todas as histórias há sempre um “mas”, “como muitas vezes acontece quando as pessoas mudam, quem chega acha que vem descobrir Macau e que tudo o que está para trás está mal feito.” O centro morreu pouco tempo depois de ter nascido e agora, vinte anos depois, ainda “não há onde se aprender línguas fora dos sistemas oficiais, excepção feita a explicadores ou professores particulares.”
O homem que acabou por nunca sair de Macau esteve uns anos fora. Em 1990 foi nomeado adido cultural da embaixada de Portugal em Pequim, onde esteve durante alguns anos. Seguiu-se Banguecoque, na Tailândia. Macau esteve sempre presente, as investigações e estudos também, com diversas obras publicadas pelos locais por onde passou. Sempre à procura da lusofonia, ainda antes de esta ter sido inventada.
Em breve, poderá estar de malas feitas para regressar ao país natal, mas não definitivamente. Ainda, diz. “Tenho um convite para ir dar aulas para Cabo Verde, para me radicar lá. Para já queria ficar um semestre cá, outro lá.” O docente de Património e Cultura de Macau que, enquanto presidente do Instituto Cultural, teve um papel activo na classificação e na preservação dos edifícios históricos do território, quer levar a sua experiência para Santiago, para a Praia e para o Sal. Com Cabo Verde a apresentar, no início do corrente ano, a candidatura da Cidade Velha a património mundial da UNESCO, há o despertar das consciências. E muito trabalho por fazer num país que foi sucessivamente atacado por piratas e onde a pobreza falou mais alto do que a contemplação estética, com o aproveitamento de pedras históricas para casas de retalhos.
Isabel Castro
Fotografia: António Falcão/ bloomland.cn

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