terça-feira, 8 de abril de 2008

Classe jurídica de Macau é contra a intervenção do CCAC no sector privado, Descobrir novos mundos com arte

Classe jurídica de Macau é contra a intervenção do CCAC no sector privado

Das competências à competência

O alargamento das competências do Comissariado Contra a Corrupção (CCAC) ao sector privado não é acolhido com agrado pela classe jurídica de Macau. A grande maioria dos advogados a exercer no território que aceitou o repto lançado pelo Tai Chung Pou, respondendo a um inquérito sobre a matéria, diz não concordar com as intenções do Governo de Macau em relação à intervenção deste órgão de investigação no sector privado: 79,1 por cento dos inquiridos disseram não estar de acordo, contra 20,8 por cento que se mostra favorável a esta medida, anunciada aquando da apresentação das Linhas de Acção Governativa para 2008, e cujos detalhes ainda se desconhecem.
O assunto foi debatido recentemente, por iniciativa do CCAC, que convidou especialistas de diferentes origens a pronunciarem-se sobre a matéria. Na generalidade, e embora deixando alguns alertas, esses mesmos académicos disseram ser favoráveis a uma extensão do trabalho do órgão ao sector privado. Diferente opinião parecem ter, contudo, os operadores do Direito de Macau.
“A questão tem sido mal colocada junto da opinião pública, na medida em que se tem enfatizado o aspecto das competências do CCAC (i.e., estender ou não estender) em detrimento do problema fundamental subjacente, e que é o de saber se o legislador deve ou não criminalizar determinados comportamentos nas relações privadas, que hoje em dia não são crime”, considerou um dos juristas que respondeu ao inquérito do Tai Chung Pou. “Se o legislador decidir enveredar pela criminalização, então sim, poderá pensar-se na questão da competência para a investigação do crime.”
O mesmo especialista, com vários anos de trabalho em Macau, mostrou “as maiores reservas quanto à opção de criminalização”, dizendo temer que, “mais uma vez, se esteja a copiar apressadamente do sistema legal de Hong Kong sem atentar na existência de diferenças fundamentais entre os dois sistemas”.
Quanto à criminalização mencionada por este jurista, há que provar que é necessária. “Dou um exemplo: de acordo com as intenções do CCAC seria criminalizado o comportamento do trabalhador A que, encarregado pelo patrão de adquirir determinado equipamento para a empresa B, adquirisse esse equipamento ao fornecedor que lhe oferecesse, a ele, uma ‘comissão’, e não àquele que fizesse a melhor oferta para a empresa B.” A seguir, vem a questão: “Os mecanismos do direito privado não são suficientes para resolver o problema, nomeadamente considerando que o patrão pode penalizar o trabalhador se tiver conhecimento do sucedido? É necessário o Estado, através do Direito Penal, ‘meter-se ao barulho’ e gastar recursos públicos na investigação e punição do eventual crime?”
Para este especialista, “a conduta do trabalhador do sector privado não pode ser equiparada à do funcionário público em circunstâncias semelhantes, exactamente porque este último é pago por dinheiros públicos e tem a seu cargo interesses públicos”. Deste modo, “não podem as condutas do funcionário público e do trabalhador privado ser englobadas num rótulo único de ‘corrupção’, sob pena de estarmos implicitamente a aceitar a visão totalitária e grosseira - própria dos regimes comunistas e felizmente caída em desuso - segundo a qual todos os cidadãos são, num sentido ou noutro, funcionários do Estado”.
Mesmo que se opte pela criminalização, continua o jurista, “o crime em causa não deve cair sob a alçada do CCAC”, desde logo porque a vocação do Comissariado é combater a corrupção no sector público”. O especialista recorda que “os órgãos normalmente competentes para perseguir o ilícito criminal são o Ministério Público e a PJ, sendo o CCAC uma excepção à regra”, pelo que não vê razões para alargar essa excepção que, refere, “mesmo no caso da corrupção no sector público, já é difícil de justificar”. Fica um conselho final: “É em geral péssima política, conducente ao caos e à confusão, ‘partilhar’ competências idênticas por órgãos diferentes.”
Para um outro advogado, que também aceitou o repto do Tai Chung Pou deixando comentários sobre a questão, o alargamento das competências do órgão que tem Cheong U como responsável máximo não deve acontecer “até que o CCAC demonstre ser competente e respeitador intransigente dos direitos de defesa do cidadão”.
Chegamos então à segunda questão lançada aos juristas de Macau. Sendo o CCAC um órgão que funciona, aparentemente, sem qualquer fiscalização por uma entidade independente, poderá o alargamento das competências ao sector privado colocar em causa as garantias dos cidadãos? Quase 96 por cento dos auscultados diz que sim – há um risco ao nível das garantias. Para um dos advogados inquiridos, não só “há um grande risco” como “o actual estágio de desenvolvimento de Macau, em quase todos os sectores, inclusive cívicos e culturais, não permite acalentar grandes melhorias”.
O Tai Chung Pou quis ainda saber o que pensa o círculo jurídico acerca da excepção que a Lei 10/2000 estabelece a favor do CCAC, relativamente à regra geral que está consagrada no Código de Processo Penal, e que permite ao organismo não estar sujeito a nenhum prazo para concluir uma investigação criminal. A matéria está a ser avaliada na Assembleia Legislativa, depois de o advogado João Miguel Barros ter apresentado uma petição nesse sentido, alegando a sua inconstitucionalidade. A grande maioria dos auscultados parece partilhar a leitura de Barros. Foram 91,6 por cento aqueles que disseram concordar com o fim do regime de excepção.
Criado em 1992, depois de um processo de vários anos, o CCAC - à altura da sua criação designado de Alto Comissariado Contra a Corrupção e a Ilegalidade Administrativa – teve como fonte de inspiração a entidade homóloga de Hong Kong, criada em 1975. Afirmando-se como um “órgão público e independente que tem como principal objectivo o combate à corrupção e à ilegalidade administrativa”, nasceu a pensar no sucesso da fórmula da Comissão Independente Contra a Corrupção (ICAC, na sigla inglesa).
No entanto, o órgão de Macau não parece gozar da reputação do ICAC (ver texto na página 3), pelo menos entre a classe jurídica local. Cinquenta por cento dos advogados auscultados acha que o trabalho do CCAC é “médio”, sendo que 45,8 por cento chumba o Comissariado, atribuindo “mau” como classificação. Apenas 4,1 por cento dos inquiridos entende que a prestação do Comissariado é boa. Ninguém deu um “excelente” como nota final.
O inquérito do Tai Chung Pou, feito através de correio electrónico, foi enviado a 74 licenciados em Direito a exercer em Macau, que dominam a língua portuguesa, e decorreu entre o dia 20 de Março e o passado domingo. Deste total, foram recebidos 24 inquéritos considerados válidos, representando a opinião de advogados a trabalhar nos principais escritórios da RAEM.

Houve quebra do segredo justiça no caso Ao, dizem advogados

Foi uma história que abalou Macau com força, mas que aparentemente engrandeceu o trabalho do Comissariado Contra a Corrupção, que até inscreveu o facto na história do organismo, disponível no seu site. A forma como o Grupo D do Departamento de Investigação cumpriu o seu trabalho no caso Ao Man Long mereceu, inclusivamente, a atribuição da medalha de valor pelo Chefe do Executivo. Estávamos no final de Dezembro passado, altura em que o antigo secretário para os Transportes e Obras Públicas aguardava, no Estabelecimento Prisional de Macau, a decisão judicial que o viria a condenar, sensivelmente um mês depois, a 27 anos de prisão.
Durante o processo, o CCAC foi acusado de ter quebrado o segredo de justiça. O comissário Cheong U veio recentemente dizer que não, que tudo foi feito de acordo com a lei. Certo é que, ainda o julgamento de Ao estava longe de começar, e o caso estava já dado como praticamente concluído: o Comissariado mostrou ao público as incriminadoras provas encontradas na sua residência, um entre vários factos que foram censurados por advogados locais.
Para 91,6 por cento dos juristas que responderam ao inquérito do Tai Chung Pou, houve quebra de sigilo no caso que teve como arguido o antigo governante. Os restantes 8,4 por cento optaram por não responder, dizendo não terem suficiente conhecimento do processo. Nenhum auscultado concorda, assim, com a defesa de Cheong U.
Também durante o julgamento do ex-secretário o CCAC foi alvo de críticas. O defensor de Ao tentou, sem sucesso, que o tribunal não considerasse válido o meio de obtenção da maioria das provas, uma vez que o Comissariado foi à residência do antigo governante sem o notificar para estar presente ou se fazer representar, ao contrário do que dita o Código do Processo Penal de Macau.
Contestada também foi a forma de depoimento dos inspectores do CCAC, que recorreram a meios informáticos para mostrarem ao tribunal os cálculos que fizeram para chegar à conclusão de que Ao Man Long era culpado dos crimes de corrupção passiva que lhe eram imputados. As próprias expressões utilizadas, reveladoras da convicção existente em torno da culpa do então (ainda) arguido, foram motivo de contestação no julgamento do processo 36/2007, como têm sido agora durante as audiências do caso que tem como arguidos quatro familiares do antigo secretário e três empresários de Macau.
Isabel Castro
Fotografia: António Falcão/ bloomland.net

Reputação da ICAC manchada por investigações no sector privado

No melhor pano cai a nódoa

Gozando de uma excelente reputação no combate à corrupção, a Comissão Independente Contra a Corrupção (ICAC, na sigla inglesa) revelou-se um sucesso mal foi estabelecida, no início dos anos 1970. A antiga colónia britânica era, na altura, fortemente afectada pela criminalidade ligada à corrupção. No entanto, os últimos anos têm trazido novos desafios e alguns problemas, relacionados sobretudo com as investigações feitas no sector privado.
A população de Hong Kong aumentou consideravelmente na década de 1950, com a vaga de imigração oriunda da China Continental. A economia começou a desenvolver-se, com o sector manufactureiro na origem desta expansão do território. Contudo, os recursos públicos limitados, disponibilizados na altura pela administração britânica, não foram capazes de responder às exigências da mudança radical a que se assistia.
Assim sendo, à semelhança do que acontece com muitas sociedades em desenvolvimento, a corrupção tornou-se uma prática comum. Na década de 1960, os condutores das ambulâncias pediam “uns trocos para o chá” antes de levarem os doentes para o hospital. Os bombeiros também exigiam uma taxa para apagarem os incêndios e até os funcionários das empresas de telecomunicações pediam aos consumidores um “bónus” para acelerar o processo de instalação dos telefones nos domicílios.
A corrupção entre as autoridades policiais começou a atingir proporções alarmantes. Em 1973, descobriu-se que o superintendente Peter Godber era detentor de valores pouco usuais e injustificáveis – 4,3 milhões de dólares de Hong Kong, muito dinheiro para os tempos de então. Godber ainda teve uma semana para apresentar uma justificação razoável acerca da origem da sua fortuna; em caso contrário, seria detido. O superintendente acabou por fugir para o Reino Unido e o desfecho da história enfureceu a população, fúria visível nas manifestações feitas a pedir a extradição do membro da polícia.
A administração britânica estava particularmente sensível à questão, até porque os violentos conflitos de 1967 estavam ainda bem vivos na memória colectiva. O Governador decidiu nomear uma comissão independente para analisar a situação. Este grupo de trabalho concluiu que a melhor solução passava pela criação de uma comissão independente, directamente sob a alçada do responsável político máximo do território.
A Comissão Independente Contra a Corrupção foi assim criada em Fevereiro de 1974, numa altura em que Murray MacLehose era o Governador, com três objectivos definidos: aplicação efectiva da lei, prevenção e educação. Já com a ICAC a funcionar, o superintendente Godber acabou por ser acusado e o seu caso passou a ser a bandeira contra a corrupção.
Ao contrário do que acontece em Macau, a Comissão foi desde logo autorizada a investigar entidades privadas.
A forma independente de funcionamento da ICAC demonstrou que a fórmula era bem-sucedida e fez com que Hong Kong se tivesse tornado um dos locais do mundo onde a corrupção tem menor peso: o mais recente relatório da Transparency International situa a RAEHK em 14º lugar num total de 179 países. Mas o percurso da ICAC não se fez só de louros – as dificuldades têm sido muitas, até porque tem acontecido os obstáculos virem do próprio Governo.
O primeiro conflito entre a Comissão e a Polícia ocorreu logo em Outubro de 1977, quando 260 agentes policiais de Hong Kong foram detidos, acusados de corrupção. Dois deles acabariam por se suicidar no início do ano passado, exactamente 30 anos depois do escândalo. Na altura, centenas de membros da Polícia protagonizaram uma manifestação à porta da casa do Governador. Dentro da própria ICAC, procedeu-se à reformulação dos inspectores.
Em 2002, um outro caso veio opor os dois órgãos de investigação criminal. Um agente da Polícia foi acusado de ter relações sexuais gratuitas com uma prostituta, a quem fornecia informações internas e confidenciais.
Nos últimos anos, tem havido uma forte discussão em torno das competências da Comissão, sendo que deu origem a nova legislação. Em Julho de 2004, inspectores da ICAC entraram de rompante nas redacções de seis grandes jornais da RAEHK - incluindo o South China Morning Post, o Apple Daily e o Oriental Daily - , à procura de provas acerca da identidade de uma testemunha envolvida na investigação da fraude que aconteceu na Semtech International. O episódio deu origem a protestos dos órgãos de comunicação social e ficou a sensação de que a liberdade de imprensa poderia estar a ser posta em causa.
A Comissão acabou por se encontrar com os representantes dos jornais visados, mas o Sing Tao Daily pediu ao Supremo Tribunal que se pronunciasse sobre a questão. Do ponto de vista técnico, o jornal ganhou a causa, mas a primeira instância – a quem a ICAC tinha recorrido – encontrou apenas erros processuais e deixou o recado: a Comissão tinha o direito de agir daquele modo, porque havia necessidade de equilibrar a liberdade de imprensa e o interesse público.
Os problemas surgiram de novo quando, em 2005, o advogado Cheng Huan colocou em causa as técnicas usadas pela ICAC na obtenção de provas num caso de subornos, verificado numa empresa cotada em bolsa. A Comissão tinha feito escutas telefónicas não autorizadas e o tribunal acabou por dar razão à pretensão do causídico, considerando nulo o meio de obtenção de prova.
Num outro caso de fraude, que envolveu Mo Yuk-ping, a ICAC usou o mesmo método para ficar a saber que a suspeita pediu a terceiros para não colaborarem com os investigadores, tendo sido por isso acusada de obstrução à justiça. Andrew Lam, advogado e antigo investigador da Comissão, acusou o organismo de ter montado uma ratoeira e criticou o “atentado à liberdade de comunicação”. “Não podemos abdicar do direito de comunicarmos livremente por haver uma suspeita de obstrução à justiça”, disse na ocasião.
Mo Yuk-ping acabou por ser considerada culpada, depois de 18 meses passados em prisão preventiva. Andrew Lam tinha estado envolvido no caso das buscas nos jornais em 2004 e acabou por ser acusado exactamente do mesmo crime imputado à sua cliente. Tido como um dos três grandes opositores aos métodos da ICAC, foi condenado e detido, um caso que gerou grandes preocupações entre a comunidade jurídica local.
O Governo acabou por decidir alterar a legislação relativa às escutas telefónicas e criou uma comissão especial para o efeito, que tem como comissário um juiz da última instância. De acordo com o primeiro relatório desta comissão, divulgado no final de 2007, a Polícia, a ICAC e o Departamento de Imigração fizeram 526 escutas telefónicas entre Agosto e Outubro do ano anterior.
As falhas não foram completamente colmatadas com a nova comissão. Um residente de Hong Kong teve o telefone sob escuta, por engano, durante sete dias. Os autores do erro foram obrigados a pedir desculpa ao residente que viu a sua vida privada auscultada pelas autoridades policiais.
Os pedidos de desculpa de pouco valem e existe a noção de que os erros podem voltar a acontecer mas, pelo menos, a população de Hong Kong tem acesso a um relatório anual que permite perceber o trabalho do organismo e como é feita a tal aplicação efectiva da lei, mesmo quando em nome desta outros direitos são alegadamente postos em causa.
Kahon Chan, em Hong Kong
com Isabel Castro

Casa de Portugal promove workshops de xilogravura e ciência da cor

Descobrir novos mundos com arte

“Quando fui à entrevista de emprego disse logo que às terças e quintas-feiras não estava disponível.” Rute Azevedo fala sem fixar ninguém nos olhos. De goiva na mão, raramente descola o olhar do desenho feito na sua placa de madeira. O trabalho exige concentração e perícia. Com o instrumento metálico é preciso retirar a madeira por baixo dos traços feitos a lápis. Nem muito, nem pouco. As curvas das nuvens da imagem do bonsai não são fáceis de dominar.
Mesmo assim, as aulas do artista plástico Joaquim Franco não se fazem em silêncio. A aprendizagem da arte é acompanhada de conversas cruzadas. Ora sobre a técnica, ora sobre o simples e normal quotidiano. São todas mulheres, oriundas de três gerações diferentes.
Mais do que descobrir uma nova arte, a turma do mestre Franco começa a conviver e a conhecer as suas capacidades. É a terceira sessão do workshop de xilogravura promovido pela Casa de Portugal em Macau (CPM), no albergue da Santa Casa da Misericórdia, no Bairro de S. Lázaro.
“Vocês estão todas em cima umas das outras, há mais espaço na bancada, podem espalhar-se mais”, aconselha o professor. As três alunas fazem ouvidos moucos. Sentadas lado a lado, uma não atrapalha a outra e assim é mais fácil trocar conselhos técnicos e continuar a conversa.
Paula Figueiredo ultima os pormenores do seu desenho. De lápis de carvão na mão, começa a passar a figura de um homem sentado de costas numa cadeira do papel vegetal para a madeira. “É o meu bisavô. Ele sentava-se sempre assim, ao fundo do corredor”, conta com o sotaque típico de quem nasceu no Alto Alentejo, mais concretamente na vila de Grândola.
Cada traço e curva do esboço da profissional de audiologia denunciam as influências alentejanas. “Vou fazer umas parreirinhas por cima da janela, o que acham?”, questiona. Joaquim Franco lança o aviso. “Não compliques. Vais ficar muito presa ao desenho”.
O objectivo do curso de iniciação na xilogravura é aprender a técnica. Para isso, o professor aconselhou a turma a não “se preocupar de mais com o desenho”. “A ideia é ganhar prática e o primeiro trabalho é para estragar”, sentencia.
A xilogravura é apontada como uma técnica de gravura de origem chinesa. A madeira é utilizada como matriz, possibilitando a reprodução da imagem gravada sobre papel ou outro tipo de suporte. O processo é muito parecido com o carimbo.
O “bonsai com nuvens” de Rute Azevedo já está todo recortado. A próxima etapa é ver o efeito que produz no papel. A trabalhadora-estudante de 21 anos despede-se durante alguns minutos da companhia das colegas de bancada para aprender a aplicar a tinta na placa de madeira com o rolo de borracha.
Com a ajuda do “senhor Franco”, como chama ao professor, a aluna cobre o desenho com tinta preta e carimba o papel. “Não ficou nada feio”, diz o artista plástico enquanto levanta o resultado para toda a turma contemplar.
A etapa seguinte é experimentar várias técnicas e materiais. Um trabalho que Fátima Beirão já está a desenvolver em fase avançada. Após imprimir três vezes as suas folhas de planta, a funcionária do Instituto Cultural enche de novos golpes a “chapa” preta da utilização repetida da tinta. Algo que se consegue usando diferentes instrumentos cortantes, com o auxílio ou não do martelo, arrancando mais ou menos madeira para conseguir diversos tipos de relevo.
“A primeira experiência foi de profundidade. Agora estou a estudar os aspectos de relevo que depois vão aparecer na impressão. Isto está a obrigar-me a pensar no desenho de uma forma mais profunda e torná-lo mais bidimensional”, explica Fátima Beirão. As explicações são, no fundo, conclusões que vão nascendo no momento. À medida que retira os pedacinhos de madeira, a aluna vai descobrindo os segredos da xilogravura. “Há espaço para a criatividade, mas também exige técnica”, conclui.
Mais afastada das restantes colegas, Fátima Beirão conta que é a primeira vez que participa num curso relacionado com arte. “Sou da área de música e as artes plásticas são um campo que gosto, mas nunca explorei”, frisa.
Para a aluna, o workshop promovido pela CPM é mais do que uma iniciação nas artes. É um exercício de auto-conhecimento, a vários níveis. Criativo, porque é uma oportunidade “de nos conhecermos melhor”, defende, debruçada no seu trabalho.
Rute e Paula também procuram desbravar novos mundos sem sair do ateliê. A técnica da xilogravura não é estranha para a jovem. No curso de artes que efectuou na escola secundária, aprendeu a trabalhar com linóleo. “São placas de borracha”, explica à colega Paula, “mas isto é mais interessante, a madeira é um material mais primitivo”.
Já a audiologista herdou uma veia artística do pai, que “pintava a aguarela”, e a vontade de chegar mais longe domina-a. “Gosto imenso de trabalhar com as mãos e quero conhecer-me mais”, sublinha.
No campo artístico, “este curso ajuda-nos a apreciar a arte dos outros artistas. Passamos a ver as coisas de uma maneira mais profunda e temos prazer ao reconhecer o que vemos”, explica por sua vez Fátima.
A xilogravura encurta também a distância face à cultura oriental. “Como as técnicas utilizadas têm origem no Japão e na China, conhecemos melhor o sítio onde vivemos. Depois, há a questão social. “É giro, porque aqui há três gerações diferentes. Todos podemos aprender uns com os outros”, diz com um sorriso, enquanto observa de longe as colegas.
De facto, Fátima e Paula são as mulheres adultas do grupo, Rute é a jovem e, encolhida na sua timidez de menina, Susana Couto representa a infância. “Gosto destas coisas de trabalhos manuais e inscrevi-me”, conta a formanda mais nova da turma.
A primeira sessão do workshop foi reservada a uma introdução teórica. No entanto, pouco ficou na memória da aluna de 11 anos. “Qual é a técnica? Não sei bem”, diz procurando ajuda na companheira do lado. “É um bocadinho japonesa não é? É uma técnica oriental”, conclui.
Susana está mais concentrada na madeira. A terceira aula não está a correr de feição à estudante da Escola Portuguesa de Macau. As folhas da palmeira que desenhou são difíceis de contornar com o objecto cortante. Com uma cara de sofrimento, queixa-se de dores no dedo que faz mais força.
Facilmente, a menina deixa-se derrotar pela desmotivação. Levanta a placa para mostrar ao professor Franco. Mas o semblante muda automaticamente com o elogio do mestre. A preocupação de Susana tem um motivo especial. O trabalho é um presente atrasado do Dia do Pai e a pequena artista quer dar o seu melhor.
O trabalho e a conversa continuam. Joaquim Franco vai distribuindo apoio e conselhos técnicos. No albergue da Santa Casa da Misericórdia, onde a CPM ocupou recentemente quatro salas, a xilogravura vai ocupar o ateliê de artes plásticas até o dia 17. Entretanto, arranca um outro workshop também ministrado pelo mesmo professor. O tema é a “Ciência da Cor”. “Cada pessoa vai criar a sua paleta de cores, com os diferentes contrastes”, sublinha Joaquim Franco.
As quatro alunas vão encontrar-se novamente no segundo curso de artes. E já têm lugar marcado na banca de trabalhos se a CPM organizar um segundo nível de xilogravura. Apesar de a iniciativa ir ainda na terceira sessão, há quem já não viva sem o trabalho.
É o caso de Paula Figueira. “É uma óptima oportunidade para relaxar ao fim do dia. É essencialmente isso que procuro. Chego ao fim da rua e já me sinto mais calma.”
Fátima olha para o relógio e avisa o professor. “Já passa da hora.” O tempo corre dentro do ateliê da CPM. “Vamos começar a arrumar as coisas?”, pergunta Joaquim Franco. Paula, Rute e Susana não se movem. “Estão tão entretidas que não dão por nada”, confidencia o professor.

História de um autodidacta

O nome no bilhete de identidade é Joaquim Afonso da Costa Franco, mas em Macau todos o conhecem simplesmente por Franco. O artista plástico português chegou ao território há quase duas décadas. A história da sua estadia é semelhante a tantas outras de residentes da RAEM. “Vim por 10 meses e acabei por ficar 18 anos”, conta.
“No dia 18 de Março de 1990, cheguei para integrar a equipa do projecto de tratamento e recuperação das Ruínas de São Paulo, liderada pelo arquitecto Manuel Vicente”, lembra. Na altura, desempenhava a função de ilustrador científico no âmbito da arqueologia.
“Achei piada a Macau”, frisa. Entretanto “surgiu a gravura e a pintura”. Técnicas artísticas que já tinham sido experimentadas em Portugal. Concluiu que “finalmente tinha capacidade para montar um atelier” e acabou por estabelecer-se na região. O espaço de Franco nasceu em 1994 e fechou as portas há cinco anos.
No país natal, completou o curso de iniciação à pintura, na Sociedade Nacional de Belas Artes. Contudo, no seu currículo destaca-se a referência à “auto-aprendizagem contínua”. O artista português assume-se como auto-didacta. Algo que também transmite aos formandos dos seus workshops.
“Tem uma teoria bonita. Todos aprendemos uns com os outros. Ele não é o professor e vamos experimentar juntos”, frisa Fátima Beirão, aluna do workshop de xilogravura que está actualmente a decorrer na Casa de Portugal em Macau.
A ilustração científica no âmbito da Arqueologia, Etnografia e Defesa do Património que o trouxe ao território é um conhecimento que resultou de um estudo individual. O mesmo aconteceu com a gravura e a pintura, no campo das artes plásticas.
Em Macau, Franco desempenhou a função de freelancer na antiga Academia de Artes Visuais e realizou vários trabalhos na área do teatro, design de interiores, arqueologia e artes plásticas. As andanças nos bastidores do teatro começaram em Portugal, onde foi cenógrafo e aderecista.
O artista possui ainda vários trabalhos publicados, destacando-se por exemplo as “Actas do Congresso Mundial de Arqueologia de Southampton”, no Reino Unido, em 1987. A estreia de Franco nas exposições foi em Portugal, com uma mostra individual de pintura no Museu da Santa Casa da Misericórdia da Ericeira. As obras viajaram também pela Europa e Ásia.
Alexandra Lages
Fotografia: António Falcão/ bloomland.net

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