sábado, 1 de dezembro de 2007

O que dizem os sonhos, Um cartoonista para Macau

Bookachino acolhe workshop sobre psicologia

As mensagens dos sonhos

Quando são agradáveis atribuímos-lhes a tonalidade rosa, quando são aflitivos chamam-se pesadelos. Por vezes soltamos gargalhadas, choramos ou gritamos. Tudo isto acontece entre os lençóis, enquanto dormimos. Os sonhos fazem parte da natureza humana.
“Conjunto de ideias e imagens mais ou menos confusas e disparatadas, que se apresentam ao espírito durante o sono”, é a definição dada pelo dicionário da língua portuguesa. Carl Jung e Sigmund Freud provaram, no entanto, que os nossos sonhos não têm nada de disparate. Hoje em dia, os estudos dos dois especialistas europeus são aplicados por psicólogos de todo o mundo. É o caso de Shirley Ma, uma verdadeira “médica dos sonhos” que vem hoje a Macau ajudar os residentes a interpretarem as imagens aparentemente disparadas que surgem durante o sono.
“Compreender os nossos sonhos, compreendermo-nos” é o tema do primeiro de um conjunto de workshops promovidos na RAEM pelo Instituto Ripples Psychological Ensemble. A livraria Bookachino vai ser palco do seminário orientado pela psicanalista radicada em Hong Kong. Ao longo de duas horas, a oradora vai apresentar ao público a psicoterapia de Carl Jung e a sua relação com Sigmund Freud. A última parte da palestra está reservada ao tema do inconsciente. Shirley Ma pretende mostrar como são importantes e úteis os sonhos para a vida dos indivíduos.
“Sonhamos todas as noites e os sonhos são uma mensagem do nosso inconsciente para dizer quem somos e como nos comportamos em várias situações, desde o emprego ao casamento”, explicou a única especialista chinesa em psicologia junguiana formada no Instituto Carl G. Jung de Zurique, na Suíça.
De acordo com a analista, os sonhos assumem vários papéis. Podem ter uma função compensatória dizendo-nos o que nos faz falta e o que podemos fazer para colmatar essa carência. “O sonho funciona como um guia na nossa carreira profissional, escolhas pessoais ou até na vida conjugal, porque dizem a verdade sobre nós. Se somos demasiado arrogantes ou modestos, por exemplo”, sublinhou.
Enquanto dormimos, o inconsciente também nos permite, segundo defende Shirley Ma, viajar no passado, presente e futuro. “É possível voltar ao período de infância, relembrar episódios que esquecemos ou recalcámos. Os casos de abuso sexual são revelados através dos sonhos”, defendeu a mesma responsável.
Todos já sonhamos com algo que se irá passar num futuro próximo, quando nos espera um acontecimento importante, como um exame escolar ou um compromisso de trabalho. A isto chama-se sonho de antecipação.
“Podem ser avisos ou alertas da possibilidade de acontecer um acidente ou uma morte. Um dos meus pacientes previu o dia da morte da mãe. Após uma análise, descobrimos que ela ia morrer na Primavera, porque surgiam imagens de árvores com as folhas a brotar. Foi uma intuição que realmente se concretizou”, garantiu.
Relativamente ao presente, os sonhos podem funcionar, por exemplo, como diagnósticos médicos, indicando que estamos doentes. “Uma paciente que sofria de depressão nervosa, sonhava com uma avalanche de lama preta que prestes a atingi-la. A lama preta significa doença”, apontou.
Shirley Ma nasceu na região vizinha, mas completou os seus estudos na Europa e no Canadá. No ano passado, voltou para Hong Kong, onde actualmente exerce a sua profissão. O seminário que Macau vai conhecer hoje já deu a volta ao mundo, desde a América à Europa, passando pela China. A psicanalista trabalha com instituições académicas, profissionais das áreas da assistência social e ensino, bem como com o público em geral.
É uma das únicas especialistas que combina os conhecimentos chineses com a psicanálise de Carl Jung. Daí que seja requisitada para orientar seminários, cursos de Verão, entre tantas outras iniciativas, em vários pontos do globo. Recentemente, fundou o Centro Jung de Hong Kong que funciona como um fórum para formar psicanalistas junguianos na Ásia.
A psicologia analítica fundada pelo psiquiatra suíço é o denominador comum desta série de três seminários promovidos no território pelo instituto Ripples Psychological Ensemble. Carl G. Jung via o inconsciente – simbolizado pelo oceano ou a floresta – como uma fonte de sabedoria tanto para o indivíduo como a sociedade. Jung acreditava que os sonhos concedem a melhor possibilidade para se chegar ao lado inconsciente da pessoa. Actualmente, o pensamento junguiano tornou-se mais popular no seio das ciências humanas e da psicanálise do que os ensinamentos de Freud.
O instituto Ripples Psychologial Ensemble é uma organização independente de profissionais que pretendem oferecer serviços de psicologia de carácter internacional. Agora também com representação em Macau, este grupo quer funcionar como um agente positivo de mudança, trabalhando tanto com o público em geral, como com organizações e empresas.
Alexandra Lages

Ah Cheng, cartoonista

A arte do quotidiano

Numa cidade moderna como a nossa, onde o stress se acumula devido à rotina do quotidiano, há quem se refugie em museus de arte para observar objectos preciosos, como forma de combater o tédio. Embora muitas pessoas pensem que a arte só se encontra em museus e em galerias, na realidade ela está presente em objectos banais como o jornal que se lê todos os dias.
Desde a década de 1970 que o cartoonista Ah Cheng trabalha a um ritmo intenso de modo a providenciar ao leitor o prazer diário de uma tira de banda desenhada na imprensa de Macau. Ao longo dos anos, os seus desenhos têm feito parte da vida diária de muitos leitores e têm, por certo, provocado centenas de sorrisos. A avaliar pelo número extremamente limitado de cartoonistas em Macau, imagina-se com facilidade que esta profissão não é das mais fáceis ou populares do nosso tempo.
Nascido em Macau em 1951, o nome de Ah Cheng é, na realidade, Chan Wai Fai. Oriundo de uma família que desenvolvia negócios relacionados com papel, a paixão de Ah Cheng pelo desenho não contou com o apoio do pai. “Quando era miúdo, chegou a proibir-me de desenhar em casa. Tinha que esperar que todos se fossem deitar, para então pegar nos meus lápis e papel e desenhar até amanhecer.”
Apesar das proibições paternas, Ah Cheng continuou a praticar a sua arte em segredo durante a noite, o que fazia com que, conta, adormecesse frequentemente nas aulas. Recorda que, na altura, não conseguia perceber a determinação do pai em relação ao desenho. Só mais tarde, em adulto, é que entendeu que o progenitor pretendia evitar que o filho sofresse com as dificuldades desta carreira.
“Publiquei o meu primeiro desenho em 1968, no jornal da escola. As reacções foram positivas e tinha muita vontade em continuar a desenhar, mas tive que desistir no final da escola secundária”, conta. Ah Cheng entrou no mundo do trabalho, como aprendiz de alfaiate numa loja da cidade. Viviam-se tempos em que havia a convicção de que uma formação prática seria a garantia de um rendimento estável. Enquanto aprendiz, Ah Cheng trabalhava até muito tarde na alfaiataria. Mas as experiências de infância fizeram com que conseguisse, durante a noite, continuar a desenhar. Quando pensa neste período difícil da sua vida, Ah Cheng realça que, devido à falta de oportunidades, muitos cartoonistas talentosos tiveram que abandonar as suas carreiras.
“Em Macau há muitos poucos canais para que os cartoonistas possam mostrar os seus trabalhos. Na altura, havia muita gente a escrever e a desenhar, mas não havia muito jornais, isto para não falar, sequer, de revistas!” Tornou-se óbvio para Ah Cheng que não poderia viver apenas das suas publicações diárias na imprensa. Durante estes anos, mudou de profissão várias vezes. “O local onde fiquei por um período maior foi no Macau Jockey Clube. Foi importante para mim porque desenvolvi um estilo de trabalho pragmático. Quando me davam uma tarefa para executar, fazia-a imediatamente. Isto teve uma influência directa no meu desenho”, diz.
Em 1998 e 1999, durante o período da transferência de administração de Macau, Ah Cheng ficou sem emprego. “Foi um grande momento para Macau e para mim. Ficava em casa e pensava muito na forma como poderia desenvolver o meu trabalho.” Foi então que surgiu uma ideia. Ah Cheng detectou um sentimento generalizado de nostalgia que quis expressar através dos seus desenhos. Para começar, decidiu mudar o seu material de trabalho, deixando de lado as canetas que usava e passando a usar pincéis chineses e tinta em papel de arroz.
“Quando comecei, não tinha uma única pista acerca da pintura chinesa. Na realidade, ainda não tenho. Mas, lentamente, comecei a desenvolver o meu estilo, que não tem nada a ver com a forma tradicional de pintura. Não posso comparar os meus trabalhos de cartoonista com a profundidade da pintura tradicional chinesa. Uso apenas os instrumentos conforme aquilo que sinto.” Ah Cheng explica que, quando olha para o papel, as imagens começam a desenhar-se na sua mente. Recorda que, quando era miúdo, não estava autorizado a ir para rua com frequência, pelo que guardou memórias muito vívidas de pormenores que via, principalmente dos inúmeros vendilhões que existiam, na altura, na cidade. “Lembro-me de jogos de infância e dos vendilhões na rua que vendiam doces e muitas outras coisas. Até me lembro dos nomes deles! Então comecei a passar essas imagens para o papel.” Desenho atrás de desenho, Ah Cheng foi registando os cenários que guardava da sua infância. Depois de ultrapassar os duzentos exemplares, decidiu organizar a sua primeira exposição individual, na Plaza Cultural de Macau. A mostra “Fora do tempo?” foi inaugurada em Maio de 1999 e foi muito bem recebida pelo público. Simultaneamente, publicou um álbum com os seus trabalhos.
“Apercebi-me que estes desenhos não representavam apenas as minhas recordações de infância mas sim as memórias colectivas de Macau. Entendo que a arte deve ser capaz de chegar ao coração de quem vê. É a catarse da partilha de memórias comuns.” De facto, a exposição de Ah Cheng fez com que muitas pessoas quisessem falar com ele sobre “os velhos tempos” e, destas conversas, veio a inspiração para os trabalhos que se seguiram. “Durante a minha exposição conheci uma senhora idosa que vivia num lar. Contou-me que teve que fazer um pedido, de modo a poder sair do lar, propositadamente para ver a minha exposição. Estava muito feliz por poder recuperar algumas memórias preciosas através dos meus desenhos.”
Com o encorajamento do público, Ah Cheng continuou o seu trabalho enquanto cartoonista, publicando-o no jornal Va Kio e, em Hong Kong, no Ming Pao, todas as semanas. Encontra-se agora a preparar o seu segundo livro de desenhos. Além de ser cartoonista profissional, Ah Cheng também trabalha enquanto coordenador de projectos da Associação de Promoção das Indústrias Criativas do Bairro de São Lázaro. “Não estou à espera que aconteça algo de grandioso na minha vida. Mas espero poder continuar a trabalhar todos os dias, o mais possível. Mantenho-me concentrado e tenho a esperança de que, desta forma, tudo seja melhor,” remata.
Texto e fotografia: Alice Kok, artista visual

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