segunda-feira, 21 de janeiro de 2008

A importância do debate sobre o processo penal, Carion vai ao hoje ao TJB, Amélia António e o tempo de Macau

Juristas pronunciam-se sobre debate em torno do processo penal

O Direito mais perto da população

É o direito instrumental que mais perto está da população, por ser o conjunto de práticas que suporta o ramo que toca, de forma mais veemente, o exercício da cidadania. O processo penal de Macau vai estar em debate esta semana, a partir da próxima quarta-feira, numa iniciativa inédita da Assembleia Legislativa (AL), que convidou especialistas para debaterem várias questões durante umas jornadas de três dias.
“É um tema sempre actual, porque é uma questão de cidadania, de administração da Justiça”, comentou Jorge Godinho, um dos juristas convidados para participar nas jornadas. O processo penal é “uma questão fundamental”, até porque dele depende a existência de “regras equilibradas para a garantia da defesa” das pessoas que são constituídas arguidas.
Para Pedro Redinha, advogado que exerce em Macau e um dos oradores das jornadas de Direito da AL, o debate em torno do Código de Processo Penal (CPP) reveste-se de toda a pertinência. Defensor acérrimo da revisão da codificação em vigor desde 1997, por considerar que, “sendo muito decalcado do CPP de Portugal, não contemplou a ponderação de certos aspectos estruturais”, o advogado sustenta que “mais do pequenas intervenções cirúrgicas, impõe-se uma revisão geral”.
O debate adquire actualidade não só pelo facto de ter sido revista recentemente a codificação que lhe deu origem, o CPP português, mas também pela atenção que as matérias processuais penais têm despertado nos últimos tempos, com os julgamentos mais mediáticos da história da RAEM, nos processos em que são arguidos o ex-secretário para os Transportes e Obras Públicas, Ao Man Long, os seus familiares e empresários ligados à construção civil.
Tratando-se de uma coincidência, aponta Pedro Redinha, certo é que, “dado o mediatismo destes processos, o seminário ocorre num momento em que a opinião pública está sensível a este tema”. Será assim mais fácil uma aproximação entre um tema de grande carácter técnico e a população sem formação na área.
Pedro Redinha foi desafiado a falar da relação entre advogado e processo penal, do “binómio que existe entre o advogado, enquanto defensor do arguido”, e os instrumentos que assistem o sistema no âmbito do direito penal. Ao Tai Chung Pou, o orador explicou que vai abordar quatro grandes temas, a começar desde logo pelo “direito do cidadão à assistência de e ao acompanhamento por advogado.” Direito consagrado pelo CPP, que prevê que o arguido tenha um defensor, acontece com alguma frequência o cidadão ser chamado a uma instituição judiciária sem o estatuto definido de arguido, mas sair de lá nessa condição. Redinha defende que a “lei ordinária deve fazer consagrar uma disposição em consonância com a Lei Básica”, que define com rigor esta matéria.
Depois, o advogado vai lançar a debate a questão da prisão preventiva, nomeadamente “a duração e os pressupostos para a adopção” daquela que é a mais gravosa das medidas de coação, abordando também o segredo de Justiça e o acesso às provas indiciárias. O advogado entende que “a interpretação que é feita pelos magistrados judiciais é muito ampla, devendo ser restringida”. Em termos práticos, explica, “quando é decretada a prisão preventiva na fase inicial de instrução o segredo de Justiça torna-se um obstáculo que impossibilita a fundamentação”.
Por último, Pedro Redinha vai falar dos pressupostos da apresentação da prova no Tribunal de Segunda Instância e os mecanismos de reapreciação da matéria de facto, questionando qual deverá ser a documentação da audiência de julgamento, de modo a que seja respeitado o princípio da livre apresentação da prova.
Todos estes temas merecem, para o advogado, uma reflexão aprofundada, mas a revisão futura do CPP deve contemplar outros aspectos, como o facto de não tratar do julgado penal e determinar que se recorra subsidiariamente ao caso julgado em processo civil.
Jorge Godinho tem a seu cargo uma intervenção sobre as “Estratégias patrimoniais de combate à criminalidade: o estado actual na Região Administrativa Especial de Macau”. Por outras palavras, o jurista vai analisar matérias relacionadas com o branqueamento de capitais. “Vou tecer considerações sobre as leis aprovadas em 2006.” Para Godinho, o pacote legislativo adoptado pela RAEM “está de acordo com os padrões internacionais definidos após o atentado de 11 de Setembro de 2001”.
Além dos especialistas de Macau, participam no debate académicos de Portugal, da China e de Hong Kong que, em conjunto, deverão fazer uma análise do estado actual do direito processual penal e das suas perspectivas de evolução. Entre os oradores convidados, encontram-se nomes sonantes o do português Jorge Figueiredo Dias, mas também especialistas da China e da antiga colónia britânica, o que permitirá estabelecer comparações entre os diferentes métodos e regras adoptados no âmbito do processo penal de um só país que tem vários sistemas jurídicos.
Isabel Castro
Fotografia: António Falcão/ bloomland.cn

Retomado julgamento dos familiares de Ao Man Long

Director das Obras Públicas entre as testemunhas ouvidas hoje

É hoje retomado no Tribunal Judicial de Base (TJB) o julgamento do processo em que são arguidos os familiares do ex-secretário para as Obras Públicas e Transportes, Ao Man Long, bem como três empresários que, além de serem acusados de corrupção activa, respondem também por branqueamento de capitais. Para a sessão de hoje, a terceira, está agendada a inquirição das primeiras seis testemunhas da acusação. Pelo que o Tai Chung Pou apurou, vão ser ouvidos vários responsáveis da Direcção de Solos, Obras Públicas e Transportes, entre eles o director, Jaime Carion.
O julgamento de Ao Veng Kong, Ao Chan Wa Choi, Ao Man Fu – pai, cunhada e irmão do antigo governante, respectivamente –, da mulher de Ao Man Long, julgada à revelia, e dos empresários Ho Meng Fai, Chan Tong Sang e Frederico Nolasco da Silva começou na passada semana, numa altura em que ainda é desconhecida a decisão do Tribunal de Última Instância em relação ao processo de Ao Man Long.
No site oficial do TUI, à hora de fecho desta edição, não havia qualquer diligência marcada para esta semana nem para a próxima. Detido a 6 de Dezembro de 2006, o antigo governante começou a ser julgado no passado dia 5 de Novembro. As alegações finais foram feitas ainda em Dezembro, antes das férias de Natal, não tendo, na altura, o presidente do colectivo marcado uma data para a leitura da sentença, alegando a complexidade do caso.
Depois de um julgamento que despertou a atenção da opinião pública, as sessões do TJB relativas ao processo conexo têm sido seguidas, de igual modo, com particular atenção. Havia bastante expectativa em relação ao que os arguidos iriam dizer sobre a alegada prática dos crimes. Tanto os familiares como os empresários negaram os crimes que lhes são imputados. O pai disse desconhecer a finalidade das contas bancárias que abriu em seu nome em Hong Kong, bem como para que se destinava a procuração passada ao filho. O octogenário, a quem foi determinada a medida de coacção preventiva, mas que está internado no Centro Hospitalar Conde de São Januário, dado o seu estado debilitado de saúde, acrescentou ainda não ter perguntado qual a razão da abertura de tantas contas bancárias por temer uma reacção negativa de Ao Man Long, que “não gostava de ser questionado”.
Já o irmão e a cunhada explicaram que as contas bancárias de Londres de que são titulares foram abertas a pensar na ida do filho do casal para Inglaterra, o que não chegou a acontecer, tendo sido apoiados nesses procedimentos pelo antigo secretário. Ao Chan Wa Choi e Ao Man Fu basearam a sua defesa na relação de confiança que tinham com Ao Man Long para se declararem inocentes dos crimes de branqueamento de capitais, afirmando desconhecer quaisquer depósitos feitos em Londres. A cunhada disse ainda que não sabia ser a proprietária de uma offshore que, segundo a acusação, serviria para o branqueamento de capitais ilícitos.
Quanto aos empresários, apenas Frederico Nolasco da Silva compareceu em tribunal, sendo que Ho Meng Fai está a ser julgado à revelia e Chan Tong Sang deu permissão ao TJB para que prossiga com o julgamento sem a sua presença. Na última sessão, o director da CSR Macau negou ter cometido os crimes de que é acusado, confessando, no entanto, a prática de um acto ilegal ao ter feito um pagamento ao antigo secretário.
Nolasco da Silva disse em tribunal que os mais de sete milhões de patacas entregues a Ao resultaram de uma exigência do governante e que temia repercussões negativas para o futuro da CSR caso não cumprisse a pretensão do ex-secretário. No mesmo sentido foram as declarações prestadas por Ho Meng Fai na fase de investigação, e que foram lidas durante a primeira sessão por pedido do seu advogado de defesa. Não admitindo ter sido privilegiado na adjudicação de obras por concurso público, o proprietário da Sam Meng Fai confessou ter feito pagamentos a Ao Man Long, por exigência deste, que terá recomendado a empresa de construção civil a vários investidores estrangeiros.
A audiência de hoje está agendada para as 9h30.
Isabel Castro

Associação de Macau organiza visita a Moçambique

Uma viagem de sonho

Financiar é impossível. Os poucos recursos de que dispõe a Associação dos Amigos de Moçambique (AAM) de Macau não o permite. Mas quem queira, e tenha disponibilidade para tal, poderá aderir a uma viagem de sonho à terra de origem ou a um país que sempre desejou conhecer: Moçambique. Podendo inscrever-se até dia 27 de Fevereiro, a visita de grupo está prevista para que aconteça entre os dias 10 e 26 de Agosto e será organizada pela AAM.
Será a primeira vez que se realiza uma iniciativa do género. E surgiu porque várias pessoas já o tinham sugerido. “Há pessoas que têm vontade de lá ir, é um dos países que está na moda, muitos têm saudades da sua terra-natal – e, nós, enquanto associação, entendemos que também é importante levar um abraço a Moçambique por ocasião das cheias”, explica o vice-presidente da AAM, Carlos Barreto. Foram muitos os factores que estiveram na origem da ideia, e acabou por concretizar-se.
Até ao momento, ainda não houve qualquer inscrição, mas “perto de uma dezena já manifestou vontade de aderir”. Indícios positivos que levam o vice-presidente a acreditar que, até dia 27 de Fevereiro, se registe um “número significativo de pessoas inscritas”.
Dessas dez pessoas que se manifestaram “interessadas”, 40 por cento não são “naturais nem ex-residentes”, mas 60 por cento quer revisitar o país de origem. O plano de viagem será apenas semi-traçado. “O que previmos é que nos primeiros três dias da viagem ficaremos juntos em Maputo”, desvenda Carlos Barreto. Será uma oportunidade para “um pouco de cortesia social e alguns contactos com o Governo de Moçambique”. Contactos que poderão despoletar “numa noite cultural ou num passeio a um dado sítio”.
Terminada essa permanência em Maputo, os interessados poderão ainda deslocar-se até ao Parque Nacional da Gorongosa, uma “área de grande diversidade de espécies e com características ecológicas que não se encontram em mais nenhum lugar”, conforme se lê em nota enviada à imprensa. São 3770 quilómetros quadrados localizados no extremo sul do Grande Vale do Rift Africano, que incluem “pastagens salpicadas com remendos de acácias, savana, floresta seca em zona de areias e, sazonalmente, lagunas criadas pelas chuvas e moitas nas elevações criadas pelas térmitas”, conforme descreve ainda o comunicado. Características “únicas” que incluem os “carnívoros mais carismáticos, herbívoros e mais de 500 espécies de pássaros”, e que só ficam manchadas pelo “ecossistema muito ameaçado durante os cerca de trinta anos de conflito civil em Moçambique”.
Outros locais poderão estar ainda na agenda da Associação dos Amigos de Moçambique, como Inhaca, Ponta do Ouro, Bilene, Quissico-lagoas (Závora/Inharrime/Zavala), Xai-Xai/Chongoene, Vilanculos, Arquipélago do Bazaruto (parque nacional), Beira, Nampula (Nacala, praia das Chocas, praia de Fernão Veloso), Ilha de Moçambique, Pemba, Quirimbas, bem como a Suazilândia ou a África do Sul. Independentemente do plano da associação, Carlos Barreto não deixa de salientar que, exceptuando a visita a Maputo, as pessoas estarão “livres para se deslocarem onde entenderem”.
É uma das iniciativas previstas no plano de actividades traçado pela Associação dos Amigos de Moçambique para 2008. Os dois outros grandes eventos já em agenda são a comemoração do aniversário do país africano e a participação na Festa da Lusofonia que, este ano, partirá do tema “instrumentos musicais”. Contando com perto de 70 associados, incluindo alguns “que não são naturais nem residiram no país”, o organismo que representa os residentes de Macau oriundos de Moçambique pretende também continuar a apoiar a integração no território dos estudantes universitários que “entretanto chegaram”.
Luciana Leitão

Amélia António, advogada e presidente da Casa de Portugal

A mulher com o coração nos olhos

São 25 anos de Macau e um quarto de século é uma vida, com outras vidas pelo meio. A de Amélia António passou depressa, tão depressa que quase não deu pelo tempo, que por estas bandas anda célere. Pensa nisso quando olha para o calendário, quando olha para o espelho, quando encontra amigos da mesma idade. “Passou muito depressa, nem acredito. Nós achamos que o tempo em Macau passa mais depressa do que nos outros sítios. O ritmo a que vivemos, a que trabalhamos, a que as coisas acontecem, dá a sensação de que o tempo é menor, porque está tão cheio que não o sentimos passar.”
Na festa dos 25 anos - que a data foi demasiado especial para que passasse sem comemoração -, houve outras pessoas a celebrarem o mesmo tempo de uma vida conjunta. “Há pessoas neste escritório que comemoraram também 25 anos, tal como eu, e isto significa muito”, conta a advogada que chegou a Macau cheia de novas ideias e que, mais de duas dezenas de anos depois, continua com os dias tão preenchidos que não sente a passagem dos dias.
Macau foi um acaso, não estava nos planos nem tinha sido um destino programado, simplesmente aconteceu. Por razões familiares, Amélia António fez as malas e rumou ao Oriente. De Portugal trazia o curso de Direito, que não tirou por acaso, mas que substituiu a paixão original, mais romântica, a da literatura e a da poesia que as Românicas prometiam.
Terminado o liceu, ainda no país de origem, a vida deu voltas que fizeram com que tivesse que ir trabalhar. “Não pude continuar a estudar. Em princípio ia para a área de Românicas, que era algo muito restrito.” Com o 25 de Abril de 1974, conta, a Faculdade de Direito abriu um curso à noite e decidiu matricular-se. O interesse pelas leis surgiu no período em que trabalhou num escritório de advocacia, que “canalizou a minha atenção para outro mundo”. Macau veio logo a seguir e a vida dava outra volta. Era outro mundo.
“Quando cheguei tentei ver o que podia fazer.” A resposta surgiu rapidamente e esteve uns meses no Macau Business Centre, “um escritório que tinha muitas actividades diferentes, na área da promoção do investimento que, supostamente, são feitas por organismos oficiais mas que, na altura, não existiam”, contextualiza. O trabalho de apoio jurídico não a deixou entusiasmada, “não era exactamente aquilo que sonhava fazer, porque queria ser advogada”.
Com outros dois colegas de profissão, Amélia António, inscrita com o número 17 na Associação dos Advogados de Macau, abriu um escritório. “Era o Correia da Silva, o Carmona e Silva, eu e, mais tarde, o meu marido. Fomos os pioneiros de um escritório colectivo em Macau.” Os restantes pertenciam a advogados que trabalhavam sozinhos ou tinham um ou dois colegas a trabalhar no mesmo espaço mas, vinca, este “era diferente, um escritório do tipo societário, com outras características, o que até então não existia”.
A ideia, recorda, “foi muito comentada, as pessoas diziam que não tinha pernas para andar, que não funcionaria porque os advogados juntos não se entendiam, que não havia hipóteses”. O projecto resultou e, 25 anos depois, analisa Amélia António, “é muito engraçado vermos a quantidade de escritórios com muita gente a trabalhar, e ver algumas das pessoas que, nessa altura, diziam que a nossa experiência era, à partida, falhada, estarem hoje nos escritórios com mais advogados em Macau”.
No último quarto de século, muito mudou na profissão que, diz, continua a encarar com um romantismo que alguns acham estar ultrapassado mas que, para a advogada, se resume a uma questão de ética profissional. Amélia António tem uma postura crítica em relação às novas tendências do mundo da advocacia, em que o marketing vale mais do que a relação com o cliente.
“A advocacia vive, essencialmente, de uma relação de confiança. É nesta base que tudo se deve processar, entre cliente e advogado”, sustenta. “Hoje assistimos ao crescimento de escritórios e de multinacionais, por este mundo fora, que funcionam como parquímetros.” Metáfora descodificada, “põe-se o relógio a contar, trabalha-se e cobra-se a metro, e o relacionamento entre advogado e cliente está a desaparecer”. A advogada teme “a morte da advocacia como nós a conhecemos” e a expansão daquilo a que chama “os supermercados de opiniões jurídicas e contratos”.
Sobre o estado do Direito em Macau, preocupa-a a formação de quadros e o facto de se continuar a recorrer à importação como única via de garantir que o sistema funcione. Olhando para o panorama da advocacia em Macau, Amélia Antónia regozija-se com o facto de chegarem à RAEM, todos os meses, novos profissionais da sua área, porque “tal significa que há trabalho”, mas é também sinónimo de que, não obstante o facto de serem muitos os formados localmente, a qualidade ainda está aquém da desejada.
O problema da qualificação não se encontra apenas ao nível dos conhecimentos de Direito, mas também da “língua inglesa, porque os juristas que vão sendo formados localmente, sobretudo os dos cursos em língua chinesa, de uma maneira geral, dominam mal o inglês e, neste momento, os escritórios têm uma grande necessidade de usar a língua inglesa”. São também estes os sinais das mudanças de uma terra que nunca pára.
É precisamente o ritmo de Macau uma das razões que encanta Amélia António e que a fez continuar cá, ano após ano. “Quem gosta de fazer e de ver feito, apaixona-se facilmente por Macau. O primeiro grande impacto que a cidade tem nas pessoas é esta sensação de ver crescer.” E isto não é de agora, “com estes grandes investimentos”, já vem de longe.
“Foi sempre uma cidade muito móvel. Se for a Portugal, sei qual é a loja que está em determinada esquina e o empregado que lá está. Em cada ano encontro-o mais velho, mas ele continua lá”, compara. “Aqui, as pessoas estão sempre a ver o que é possível fazer e partem sempre para algo diferente. Até a fisionomia da cidade não é estável, está em evolução permanente. Julgo que isto cria o primeiro desafio de vida e de realização para quem chega.”
Depois, há o aspecto profissional, “começa-se a trabalhar e a ter hipóteses de fazer coisas que nos apaixonam e que nos levam a pensar na quantidade de anos que precisaríamos para ter a possibilidade de fazer este tipo de trabalho, se alguma vez o fizéssemos”. Juntando a tudo isto “as razões que não se explicam” e o facto de Macau ser “uma cidade onde não se perde tempo de uma forma inútil e desconfortável”, não é difícil o processo de familiarização com a vida de Macau. Os 25 anos de Amélia António aconteceram mais ou menos assim, com a certeza de que “o acesso a outros conhecimentos e a uma outra cultura” a modificaram. “Quanto mais se conhece de outras culturas e pessoas, maior é o interesse e a compreensão do mundo.”
No balanço do quarto de século, a mulher que fala com o coração nos olhos não hesita em atribuir aos filhos a distinção do “melhor que aconteceu em Macau”. E o pior? “O pior não sei”, lança, com uma gargalhada sonora, a advogada que aumenta as horas dos dias para acumular as funções de presidente da Casa de Portugal. “Sou muito optimista. As coisas más são para pôr de lado, as boas são tão importantes que devemos estar sempre virados para elas. As outras passam, não interessa estar a elegê-las nem a dar-lhes muita importância.”

As comunidades que devem ser uma só

Em Macau, em 2008, faz muito mais sentido pensar em comunidade falante de português do que em comunidade portuguesa ou, na análise mais pessimista e “redutora”, em várias comunidades portuguesas. A análise é feita por Amélia António, presidente da Casa de Portugal, que defende uma presença mais activa e visível da lusofonia, não só por interessar aos membros da comunidade mas também porque convém a Macau.
“Somos um todo, enquanto comunidade portuguesa, e devemos tender a ser um todo enquanto comunidade falante de português, que é uma nota ainda mais importante do que ser apenas português”, sustenta a responsável. “Ser lusófono, neste momento em Macau, é muito mais importante, na medida em que a constituição de uma comunidade mais alargada, com mais impacto social, com mais sonoridade e visibilidade, é indispensável e fundamental, quer para todas as comunidades de falantes de língua portuguesa, quer para Macau também.”
Sublinhando que “as comunidades lusófonas foram, todas elas, elementos integrantes do desenvolvimento de Macau”, a presidente da Casa de Portugal lembra que, numa perspectiva histórica, “a identidade própria de Macau tem muito a ver não só com os portugueses, mas com os lusófonos que vieram com eles”. Ou seja, “existem costumes, hábitos alimentares, gastronomia e cheiros, que se juntaram aqui e foram ficando”, sendo que “a identidade de Macau se autonomizou através destes movimentos”.
Se a comunidade falante de língua portuguesa teve este peso na construção da identidade que distingue o território do cenário que o envolve deve então, na opinião de Amélia António, continuar a desempenhar esse papel. “Há um défice de realização da nossa parte”, aponta. “Tudo o que pode acontecer depende mais de nós próprios, falantes de língua portuguesa, do que de qualquer outro factor.”
Com as alterações demográficas de Macau e os novos grupos sociais que se vão formando, é inevitável a comparação entre as posturas de diferentes comunidades. Nos tempos que correm, a afirmação lusófona na RAEM é mais difícil de ser alcançada, porque a concorrência é forte. “Estamos a assistir ao crescimento de outras comunidades, que são muito activas, muito sonoras, com grande impacto visual e público, em contraponto com uma certa forma discreta de estar da comunidade portuguesa. Temos tendência para sermos silenciosos, fecharmo-nos nos nossos pequenos círculos e esquecermo-nos de que fazemos parte de um todo”, analisa.
Se não houver um esforço da comunidade lusófona na preservação das características que ajudaram Macau a ser diferente, corre-se o risco dessa tal identidade desaparecer, alerta a advogada. E tal não será benéfico para Macau. “Com a dimensão que tem, a cidade só é um sítio interessante e que atrai pessoas se conseguir não se deixar engolir por estes movimentos todos, se conseguir continuar a ser um sítio diferente”, vinca. Ressalvando que “seria quixotesco pensar que há aspectos da globalização aos quais podemos fugir”, a presidente da Casa de Portugal delega a responsabilidade da manutenção da diferença nos elementos da comunidade a que pertence. Mas não é um desejo solitário nem desenquadrado, reitera. “Penso que Macau tem um interesse comum à comunidade de língua portuguesa, que é exactamente que se continue a fazer algo diferenciado, que tenha a ver com esta identidade do território, em contraponto a tudo o que vai crescendo de características globais.”
Isabel Castro
Fotografia: António Falcão/ bloomland.cn


Sem comentários: