quarta-feira, 2 de abril de 2008

Académico de Pequim sobre interpretação da Lei Básica, Albergue de S. Lázaro acolhe trabalhos inéditos de Kwok Woon

Académico de Pequim discursa sobre interpretação da Lei Básica

Atenção às palavras, ao contexto e à história

A eleição por sufrágio directo e universal do Chefe do Executivo está prevista na Lei Básica da Região Administrativa Especial de Hong Kong. Está também estipulado que se trata da meta final de um processo “gradual” que deverá estar concluído “daqui a dezenas de anos”. Declarações proferidas pelo professor da Faculdade de Direito da Universidade de Pequim e delegado da Comissão de Lei Básica de Hong Kong do Comité Permanente da Assembleia Popular Nacional, Rao Geping, num seminário que teve lugar ontem no edifício da Administração Pública sobre a interpretação e aplicação do diploma fundamental nas duas regiões administrativas.
Realçando que qualquer interpretação tem de “respeitar o objecto e os princípios gerais, bem como os princípios legislativos de qualquer Lei Básica”, Rao Geping vincou que os princípios gerais do diploma fundamental passam por “assegurar a soberania, a união e integridade territorial da China”, tendo em conta o desenvolvimento da região. Sempre pensando nestas premissas, o académico de Pequim advertiu que “deve adoptar-se uma solução conforme ao desenvolvimento – a reforma política deve adaptar-se à sua própria realidade”.
Relembrando questões que já estiveram em discussão na região vizinha aquando da nomeação de Donald Tsang, Rao Geping afirmou que, se “a comissão eleitoral só tem cinco anos de mandato, o mandato do Chefe do Executivo não pode ser superior ao deste órgão”. Por isso, se o Chefe do Executivo – como sucedeu com Tung Chee-hwa -, por algum motivo, tiver de abandonar o cargo antes do fim legalmente previsto, o primeiro mandato do sucessor só terá a duração dos anos que ficaram por completar do precedente dirigente máximo. Conforme uma interpretação sistemática e histórica, explicou o académico.
São vários os métodos de interpretação utilizados nos diplomas no geral, não fugindo a Lei Básica à regra, passando pela “literal – o significado das palavras -, sistemática – o contexto -, e histórica – o background e a situação envolvente”. Como é que isto se aplica às Leis Básicas da RAEHK e da RAEM? Explicando que cabe à Assembleia Popular Nacional proceder à interpretação, se sentir necessidade disso, e que se a leitura for diferente da do tribunal de instância superior das duas regiões administrativas prevalece a sua, o académico afirmou que “Macau nunca teve problemas de interpretação”. Já de Hong Kong não se pode dizer o mesmo. Aliás, no que toca à região vizinha, Rao Geping afirma que tal se deve, principalmente porque, “funcionando com o sistema de Common Law, o território até estranha o facto de ser a República Popular da China a interpretar a sua Lei Básica”. Citando um exemplo, ocorrido em 1999, que, em traços gerais, visava apurar se os filhos dos residentes de Hong Kong teriam automaticamente direito a residência, Rao Geping afirma que a Assembleia Popular Nacional “reparou a sentença do TUI de Hong Kong por entender que não fez interpretação à raiz da legislação”.
Tendo em mente estes métodos de interpretação, Rao Geping afirmou que, por exemplo, no que toca à metodologia de escolha do Chefe do Executivo de Macau, há que ter cautela e atenção à expressão “se for necessário alterar”. Quer isso dizer que “poderá ser alterada [a metodologia] em 2009”? Rao Geping apenas alerta para o verbo “poderá”, que não significa o mesmo que “deverá”. Aliás, para ter lugar tal alteração, além da aprovação da Assembleia Popular Nacional há que passar pelo Chefe do Executivo para sua aprovação.
Inquirido por um elemento da audiência a propósito da previsão na Lei Básica da RAEHK da eleição por sufrágio universal do Chefe do Executivo, o mesmo não sucedendo na Lei Básica da RAEM, Rao Geping esclareceu que não se devem fazer comparações. E isto porque os diplomas fundamentais foram elaborados por duas comissões que se nortearam por diferentes perspectivas. No que toca às alterações propostas pelo Governo para as leis eleitorais, que apenas incidem em pormenores técnicos, o académico afirmou que não cabe a estes diplomas resolver a questão do sufrágio. A suceder alguma alteração neste campo, esta só pode ter lugar no âmbito da Lei Básica.
Ficam por conhecer mais pormenores e posições concretas do académico, principalmente no que toca ao universo de Macau, já que Rao Geping se recusou a falar com os jornalistas portugueses antes e depois do seminário.
Luciana Leitão
Fotografia: António Falcão/ bloomland.cn

O Tai Chung Pou mentiu!

Afinal, o trânsito das duas regiões administrativas especiais não vai sofrer alterações em 2010. A “notícia” avançada ontem pelo Tai Chung Pou não era mais do que uma simples brincadeira do 1º de Abril, cumprindo-se assim a tradição do dia das mentiras.
Na edição de ontem, dávamos conta de que, devido à construção da ponte entre Hong Kong, Macau e Zhuhai, os condutores dos dois territórios teriam que passar a circular na faixa da direita. Para fundamentar a “notícia”, citámos Chan Tai Man, um alegado responsável de um gabinete de Hong Kong, que também não existe.
No entanto, nem tudo era falso na notícia do 1º de Abril. É verdade que o trânsito de cerca de um quarto dos países e territórios do mundo se faz pela esquerda, sendo igualmente válida a razão de tal hábito: ainda antes de aparecerem os veículos motorizados, a circulação a cavalo fazia-se pelo lado esquerdo dos caminhos. Como as viagens era perigosas e os cavaleiros frequentemente atacados durante o percurso, era mais fácil, andando à esquerda, desembainhar as espadas, uma vez que a maioria da população era destra.
Também é verdade que, até ao princípio do século passado, eram muitos os países onde se conduzia pela esquerda. Hoje em dia, esse hábito de circulação é mantido principalmente nas antigas colónias britânicas, como é o caso de Hong Kong. Existem, no entanto, excepções, sendo o Japão e Macau disso exemplo.
Não foi, no entanto, pela proximidade territorial que Macau tem regras idênticas às do território vizinho. Em Portugal, conduzia-se à esquerda, sendo que a alteração se processou apenas na década de 1920. A mudança aconteceu no mesmo dia para o todo o país e colónias ultramarinas, à excepção dos territórios que faziam fronteira com outros onde se conduzia à esquerda, caso da China. O país só alterou as regras de circulação para a actual condução na faixa da direita em 1946.

Albergue de S. Lázaro acolhe trabalhos inéditos de Kwok Woon

Um pintor cheio de cores

Pintor colorido. Artista solar, com uma personalidade contagiante. “Não era dado a melancolias e a tristezas.” Acreditava na vida e distribuía alegria. Tamanha era a vontade de comunicar com os outros que, mesmo sem conhecimentos da língua inglesa, conviveu e fez amigos com as comunidades portuguesa e estrangeiras de Macau. As palavras são do arquitecto Carlos Marreiros e descrevem Kwok Woon, um artista e uma pessoa memoráveis. Cinco anos após a sua morte, as obras do pintor podem ser novamente contempladas pelo público.
A exposição é da iniciativa da Casa de Portugal em Macau (CPM) e está patente na Galeria do Albergue da Santa Casa da Misericórdia, no Bairro de S. Lázaro. “Quando tive conhecimento da mostra fiquei, por um lado, feliz e, por outro, um bocado triste”, confessou Guilherme Ung Vai Meng, artista e director do Museu de Arte de Macau (MAM). Ao receber o convite para a inauguração da exposição, Ung Vai Meng foi confrontado com a dura realidade, a de que, embora vivo na sua memória, “Kwok Woon já não está entre nós”.
No entanto, “esta exposição é muito importante para recordar o artista e para as pessoas terem a oportunidade de apreciar o seu trabalho”, acrescentou Guilherme Ung Vai Meng. As memórias começam, então, a dominar o discurso. “Ainda me lembro, há 20 anos, quando fundámos juntos o Círculo dos Amigos da Cultura (CAC). Recordo-o com muitas saudades”, disse.
Em conjunto com os artistas do CAC, acrescentou Carlos Marreiros, Kwok Woon “conseguiu alterar o cenário das artes plásticas de meados dos anos 1980”, um movimento ainda dominado pelo conservadorismo, “sem qualquer vestígio de experimentalismo ou contemporaneidade”.
O pintor desempenhou, segundo o director do MAM, um papel muito importante. Não só pelo facto de ter sido um dos pioneiros da arte contemporânea de Macau, mas também ao nível da comunidade de Macau. “O seu contributo para a sociedade local foi essencial. Era um tipo de pessoa com uma mentalidade aberta. Tinha muita imaginação. Era um homem que via para além das coisas”, concluiu.
Era companheiro, além de amigo, das pessoas com quem convivia, apontou Carlos Marreiros, que privou com o artista desde 1983. “Era uma pessoa muito expansiva e comunicativa com todas as comunidades de Macau”, afirmou. “Não sabia falar inglês, mas fazia-se comunicar através da sua mulher Joana Ling, quer com os portugueses, quer com os restantes habitantes expatriados”, contou o arquitecto.
É também com o objectivo de “homenagear o homem que estava muito próximo da comunidade lusitana” que a CPM decidiu promover a exposição, explicou a presidente da organização local, Maria Amélia António. Um evento que marca o arranque das operações da instituição no novo espaço, localizado no Albergue da Santa Casa da Misericórdia, em S. Lázaro. “É uma maneira de tornarmos clara a intenção de fazer deste local um encontro de culturas. É um cultivo da simbiose, que é a identidade de Macau”, afirmou.
A exposição tem uma importância acrescida, porque estão patentes trabalhos de colecções particulares, sendo que metade nunca tinham sido expostos publicamente.
São desenhos feitos com a mão esquerda, durante “a fase mais avançada da doença, próximos da morte, em que ele já não trabalhava com a mão direita”, explicou aos jornalistas Nuno Calçada Bastos, designer e membro da direcção da CPM, na semana passada, durante a apresentação das iniciativas futuras da instituição de matriz lusófona.
A exposição inclui ainda um conjunto de poemas que data do mesmo momento da vida de Kwok Woon. “São textos simples, mas cheios de significado. Mostram um homem que tentou ultrapassar a doença. É uma mensagem de esperança”, acrescentou o mesmo responsável. Um dos trabalhos foi feito dois dias antes do falecimento do artista.
Apaixonado pela arte, foi à custa desta dedicação que acabou por adoecer. Kwok Woon sucumbiu a um cancro. “Ficou intoxicado pelos materiais com que trabalhava, que lhe provocaram a doença”, frisou Nuno Calçada Bastos.
As restantes obras da exposição foram, em parte, cedidas pela viúva do artista, Joana Ling. Ao longo da galeria, é possível contemplar obras representativas de várias fases do percurso artístico do pintor. “Das colagens àquilo a que ele chama de ‘industrial junk’, o uso de materiais de madeira e metal”, descreveu o designer.
Carlos Marreiros distingue três fases da vida artística de Kwok Woon. Numa base de telas de proporção média e grande, o pintor iniciou-se no abstraccionismo lírico. “Era um artista de cores rosas e variantes de verde. Era um pintor muito colorido, amava a pintura”, descreveu.
A segunda fase foi marcada pela reabilitação de “materiais que a sociedade de consumo deitava fora e que eram susceptíveis de ser lidos de outra forma”. Através da reconstrução de um discurso plástico, o pintor dava um novo “assemblage, cor e textura aos objectos deitados ao lixo”.
A doença encaminhou o artista para uma terceira fase. Foi recorrendo ao desenho, aguarela e pincel, produzindo desenhos e até reflexões poéticas sobre a vida. Kwok Woon era um amante da vida. Nunca o deixou de ser, nem no seu período mais negro, na doença.
“Era um artista solar, muito bem disposto. Acreditava na vida. Não era dado a melancolias e tristezas”, destacou Carlos Marreiros. Recordando o porte atlético do amigo, o arquitecto referiu ainda a sua participação no Grande Prémio de Macau e as horas que passava no mar, embalado pelo seu “barquito”.
Se havia coisas que Kwok Woon apreciava na vida além da pintura era o mar, as mulheres e as flores. Foi por este motivo que, ontem, antes da estreia da mostra, a especialista em flores Cindy Chao apresentou um arranjo. Uma obra que, segundo a presidente da CPM, foi concebida com base neste conjunto de elementos.
A Galeria do Albergue da Santa Casa da Misericórdia acolhe as obras do pintor Kwok Woon até ao dia 20 deste mês. O espaço fica na Calçada da Igreja de S. Lázaro, onde também se localizam as novas instalações da CPM. A iniciativa contou ainda com a colaboração da Bambu, Sociedade de Artes.

De Cantão para Macau, via Singapura

Kwok Woon nasceu em 1942, tendo falecido em 2003, com apenas 61 anos, vítima de um cancro. Cantão era a sua cidade natal. Foi lá que cresceu e que frequentou a Academia de Belas-Artes.
Em 1962, fixou residência em Hong Kong e passou a viver exclusivamente das suas pinturas. Tornou-se oficialmente pintor de profissão. Desde então, passou a ser membro do Clube de Artistas de Hong Kong e da Associação da Academia de Artes da antiga colónia britânica.
No entanto, “em rigor foi um artista de Macau e de Singapura”, frisou o arquitecto Carlos Marreiros, porque foi dividindo o seu tempo entre o território e a cidade-Estado, manteve duas casas. Em Hong Kong, menos. A região vizinha “não o marcou”, defendeu. Em Macau, criou também um atelier denominado Centro Internacional de Artes Visuais, em parceria com a pintora Joana Ling, a companheira de vida de Kwok.
Kwok foi um dos fundadores do Círculo dos Amigos da Cultura (CAC). Através do CAC, desempenhou um papel muito importante na filiação de Macau à Federação Internacional dos Artistas da Ásia. Uma organização não-governamental que reúne 15 países e territórios da zona Ásia-Pacífico.
No seu currículo, salta à vista uma vasta participação em exposições individuais e colectivas a nível local e internacional. Contudo, o início da carreira de pintor não foi fácil. “Foi extremamente difícil”, contou Carlos Marreiros. “Nos primórdios dos anos 1980, as artes menos convencionais não tinham qualquer visibilidade. No entanto, Kwok Woon rapidamente foi reconhecido pela sua criatividade. Em especial, pela comunidade portuguesa, que apreciava e comprava muita da sua arte”, sublinhou.
O artista plástico conquistou o mercado do Sudeste Asiático, principalmente de Macau, Singapura e Hong Kong. Kwok Woon participou em exposições pela América, na Europa e na Ásia. Do conjunto, destacam-se as mostras “Artistas Contemporâneos de Macau”, em 1988, em Singapura e, em 1990, na Fundação Calouste Gulbenkian e na Casa de Serralves, no Porto.
No mesmo ano, as suas obras marcaram presença na quinta edição da “Exposição Internacional de Arte Asiática”, em Kuala Lumpur, na Malásia. Em 1988, o pintor foi distinguido com o Prémio de Arte Ocidental na “5ª Exposição de Artistas de Macau”.
Alexandra Lages
Fotografia: António Falcão/ bloomland.cn

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